Thursday, November 28, 2019

Castanheira - Pessoa, um vôo pelo espaço
Fui ver a exposição sobre o Fausto de Pessoa, do José Manuel Castanheira, à Galeria da Graça.
Iniciativa de Junta da Freguesia, que só posso louvar.
 A galeria é na rua da Graça, luminosa, e os quadros são belos, intensos e perturbadores, deixando-nos entregues ao sentido da vida, da eterna disputa das forças do Bem e Mal, um Diabo-Mefisto que tem na mão o nosso globo azul – agora cada vez menos – e o envolve num abraço carregado de maldade, de posse, de certeza ( ou haverá ainda dúvida) de que Pessoa, relidos Marlowe e Goethe, perderá, junto com eles a grande aposta sobre a salvação da espécie humana?
Não sabemos, e nunca saberemos, porque não foi Pessoa que publicou a obra, mas Castanheira que deixou, na sua pintura, o que havia de possível, na visão cósmica da eterna batalha: “aquele que sempre luta será salvo.”
Ou as forças do universo, negras e poderosas, já arrebataram para longe, para esferas a nós inacessíveis, naquelas asas espessas, poderosas, a essência que Goethe e os seus Anjos chamaram de “crisálida”, e cujos laços foram chamados a desfazer, permitindo que ascendesse ao sublime e Eterno Feminino.
Mas Pessoa não é Goethe, poeta solar, choca em parte com o Pessoa lunar, o que vê e não vê, crê e não crê e no último quadro de José Manuel, que desceu tão fundo naquela interpelação de um deus que se retira e cala, o que nos é dado a contemplar é o cais das colunas, escadarias que no meio de um nevoeiro mítico se abrem para o mar: o mar, o das águas profundas, delas sairá talvez um Dom Sebastião  que ainda hoje nos faz sonhar.


Wednesday, November 20, 2019




Notas de um diário
(para o Sérgio Ninguém)

Escrevi no blog de simbologia e alquimia sobre o último livro do Sérgio Ninguém, da Eufeme, uma cuidada e belíssima edição, livro pequeno, como gosto tanto de os ler, O PESCOÇO NA NAVALHA, poemas de 2016 a 2019.
É o livro que o salvou, ou o fez atravessar, pela palavra poética, uma funda depressão. Todo o imaginário é negro, e o seu dizer, puro e seco não se esconde em formas mais elaboradas e suaves ( o que seria um desastre) tentando envolver o seu discurso numa elegância fictícia.
Aqui não há fingimento. Não esconde, não disfarça, não facilita leituras.
Sérgio Ninguém pertence a esta nova geração de poetas libertos que agora vou descobrindo, com um prazer enorme. Não se pode ser todo o tempo um repetidor de Pessoa, ou de outros dos nossos grandes, dos vários movimentos, do Modernismo ao Surrealismo e ao post-Modernismo que inovou, provocou e também se esgotou na devoração que se fez de um Herberto Helder, por exemplo.
Não, com esta geração a que Sérgio pertence, descubro novas linguagens, não estão presas, nem querem, ismos de qualquer espécie. E por trás da linguagem o que ela significa: uma nova e por vezes brutal relação com o mundo, os outros, sejam eles quais forem, e acima de tudo consigo mesmo. O poeta já não se esconde, expõe-se, como diria Celan ( aquele que a seguir a Pessoa mais me tem interessado e influenciado : traduzi-lo foi uma aventura que me ensinou a chegar ao osso da palavra, a lavar o cadáver do corpo poético com que nos confrontamos de cada vez que escrevemos. Uma a uma ir despindo as palavras que cobrem o cadáver.
E expô-lo assim, na sua nudez tão afrontosa. Que não haja piedade, pois não há homem nem  deus que nos ensine a ter piedade.
Sérgio coloca o pescoço na navalha. Imagem cruel, a que não poupa o leitor: a cada momento poderá dar-se a morte, esse corte suicida, e o sangue por ali se escorrerá, fazendo poça no chão, o mar da vida assim interrompida. Este conceito, ou este sentimento – afinal a poesia também é sentimento – da interrupção é importante no discurso poético. Não fomos feitos para uma edénica eternidade bem-aventurada? Que crime, que traição, que pecado tremendo nos deu um castigo de que o próprio deus, depois se arrependeu, dando o seu próprio filho em oferenda?
Vem logo à memória o célebre poema de Blake nas Songs of innocence and experience, tão terrível, de garras que se cravam tão fundo, e o tornam quase intraduzível, TIGER:

Tigre, tigre, fogo ardendo
na escuridão da floresta,
que olhar eterno ou que mão
tão temível simetria desenhou?

Em que céus ou profundezas
arde o fogo dos teus olhos?
E ele, que asas deseja ter?
Que mão ao fogo se atreve?

Qual o ombro, qual a arte,
Que o teu coração torceu?
Ao começar a bater,
mão terrível, pés de horror,

que martelo e que corrente?
O teu cérebro, em que forno?
Que bigorna e que tormento
te prenderam ao temor?

Quando as estrelas suas lanças depuseram
e o céu com as suas lágrimas molharam,
sorriu Ele perante a obra?
Ele, que fez o Cordeiro, também a ti concebeu?

Tigre, tigre, fogo ardendo
na escuridão da floresta
que olhar eterno ou que mão
tão temível simetria em ti ousou?

A interrupção tinha sido fatal. O Tigre, mais do que a Serpente, tornou-se dono e senhor da criação, e agora Sérgio, que está atento, socorre-se do Apocalipse de São João, que no seu delírio visionário descreve a Besta e o seu número sagrado, 666, ironizando pelo meio dos números da criação (os seis dias que durou, descritos no Génesis) com uma canção popular inglesa, a dos ratinhos cegos, que me dispenso de citar aqui. Porque a imagem com que o poeta nos deixa é para levar a sério, são ratos, e não ratinhos, e são manifestação dos mortos que os Mestres deixaram para trás (“ Já não sei se os mestres ouviram os mortos....”) são ratos cegos “que procuram o tiro na cabeça”. Brutal esta imagem com que termina o poema.
Não hesita em gritar que não há salvação, talvez nunca tenha havido.
A interrupção causada pelo drama que teve lugar no Génesis foi ferida sem cura. A serpente apontou o caminho de um Conhecimento que estava proibido. E na verdade, hoje como ontem, continua fora do nosso alcance.
Termino com um último poema, que pertence já ao ciclo do Epitáfio:
Sou um interior sem vida -
uma pedra sofrida
num poço sem cobras encantadas.




Saturday, November 09, 2019

IMPROVISANDO, para ouvir melhor e sempre, A NOVA GERAÇÃO DO JAZZ


Hoje foi um dia feliz: recebi o livro da Cristina Carvalho, sobre Ingmar Bergman, e o livro do Jazz da nova geração, de Nuno Catarino e Márcia Lessa, IMPROVISANDO. Capa e design gráfico de Cláudia Rodo, terceira mão de artista, que por aqui também entra, com o seu swing de cores alegres. A mão protectora foi de Inês Cunha, Presidente do Hot Clube de Portugal.
Vivi muitas noites de grande música de jazz, nos anos 60, quando pela mão de Luís Villasboas vinham a Portugal, e ao Hot, os maiores músicos do mundo, e era a ouvi-los que as gerações aprendiam, ou melhor, sentiam, o que eram as linguagens musicais variadas, originais, diferentes. A ouvir se evoluía, e a participar, o que por vezes acontecia (os grandes eram generosos, e as noites eram longas) se crescia musicalmente.
Neste livro temos o testemunho da mais recente geração de jazzistas que Filipe Melo, na contracapa, define como a mais livre criativa e dinâmica da actualidade. O que move estes criadores? O que moveu todos os outros, de antes, e moverá os seguintes: o prazer de tocar, o trabalho e a curiosidade. Penso como é importante, em todos os domínios, este factor da curiosidade: querer mais, sempre mais, para depois a voz de cada um se tornar firme, e original, com um som que é assinatura própria, e logo se reconhece mal se sentem ao piano ou levem à boca o seu sax, o trompete, ou o que fôr.
Filipe Melo, o pianista que nos veio de longe, dos EUA onde tudo acontecia, é um grande exemplo da importância de saber e querer sempre mais, no domínio da Arte, musical ou outra: é ainda realizador de cinema e autor de banda desenhada.
Como ele diz, "o futuro, a partir de agora, não tem limites". E porquê este agora? Porque tudo evolui, tudo se tornou global e convivial, e com mais conhecimento (aqui entram trabalho e curiosidade) o jazz das novas gerações improvisa sem medo, arrisca, corrige, se fôr preciso, retoma o que tinha perdido...e segue em frente.
Que venham a seguir mais entrevistas, mais jovens como estes (fotos lindas...) mais um livro.