Saturday, February 24, 2007

Celan recordando a França

De Paul Celan, outro poema antigo, da primeira fase da sua obra. Escrito provavelmente em Bucareste e incluído no conjunto de DER SAND AUS DER URNEN, A AREIA DAS URNAS.
Em 1938-39 Celan tinha completado em Tours os seus estudos de medicina e em Paris tinha contactado o grupo dos surrealistas, de que guarda algumas memórias embora depois se tenha afastado das práticas mais radicais, por razões que se percebem: o sofrimento da guerra não o deixará mais voltar a sorrir ou a sonhar, e as imagens que o perseguem são cruéis, de agressão e pesadelo.
A referencia a Monsieur le Songe traz à memória Rilke, outro grande referente para a cidade de Paris, com OS CADERNOS DE MALTE LAURIDS BRIGGE e com as ELEGIAS DE DUÍNO.
Barbara Wiedemann, que edita e comenta a Poesia Completa da Suhrkamp, nota que nas ELEGIAS DE DUÍNO (V) Rilke alude a essa figuração da morte que é a modista "Madame Lamort".
Por curiosidade deixo ao leitor esse passo de Rilke, na tradução de Paulo Quintela:
....
" Praças,ó praças de Paris, teatro infindo,
onde a modista, Madame Lamort,
entrelaça e entrança os inquietos caminhos da Terra,
fitas infinitas, e inventa deles novos laços,
franzidos, flores, cocardas, frutos artificiais-,tudo
inverosimilmente pintado,- para os baratos
chapéus de inverno do Destino.
....
Anjo! haveria uma praça que não conhecemos, e ali,
sobre o tapete indizível, mostrariam os amantes, que aqui
nunca chegam a poder realizá-las, as suas ousadas
altas figuras do impulso do coração,
suas torres de desejo, suas escadas que, há muito tempo,
ali onde o solo falhava, apenas se apoiavam
uma à outra, trementes,- e ali poderiam,
em frente dos espectadores em volta, inúmeros mortos silenciosos:
lançariam eles então as suas últimas moedas sempre poupadas,
sempre escondidas, que nós não conhecemos, eternamente
válidas moedas da felicidade ante o par
finalmente sorrindo verdadeiramente sobre o apaziguado
tapete? "

Celan, no seu poema, falará de uma espécie de "João Pestana" oriundo da treva e não do céu dos Anjos da Guarda que protegem o embalar suave da criança ou dos amantes que podem adormecer felizes.
Aqui o sono é o eterno sono da morte.

RECORDAÇÃO DE FRANÇA

Tu pensa comigo: o céu de Paris,o grande lírio do Outono...
Comprávamos corações na florista:
eram azuis e abriam-se na água.
Começou a chover no nosso quarto
e veio o nosso vizinho, Monsieur le Songe, um homenzinho seco.
Jogámos às cartas, eu perdi as meninas-dos-olhos;
tu emprestaste-me o teu cabelo, eu perdi-o, ele abateu-nos.
Saiu pela porta, a chuva foi com ele.
Estávamos mortos e podíamos respirar.

Wednesday, February 21, 2007

Les Dames de Venise


Para o Fernando Canedo


Paul Celan, LES DAMES DE VENISE:

Nenhuma de vós
deu pelas mocas
que zumbindo voavam
ao vosso encontro ?

Era
este aparente
caminhante .

Poema escrito em 1968, na Fundação Maeght, onde se encontrava uma série de esculturas de Alberto Giacometti, criadas para a Bienal de Veneza de 1956.
Como em tudo o que nos deixou, a marca dominante é a de uma ameaça que nunca desaparece, antes espreita sorrateiramente onde quer que se vá, onde quer que se esteja. Não se foge ao destino, é o que o poeta repete sem cessar.
Já num texto anterior, ABER, MAS, conta Celan como não viu voar os cisnes de Genf pois entretanto alguém tinha arremessado um pau contra ele,vindo do nada, directo à alma.

Monday, February 19, 2007

William Blake


The Songs of Innocence and of Experience contain "some of the most charming lyrics ever written in English.The childlike simplicity and trust of the Songs of Innocence is unique...Blake rejected common sense and believed that the material world is unreal.Those who knew him regarded him as a lunatic..."
(George H. Cowling, ed. Songs of Innocence and of Experience, Introduction )
Se é certo que há uma inocência aparente nas canções da inocência, não é menos verdade que Blake tem a intenção de as contrastar com as canções da experiência, pondo assim a descoberto as pulsões contraditórias da alma humana, como escreve no subtítulo da obra :" Showing the Two Contrary States of the Human Soul ".
Concluímos assim que é feita de sabedoria mais profunda a sua lírica, e não de ingenuidade meio infantil meio lunática como alguns pretenderam simplificando o seu contributo para a literatura e arte do seu tempo. Um dos poemas mais citados é THE LAMB, O Cordeiro; mas só pode ser de verdade entendido se o lermos seguido de outro ainda mais célebre THE TIGER, O Tigre.
É no brilho feroz do tigre que se revela o que o cordeiro esconde na sua aparente ( e insisto no termo ) inocência; pois de verdade não existe inocência no mundo, a Queda pôs termo a essa virgindade primordial e toda a criação foi contaminada pelo pecado dos nossos primeiros pais.
Blake acreditava na sua intuição espiritual. Dizia que os seus poemas lhe eram ditados por "autores da eternidade, authors in eternity". Como Pesoa fará mais tarde, aludindo a "oculta mão" que por ele escrevia...
Para Blake ser poeta era ser visionário no sentido mais nobre do termo. Era ter uma especial capacidade de imaginar, para além do que a natureza e a realidade permitissem. Por outras palavras, a capacidade de alcançar a essencia do mistério natural, vendo no cordeiro como no tigre a "ordem da existencia" pela qual eram regidos.
"Mental things alone are real" só as coisas mentais são verdadeiras, observa, podendo por aqui situar-se na tradição dos melhores cultores do hermetismo em Inglaterra. Para eles a imaginação era " a estrela no homem ".
A apreensão da realidade é sempre melhor feita por intermédio do símbolo :
" To see a world in a grain of sand
And a Heaven in a wild flower,
Hold infinity in the palm of your hand,
And eternity in an hour ".

Ver um mundo num grão de areia
E um Céu numa flor selvagem,
Na palma da mão conter o infinito,
E a eternidade numa única hora.

Misticismo, panteísmo também, em certa medida, mas sobretudo entendimento da cadeia dos seres num universo ordenado, mas infelizmente decaído e a necessitar de regeneração. Algo para que só um santo, um místico ou um poeta, que tenha um pouco de ambos, poderá contribuir.

Thursday, February 15, 2007

Thanks Gawain



Romãs ou as chávenas de Gawain:
Gawain, o autor do blog heaven tree, acaba de regressar de Taiwan onde foi ver a exposição de obras de arte da China milenar.
No blog divulga, como sempre, as suas emoções, com abundante erudição que maneja em prosa elegante e viva, para nos entusiasmar, a nós distantes e mais impreparados. E nós ( os seus leitores fiéis ) deixamo-nos entusiasmar.
Assim aconteceu com estas chávenas que ele trouxe de regresso à Tailândia fazendo mais um post.
A beleza das romãs pintadas fez-me pensar em como é forte a marca dos símbolos em todas as culturas e evoquei desde logo o Cântico dos Cânticos (3-4 ):

Como és bela, minha amada,
como és bela !
....
Teus lábios são fita vermelha,
tua fala melodiosa;
metades de romã teus seios
mergulhados sob o véu.

Podemos continuar com alguma poesia persa, citada nos dicionários, como a de Firdousi:
" as suas faces são como a flor da romãzeira e os seus lábios como o doce das romãs" ;

O simbolismo da romã prende-se com o simbolismo dos frutos que têm muitos caroços, e aludem por isso à fecundidade, à multiplicação desejada.
Na Grécia antiga a romã é o fruto de Hera e de Afrodite; e na Ásia a romã aberta simboliza em geral a expressão dos desejos, bem traduzida por uma expressão popular vietnamita: "a romã abre-se e deixa sair cem filhos".
Na mística cristã este simbolismo da fecundidade é transposto para o plano espiritual: para S.João da Cruz os bagos de romã são as perfeições divinas nos seus inumeráveis efeitos.
Mas como em todo o texto poético há sempre mais mistério para além do que se adivinha. O símbolo, como linguagem outra que é, respira, e deixa respirar outras manifestações:

Reguengos

Já pesam as romãs semi-abertas
nas romãzeiras molhadas

cairam as chuvas da tarde
aguardam-se os beijos fatais
que só os Anjos concedem

bagos vermelhos
em bocas apetecidas

Jardim de Inverno
onde se perdem as vozes
onde se abrem feridas

onde secretamente
mais árvores são plantadas

(Y.K.C., in Mealibra,
Revista do Centro Cultural do Alto Minho 2005 )