Wednesday, December 24, 2008

Uma relíquia


 A Menina do Mar, de Sophia de Mello Breyner, musicada por Fernando Lopes Graça, com as vozes de Eunice Munõz, Francisca Maria, António David e Luís Horta, e direcção de Artur Ramos.
Poderá haver melhor?  
Para todos os que gostam de literatura e arte.

Tuesday, November 25, 2008

Marquesa de Alorna(1750-1839)



Vanda Anastácio apresenta os SONETOS da Marquesa de Alorna numa bela e cuidada edição onde se ocupou da fixação e organização do texto, com uma  Introdução, notas e bibliografia que ajudam a bem entender e situar a obra e a vida de uma mulher notável no seu e em todos os tempos.
Alcipe, a quarta Marquesa de Alorna, ousava lidar com temas de todo o género, como escreve Fernando Mascarenhas, seu descendente: " desde a educação dos jovens, não só criticando a mesquinhez do que lhes era ensinado no seu tempo, como avançando as suas próprias ideias sobre pedagogia, até ao próprio sanctus santorum do mundo masculino- a política!"
Podemos ler, na Introdução, o que foi a vida da Marquesa, de seu nome Leonor de Almeida Portugal, como prisioneira de Chelas; o que foi, de seguida, a sua vida como mulher "das Luzes", numa Europa culta, mas onde ainda era raro brilharem as mulheres; o papel que desempenhou na Política, de 1793 a 1815;o regresso a Lisboa, onde vem a morrer, em 1839.
De Chelas se conhecem 44 sonetos, sendo o último dedicado às Musas, e daí o interesse de o comparar com outro, de Goethe, seu contemporâneo, que se autobiografou como Filho das Musas. 
As Musas ainda conservavam o seu estatuto de condutoras de almas, de paixões, de suspiros, por muito que nos Salões se discutisse pedagogia, filosofia ou política.

ÀS MUSAS

Co'a frauta agreste os beiços compremindo,
Desde que alva a manhã se despertava,
Ante Febo submissa me prostrava,
O sublime furor ao Deus pedindo.

Iam-se os Céus co'a clara luz abrindo,
Morfeu ao mundo alegre costas dava,
E Délio, sem mostrar que m'escutava
A rápida carreira prosseguindo.

Sobre a tripode em vão triste me sento,
Corro os três tetracordes sobre a lira,
Nenhum iguala a voz do meu tormento.

Musas cruéis, se aquele que delira
Mil vezes em vós acha acolhimento,
Porque não confortais a quem suspira?

A autora alude ao mito de Apolo, aqui chamado Febo, segundo o qual o deus concedia aos poetas, por meio de um furor sublime, uma súbita e incontrolada inspiração. 
Mal acordava, e o sono (Morfeu) perdia, tentava a jovem compôr a música que lhe pudesse alegrar o coração. Délio, outra figura mítica, conduzia o carro do sol, que surgia na manhã clara.
Mas nem flauta nem lira conseguem animar a poetisa. Sente-se abandonada pelas Musas, que parecem não lhe reconhecer a existência.

Diferente é o tom do poema de Goethe, igualmente dedicado às Musas:

O Filho das Musas (1822)

Percorro bosques e campos
levando a minha canção,
e assim vou pr'a todo o lado!
Com medida
 e a compasso
tudo gira à minha volta.

Ansioso aguardo as flores
 que vão brotar no jardim
ou nos raminhos das árvores.
Saúdam a minha canção,
e quando o Inverno regressa
ainda eu estou a sonhar.

Lanço a minha voz bem longe
sobre o gelo mais distante,
onde floresce o Inverno!
Também essas flores se vão,
e novos amigos farão
nas aldeias lá do alto.

Quando encontro sob as tílias
jovens a repousar,
encanto-os com o meu canto:
os jovens enchem o peito,
e as moças dançam contentes,
respeitando a melodia.

Vós dais asas aos meus pés,
 levando-me, vosso eleito, 
a correr montes e vales,
 pr'a longe da minha casa.
Ó belas Musas graciosas, 
quando repousarei nos braços da minha amada?
(versão Y.C.)


Goethe apresenta-se aqui como o favorito das Musas, que não lhe dão sossego, fazendo-o correr montes e vales com a sua melodia, encantatória, que alegra corações e desperta neles os amores e nostalgias que o próprio poeta sente. 
Um outro poema seu, o Canto Nocturno do Viandante,  completaria bem o seu desejo de uma paz que não chega: 

Tu que és do céu,
e todo o sofrimento e dôr acalmas,
que ao duplamente infeliz
duplamente conslas,
-Ah, estou cansado de tanta agitação,
de que servem a dôr e o prazer?-
doce paz,
vem, ah vem aquietar-me o coração!
(versão Y.C.)

Goethe teve a sorte de um compositor como Schubert transformar em obra de arte o seu poema dedicado às Musas.
Para a Marquesa de Alorna aguarda-se ainda uma inspiração igual. A música eleva a um outro patamar de Beleza e Emoção o suporte do canto do poema. Mas Portugal não tem ainda a suficiente preparação, o suficiente desejo de fazer do Ensino da Música uma verdadeira necessidade, para além das vocações que felizmente ainda vão surgindo (com que dificuldade...).
 
O poema da Marquesa contrasta com o de Goethe por várias razões: foi escrito, bem como os outros deste ciclo de Chelas, para consolar e entreter o seu pai, preso às ordens do Marquês de Pombal, com a acusação de ter participado, ainda que indirectamente , no suposto atentado contra o Rei Dom José; tem marca de estilo algo juvenil, muito próxima das leituras que o pai lhe aconselhava, a começar pelos clássicos e a continuar com Camões, o expoente máximo da criação poética na arte do soneto; e é de tom  bem feminino, de melancolia suave, paciente, o que se explica não apenas pela influência camoniana, mas sobretudo pela situação de prisioneira no Convento de Chelas, vítima também ela da perseguição movida à sua família. Como lemos no estudo de Vanda Anastácio, foram dezanove anos de cativeiro que, embora no seu caso permitisse visitas e bastante convívio, nunca tinha longe o verdadeiro horizonte de um castigo injusto e  impiedoso:
"Note-se que o encerramento das três senhoras (a mãe e as duas filhas do Marquês de Alorna) numa casa religiosa foi determinado pelas autoridades políticas como um equivalente da prisão, e que este era um meio correntemente usado na época pela sociedade civil para castigar, pressionar, ou simplesmente controlar os comportamentos da população feminina".
Outro pormenor interessante, que mostra bem como as "Letras" numa mulher não eram apreciadas, é o facto, que Vanda também narra, do pai da jovem poetisa não apreciar muito o que ela fazia...

Esta obra, delicada, merece mais atenção.
Talvez sob a forma de prenda de Natal.


Wednesday, October 15, 2008

Herberto Helder


Ao Herberto Helder, sempre

(depois de ler A FACA NÃO CORTA O FOGO, capa de Ilda David, ed.Assírio e Alvim, Lisboa, 2008; um conselho amigo: comprem, roubem, peçam emprestado e não devolvam nunca)

Ah, essa faca
não corta o fogo
mas corta
o coração da pedra
florescendo
em palavras-pétalas 
de ouro

 e corta a veia
no fio
do horizonte

deixa escorrer 
um delicado
 sangue

voz abafada

grito nascendo

dessa faca
no corpo
desse fogo


Wednesday, October 08, 2008

Erdnah /Perto da Terra



Lançado agora em Leipzig pela Erata, bilingue, de bolso, para ir mais depressa de mão em mão, podendo ser lido em qualquer lado, no metro, em casa, no jardim, com as fotos do editor, que é também escritor e fotógrafo de arte.
Um livro à margem, com paisagens do corpo, paisagens da terra, paisagens da alma.
Em tradução e edição de amigos: assim, carinhosamente, circula melhor a poesia.

Tuesday, September 09, 2008

Reflexão sobre Yoga

Com este volume inicia João Tinoco na sua editora, a hamsa, a divulgação entre nós da filosofia do Yoga.
Antes de mais felicito o editor pela qualidade da apresentação da obra: elegância do grafismo, do logo, do papel e da letra escolhida para conforto dos leitores. 
Quanto à  matéria muito há a dizer: a Reflexão sobre o Yoga é-nos trazida por Georges Stobbaerts, na tradução dos Yoga-Sutra de Patanjali, um clássico que os cultores de Yoga bem conhecem.
Tara Michael, investigadora do C.N.R.S. , especialista de estudos indianos e de hinduísmo, escreve a introdução.
Os Yoga-Sutra representam a primeira sistematização da via primordial de conhecimento que é o Yoga,e o documento mais antigo que desta literatura se possui.O autor, Patanjali, escreveu estes aforismos como tópicos de reflexão para mestres e discípulos, sendo a época em que podemos datar a sua vida e obra objecto de hesitação: algures entre o séc.II  A.C. e o séc.-III da nossa era. Mas como é próprio das antigas sabedorias, a transmissão, por via oral, é de muito anterior. Quando se chega ao momento da  autoria já toda uma cultura foi impregnada desse pensamento primordial. 
O objectivo do pensamento como da prática do Yoga é atingir uma libertação da espessura da matéria em que se foi caindo ao longo das sucessivas existências.Trata-se de ajudar a discernir o princípio espiritual aprisionado e que "o fogo do Yoga queima", libertando a sua pura energia.
Por esse fogo, como na alquimia antiga, se queimam:
O ego, e o sentido da sua autonomia em relação ao mundo, ao universo.
O apego às formas grosseiras da existência, materiais, sensoriais.
A aversão, forma de ignorância do outro, pessoas ou situações que nos fazem sofrer e nos causam desejo de fazer mal.
O medo da morte, natural em todas as pessoas e o mais difícil de sublimar.

Resumindo a introdução de Tara Michael, "o Yoga é o controlo das actividades do espírito, que vai desde o simples domínio das operações mentais até à completa suspensão de todas as modalidades da função psíquica".
São muitas as etapas do Yoga, e muitas os exercícios a praticar. 
Patanjali, nos 196 aforismos, deixa claro no entanto que a meditação é o centro e fundamento dessa via, que deverá desembocar no Samâdhi, a ruptura da consciência, com a subsequente Iluminação, experiência comparável à que os místicos, do oriente como do ocidente, nos descrevem.
Parabéns por este tomo I, e ficamos a aguardar os próximos!

Wednesday, September 03, 2008

Terra de Lebab



Fernando Sales Lopes publica a Terra de Lebab, a sua Babel oriental, dando continuidade a uma escrita subtil, imbuída da tradição dos contos morais com que antigos mestres do Japão e da China  cultivaram as sociedades do seu tempo. 
Mas hoje essas histórias exemplares continuam a fazer falta e é de apreciar que um ecritor que muito conviveu com elas nos transmita agora as suas próprias vivências trazendo-as aos novos leitores da era da tecnologia deshumanizada, deshumanizável e que fará do mundo uma nova Babel a caminho da própria destruição.
A proposta é de inverter o gosto, a situação, daí o termo Lebab, que acrescenta mistério e humor ao que vai ser lido.
Prosa escorreita, límpida, de quem sabe que o fundamental é dizer, para além de entreter . E o que diz é memória viva, é marca de cultura e de convívio - pois no convívio se  mantém e se transmite a  tradição, na variedade de línguas, gastronomia, festejos e tudo o mais que a vida consente.
A elegância da obra é sublinhada pelas ilustrações, que apontam, mas não carregam, as páginas em que o requinte não descura os mais pequenos pormenores.
Bela proposta de leitura que nos é oferecida pelo Instituto Português do Oriente e pelo Politécnico de Macau. 
Só posso saudar a iniciativa e felicitar o autor, que já conhecia como poeta.


Friday, July 25, 2008

Shylock e Nathan o Sábio, duas faces da mesma moeda

( Para o Ricardo Pais )
A imagem do Judeu constituiu-se como protótipo do usurário num século XVI bem diferente do século XIII em que podíamos ver na corte de Afonso X, o Sábio, judeus e árabes como escol de cientistas e filósofos na vanguarda do conhecimento mais respeitado. Na época dos Descobrimentos é ainda a árabes e judeus que se deve muito das ciências da navegação e só o instituir da Inquisição em Espanha e Portugal marcará com selo de infâmia a raça e a religião judaicas. 
Em Shakespeare encontraremos, no desenho da figura de Shylock, o judeu de O Mercador de Veneza, os traços dessa caricatura, muito corrente ao tempo. É avarento, é usurário, é mesquinho em mais do que um aspecto, não escondendo a sua raiva e inveja de outros melhores do que ele, pela riqueza e pela nobreza de alma. É por este último defeito de carácter que se tornará em símbolo universal da imperfeição do género humano. A sua maldade é gratuita, como a de Iago, em Othello, fundadora, primitiva e primordial, como a semente nefasta no coração de Caim; por outras palavras, algo que nasce com o homem e nele se forma deformando-o ( e aqui já de muito se ultrapassa a visão que Shakespeare possa ter tido ou não de um judeu do seu tempo).
O seu Shylock é mais do que tudo uma perversão da natureza; o bestiário poético de que Shakespeare se serve para o descrever, buscando no reino animal os exemplos aviltantes, permite que apesar de tudo se esqueça que ali está um judeu, pois nem os da sua raça seriam tão perversos, tão mesquinhos.
Shakespeare compraz-se na descrição do "monstro de olhos verdes "que é o ciúme, aqui como em Othello:" ...é um monstro de olhos verdes que zomba da carne de que se alimenta".
Algo mais se revela, em Shylock como em Iago: uma pulsão negra e profunda o faz desejar a carne, o corpo, a mutilação e a morte daquele que diante dele se ergue como alter-ego impossível, seu mais nobre reverso, de quem mesmo só a ideia (nem sequer a presença) se transforma em ferida insuportável que só outra ferida talvez pudesse sarar. O que não acontece, Shylock será punido, perderá os seus bens e a sua filha, e aquele que desejava destruir recuperará fortuna e bem estar no fim da peça. 
O Mercador de Veneza não atinge, como Othello, a dimensão da tragédia. Mas a figura central em que o judeu se transforma faz dele na realidade o motor do pensamento e da acção, a trágica figura universal que encontra no Caim bíblico o mito fundador.
A imagem de vilão elaborada à época tem antecedentes:
A execução do português Roderigo Lopez, por alta traição, pode ter ajudado a construir tal imagem.
Lopez era um judeu "convertido", médico do Conde de Leicester e da Rainha Isabel I.Quando Dom Antonio, pretendente ao trono de Portugal, chegou a Inglaterra em 1592, Lopez participou na intriga política desenvolvida a seu favor, ao que parece tendo em conta muito proveito próprio; denunciado pelo Conde de Essex, que o acusa de tentar envenenar a Rainha e Dom Antonio, foi julgado em 1594 e executado em Junho desse ano. O caso teve muita notoriedade, com muitas alusões na literatura do tempo.
  Marlowe, com The Jew of Malta, foi um dos que beneficiou de tal notoriedade: a sua peça foi representada 15 vezes entre Fevereiro e o fim do ano de 1594.
Supõe-se que o Mercador de Veneza seja devedor de alguma inspiração a Marlowe, tendo a ideia de fazer uma peça que rapidamente aproveitasse  o momento propício.
( para este detalhe e outros relativos à datação provável da peça, ver notas introdutórias à edição Arden, por J.R. Brown ).

Bem diferente, com propósito de redenção de imagem, é o drama de Lessing, o grande maçon iluminista do século XVIII, cuja obra se reveste hoje de especial actualidade.
Busca-se a paz, o entendimento,algo que Lessing nos propõe neste drama em verso, inspirado num conto de Boccaccio onde é relatada a célebre parábola dos três anéis.
Quem sabe se alguma próxima produção, teatral ou operática nos trará um dia, espero que breve, esta outra visão do Judeu: homem sábio, fraterno, generoso, que Lessing bebe nos ideais de respeito por religião, raça, costumes, como exemplo que deixa em legado à sociedade do seu tempo.
O drama é longo ( para não dizer pesado ) precisará de uma agilização dramatúrgica incontestável.
Mas transporta um olhar que faz falta, ainda hoje. A sabedoria alimenta-se de algo mais do que o traje, a crença, a prática - elementos que separam em vez de unir a humanidade.
Lessing foi um dos que apelou à renovação do teatro na Alemanha, dando Shakespeare como exemplo, cujas peças atingem a dimensão unversal que, a seu ver, não existia ainda nas produções alemãs, populares, caricaturais, explorando a risada grossa e não a elevação definida já por Aristóteles.
Em Nathan o Sábio é levado ao palco o discurso (e a discussão) das três religiões do Livro:
 o Judaísmo (Nathan), o Cristianismo (o Templário), o Islão (Saladino).
A lição dos três anéis, com a interrogação de qual será o verdadeiro, leva à proposta de uma vida moral exemplar que, essa sim, poderá conferir veracidade, autenticidade, a qualquer um dos anéis (as religiões). Temos Kant, com a Razão Prática, a validar a tese de Lessing,cuja Educação do Género Humano influenciará ainda um  filósofo como Fichte.
A sua teoria moral da História, fundada na ideia do progresso moral da humanidade é a base do optimismo, religioso também, característico da Aufklaerung na Alemanha.
Infelizmente os tempos contrariaram ( e contrariam ainda) o seu ideal, revelando como são frágeis as forças de mudança, e variáveis os ventos que sopram dos longes da História. 
Ricardo Pais está de parabéns, vai trazer com o seu Mercador de Veneza, a estrear em Novembro, um colóquio que permitirá todas estas discussões. 
Nota: na capa desta bonita edição bilingue que escolhi para o post reproduz-se uma imagem do Livro dos Jogos (1282) de Afonso o Sábio, com um Judeu e um Árabe a jogar xadrez. Dá muito que pensar.



Sunday, July 20, 2008

Arpad Szenes



Num artigo que escrevi há algum tempo para a revista MEALIBRA, ocupei-me desta obra emblemática de Arpad, Le Couple.
A exposição agora oferecida  pela fundação EDP escolhe como imagem fundadora exactamente este quadro, tão carregado de tradição e simbolismo.
O subtítulo, Vieira da Silva Arpad Szenes e o castelo surrealista, é muito interessante pois sabemos como os surrealistas valorizavam o exercício da libertação (automática ou não) das imagens e arquétipos do inconsciente, para eles o verdadeiro repositório do possível ambicionando a passagem a acto.
Verdadeiro fio condutor serão os esquissos que conduzem ao produto final do óleo.Já no desenho do convite da exposição está presente a mancha circular, laranja, que envolve os corpos, aludindo à esfera andrógina primordial.
O título do meu artigo, que citarei, era ANDROGINIAS: DE KLIMT A ARPAD SZENES.
Aí escrevo que o par está inserido numa representação mandálica, definida pelo arco superior, quase disco solar, que os limites do cavalete (à esquerda do observador) e da perna e tampo da mesa (à sua direita) ajudam a definir.
As cartas na mesa permitem que também nós, de modo surrealista, façamos uma interpretação bem subjectiva: são as cartas do destino que os uniu, está feito o jogo, as cartas estão lançadas, face a elas o par unido abraça-se. O negro da figura feminina evoca o negro da alma, a pulsão que será convertida na unidade da vida e obra.
A figura masculina tem, pelo contrário, os pés bem assentes no chão, suporte da realidade objectiva; a mão direita ( a razão) apoia-se na mesa, a esquerda ( o sentimento) abraça já a mulher  ( o Eterno Feminino que será sempre o seu); marido e mulher figuram aqui o par andrógino primordial, vendo-se bem como a mulher repousa no marido, na sua energia luminosa, com a cabeça encostada à dele e o braço passado à volta do seu pescoço.
O elemento masculino revela-se como suporte delicado de um feminino sombrio ( o negro do vestido é poderoso), como a razão actuante se revelará, na criação, como suporte do caos negro do inconsciente libertado. 
A obra de arte exige ordem,  e a estrutura que ordena o conjunto é tão ou mais importante do que o próprio impulso de criação. E também na memória artística influi a tradição: cultural ou outra.
Teríamos Platão, para a memória do andrógino, e a perfeição primordial que o mito simboliza.
Teremos Klimt, com O Beijo, para a memória artística mais próxima de Arpad.
O Par evoca O Beijo:
Um mesmo enquadramento mandálico, no caso de Klimt com o brilho excessivo das pedrarias  de que ele tanto usou e abusou nas sua produção. O simbolismo andrógino de Klimt é mais directo, o de Arpad mais discreto. Em Klimt os corpos ocupam todo o espaço, em Arpad há espaço (como o teve na vida) para o atelier e a obra ali mesmo apontados.
À representação sensual e orientalizante de Klimt podemos opôr a leitura moderna que Arpad nos deixa do mito (colectivo, platónico, tanto como pessoal, da vida íntima de marido e mulher, ambos artistas). 
O Par é um quadro que ilustra a união de dois artistas que se amam mas não deixam de ser pintores, vivendo essa união  no atelier onde uma outra parte da sua vida irá decorrer para sempre.
Se Klimt funde os amantes num beijo Arpad une os artistas na obra. A sua marca será ao mesmo tempo pessoal e colectiva, mais moderna e mais universal: pois na união tanto ele como Helena, sua mulher, conservam a sua identidade própria; entregam-se, e encontram-se, não se perdem. A própria composição aponta estes detalhes : o par está atrás da mesa, que de algum modo interrompe o que se poderia julgar fusão total; e as ramagens altas do vaso ultrapassam as cabeças encostadas, desviando um pouco mais o nosso olhar, obrigando a que se saia do exclusivo ângulo do par .
Recordo uma frase de Paula Rego: " um quadro não é uma narrativa, é uma composição, temos de considerar os planos, os ângulos, os elementos verticais, horizontais, circulares,etc. inscritos na composição e ainda o jogo das cores e da matéria ou matérias utilizadas...".
Para além do círculo solar que envolve Arpad e Helena daremos ainda atenção ao negro e ao branco, pares de opostos que ( como no jogo da consciência e do inconsciente tão valorizado pelos surrealistas ) nos permitem uma leitura mais vasta, própria dos grandes arquétipos fundadores.


Wednesday, July 09, 2008

Sete Partidas



Doze Naus, Sete Partidas...
Manuel Alegre continua em viagem: pela História, pela Memória, aprofunda um canto Camoniano, Pessoano e que, à semelhança dos seus antecessores, não desvia o olhar do mundo ( o país) que o rodeia.
Percorre cidades, mas detém-se na sua, que é uma cidade da alma.
De D. Pedro, o guia, retém o desejo de mudança. Desse desejo nasce o poema, permanente  interrogação e enigma:

" Como Santo Agostinho vou pelos campos
da memória. Pronuncio o nome de D.Pedro
e o que fica é o nome não a imagem

porque tudo na memória se contém
e tudo é palavra que nomeia.
Digo D.Pedro e ao certo eu digo quem

é nome e mais que nome tempo e História
e mais que tempo e História é a própria ideia.
Vou com D.Pedro pelos campos da memória."
(poema 5 )

Poesia descritiva, intencional na meditação que propõe, sobre as mudanças e as esperanças dos tempos.
O nosso tempo é de insónia, e "um poema escreve-se entre a noite e a manhã/quando as águas irrompem na memória" (poema 12)... que rasto deixam, neste país, nesta cidade, nesta Europa que melancólica perdeu o rumo, que era destino fundador e inicial? Pessoa diria iniciático, mas Manuel é mais simples, mais directo:

" Em Lisboa assina-se um tratado mas agora
Europa já não é o umbigo do mundo
o vasto mundo global e em toda a parte o mesmo
à mesma hora nos telejornais
...
É então que D.Pedro já regente
concede a D.Henrique a exploração do mar.
E o poema escreve-se quando se aprende
em português o verbo navegar." 
(poema 9)

A navegação hoje é feita em águas profundas, da memória em revolta.
Penso, ao ler este poema: em que salas de aulas poderíamos, a propósito da História de Portugal, explicar o sentido que aqui se esconde e se revela? 
E explicar pelo meio as referencias a Platão, a Aristóteles, Santo Agostinho, Cícero e às cidades de cultura, Bruges, Roma, Veneza, e o que na arte maior aí acontecia?
Fico a pensar se esta Hora ( nada Pessoana) será mais de retirar-se do que de enfrentar um mundo que não deseja escapar à sua condição de alienado e alienante de uma realidade que parece cada vez mais escapar-lhe.
Manuel Alegre foi sempre um lutador e não cala, não esconde, o seu protesto:

" A roda trituradora põe-se a girar
microfones perguntas entrevistas.
O poema escreve-se enquanto leio
com D.Pedro o elogio do Benefício
quem o pode fazer e quem não pode

e de como Aristóteles recomenda
o necessário entendimento de quem faz
e do estranho capítulo em que os servos
podem dar benefícios aos senhores
ou das obras morais que são exemplos.

Coisas que não preocupam quem rasteja
nos corredores da corte e da intriga
...
Com D.Pedro escreve-se no conflito
entre o apelo público e a voz de dentro
no desejo de paz e solidão
em Veneza ou Coimbra onde o poema
pode escever-se traduzindo Cícero".
(poema 10) 

O poema continua, na sua busca do que chamará " a frase certa a escrita nova".
A D.Pedro como a Manuel Alegre, nesta identificação poética, se coloca o dilema : intervir ou aguardar que algum momento, alguma palavra mais íntima, mais secreta e mais certa indique outro caminho.
Na poesia há só um e o mesmo caminho: a escrita, que se expõe, como no dizer paradigmático de Celan: " A poesia já não se impõe, expõe-se".

Aqui se expõem os dilemas de quem pode ser voz que cala ( a escrita, no recolhimento e na intimidade ) e voz que fala ( a da interrogação e exigência face ao mundo em mudança):

"Chega um tempo em que um homem se interroga
sobre o último sentido ou o sem sentido
o como o quê o para quê e o para onde
um tempo de balanço em que se mede
o vivido e o não vivido.
E o poema escreve-se"
.... (poema 11)

Não resisto a trazer aqui a dupla imagem dos hemisférios do tempo a que alude o Padre António Vieira, outro dos gigantes da nossa cultura que celebramos este ano:
" O tempo (como o mundo) tem dous hemisférios:um superior e visível, que é o passado; outro inferior e invisível, que é o futuro.No meio de um e outro hemisfério ficam os horizontes do tempo, que são estes instantes do presente que imos vivendo, onde o passado se termina e o  futuro começa (...)Oh, que de cousas grandes e raras haverá que ver neste novo descubrimento! "
Neste Livro anteprimeiro da História do Futuro (ed. crítica de J.van den Besselaar) os hemisférios do tempo abrem-se à utopia que, fundada na História, pretende redesenhar um destino glorioso. Fernando Pessoa, bebendo também ele no mesmo mito antigo saúda a memória, mas antevê o nevoeiro caindo sobre a Pátria. Manuel Alegre, nesta sua viagem de exaltação de um D.Pedro filósofo, letrado, utopista a seu modo, recupera um tempo cujo horizonte (o presente que imos vivendo) apela à reflexão, para que do poema nasça uma palavra certa, no limiar da esperança. 

Não concluo, deixo ao leitor  o verdadeiro prazer de ler e descobrir.
(Manuel Alegre, Sete Partidas, poema, edições Nelson de Matos, 2008 )




Tuesday, June 17, 2008

Brecht / Kurt Schwaen

De mais um dos muitos colaboradore que compuseram para Brecht, esta Cantiguinha.
 Irónica e popular, mostrando a diversidade de estilos e fontes de inspiração da obra de um grande autor, para quem não havia géneros "menores":

Kleines Lied/ Cantiguinha

E uma vez um homem
aos seus dezoito anos
à pinga se entregou:
a morte lhe causou
morreu logo aos oitenta.
É claro como a água...

E um bébé um dia
de súbito morreu
e tinha só um ano,
por isso é que morreu.
Beber ele não bebeu,
morreu só com um ano.

É claro como a água...
teremos de dizer
o álcool não faz mal...
  

Brecht/ Dessau

De beleza pungente e grande contenção, este Deutsche Miserere que bem diz, ao modo quase de um Hai Kai, como foi grande o sofrimento e a desilusão do post-guerra, na Alemanha.
Canção de Brecht, musicada por Paul Dessau, um dos grandes que o acompanhou.

Miserere Alemão

Sou ainda uma cidade,
por pouco tempo.
Cinquenta gerações 
já me habitaram...
Recebo agora
o pássaro da morte

 em mil anos erguida 
numa lua abatida.


(Recordo apenas que a letra foi adaptada à música, para ser cantada em português).

Sunday, June 15, 2008

BRECHT: Balada da "puta de judeus" Marie Sanders

Esta é  mais uma das aventuras que a obra de Brecht nos proporciona, e a que poderemos assistir no Recital do Festival de Almada.
O desenho que reproduzo é de Bert Tombrock, datado de 1940 - ainda a guerra não terminara- inspirado na balada de Brecht/ Eisler.
Nesta balada se conta a história de uma jovem que se apaixonou por um judeu  e ia ter com ele quando podia, até que foi denunciada por isso, e castigada, de acordo com a nova legislação anti-semita, produzida em Nuremberga: cabeça rapada como criminosa, placa ao pescoço com a inscrição "puta de Judeus" e travessia das ruas para ser publicamente ainda mais humilhada, como lição a outras e outros que se atrevessem ao mesmo ( a mistura das raças...).
Podíamos discutir a actualidade deste texto.
Na minha opinião não podia ser mais actual. O Julius Streicher que é citado no poema existiu e foi,  um poderoso anti-semita, director do  Stuermer e íntimo colaborador de Hitler, que  defendeu no célebre Putsch da Cervejaria de Munique.
Mais tarde foi feito Gauleiter (comissário político) da região da Francónia onde promoveu as perseguições dos nazis  aos judeus, tendo conhecimento dos planos da "Solução Final" e tendo sido, por isso, nos Julgamentos de Nuremberga, condenado à morte e enforcado. Entretanto, quanta gente inocente era levada, como esta pobre Marie Sanders, cujo destino final Brecht deixa em aberto. Mas claro, o Holocausto iniciara, com estes e com tantos outros episódios, fruto de novas leis contra os civis judeus,  a sua marca negra na História. 
A História tem de ser recordada: não nos enganemos, com os movimentos actuais dos skinheads, um pouco por todo o lado, os mega-concertos de histeria colectiva ( que no poema o rufar dos tambores na rua bem evoca), os símbolos recuperados, como se de brincadeira se tratasse, e ah, não esquecer aquela eterna e perversa capacidade de denúncia que o ser humano tem e logo põe em prática, se daí adivinha algum proveito.
Há muita lição escondida que podemos retirar deste poema.
O mundo fecha os olhos aos novos genocídios, às novas humilhações, e haverá sempre algum chefe, ou talvez só algum "modesto" vizinho, disponível para o afiar da faca, o apontar do dedo, o pendurar da placa, o aplaudir da rua... 
Não foi fácil o trabalho de tradução da letra de Brecht, de modo a respeitar ao máximo a partitura belíssima de Eisler. O resultado aqui fica, depois do prazeiroso exercício (como diriam os nossos amigos brasileiros) feito com Luís Madureira, Teresa Gafeira e last but never least, Jeff Cohen, o grande companheiro de aventura.

Balada da "Puta de Judeus" Marie Sanders

Em Nuremberga passaram uma lei
fazendo chorar muitas mulheres  
que dormiam com o homem errado.
"Mais e mais gente nas ruas,
com força toca o tambor,
Deus do Ceú, se houvesse alguma coisa
seria hoje à noite"...

Marie Sanders, teu amado 
tem o cabelo muito preto,
 melhor é não o  veres hoje, 
como ontem o foste ver.
" Mais e mais gente nas ruas,
com força toca o tambor,
Deus do Céu, se houvesse alguma coisa
seria hoje à noite"...

Minha mãe, dá-me a chave
nem tudo corre mal,
A lua está igual.
"Mais e mais gente nas ruas,
com força toca o tambor,
Deus do Céu, se houvesse alguma coisa
seria hoje à noite"...

Certa manhã, às nove, atravessou a cidade,
de camisa e de placa ao pescoço,
o cabelo rapado, a rua aos berros,
ela de olhar gelado...
" A gente fica nas ruas,
o Streicher vai falar esta noite...
Grande Deus, se soubessem ouvir,
saberiam o que fazem comnosco ".

Já agora e para que não se estranhe, há diferença, neste último verso, entre a edição alemã e a partitura de Eisler: onde acima eu traduzi,olhando só o texto, "saberiam o que fazem comnosco", tem Eisler: "saberiam o que fazem com elas". Esta versão será a respeitada, no recital.
 A alteração pouca importância tem, face ao sentido profundo do que Brecht pretendeu dizer.






Wednesday, June 11, 2008

Canções de Brecht


O Festival de Almada apresenta este ano Canções de Brecht que serão interpretadas por Teresa Gafeira e Luís Madureira, ambos bem conhecidos no nosso meio artístico.
Teresa deu a sua voz ao Marinheiro de Fernando Pessoa, ainda recentemente, trazendo ao público uma das obras do nosso notável poeta, cujos segredos ainda continuarão a ser desvendados por mais algum tempo.
Quanto ao Luís, quem assistiu ao recital de Façade, no Teatro São Carlos, também recentemente, não mais deixará de acompanhar qualquer espectáculo seu. 
Ao prazer que nos é sempre dado, se gostamos de teatro e de canto, acrescenta-se, com estes artistas, o prazer da inteligência subtil das suas interpretações. Com eles estará Jeff Cohen, cujo curriculum inclui o ter acompanhado as grandes divas brechtianas, e isso mais uma vez recentemente em Paris. 
Sublinho o recentemente, para que se note que a escolha de Brecht por estes intérpretes não é regresso ao passado, mas antes o elogio e o cântico de um eterno presente que texto e música ajudarão a entender melhor. 
Num ensaio de 1935 Brecht afirmava que era a música "que permitia a existência de um teatro poético". A música o ajudaria à refundação de um novo modelo, que chamou  de teatro épico , conseguindo, através dos "cortes" musicais que interpunha no texto, os seus melhores efeitos, de distanciação e de surpresa, por um lado, mas também, ( e disso talvez ele não estivesse à espera) de uma enorme adesão e sucesso. As canções adquiriram vida própria e eram cantadas por todo o lado...
O renome de Brecht ficou a dever-se, em primeiro lugar aos libretos de ópera, aos bailados, às cantatas drmáticas, filmes, e até, escreve um dos seus estudiosos, "jingles comerciais". O que não entrava pelos olhos no palco teatral, com Brecht entraria pelos ouvidos: a sua carreira artística estava traçada. 
Um célebre crítico musical do seu tempo escrevia: " A Nova Música da Alemanha encontrou o seu poeta. O poeta é Bertolt Brecht".
 Basta dizer que, das suas quase 50 produções dramáticas, só uma não é musicada. E continuando, com os números dados por Kim Kowalke ("Brecht and music: theory and practice", in The Cambridge Companion to Brecht) mais de 600 dos seus mais de 1500 poemas indicam nos títulos e mostram na estrutura o género musical (balada, canção...etc.). 
Recital a não perder.



Tuesday, June 03, 2008

Arte e História Militar


Da Série História Militar, é publicada na ed. Prefácio esta obra dedicada ao Exército Português na Guerra Peninsular 8vol.1, do Rossilhão ao fim da Segunda Invasão Francesa,1807-1810). O autor é João Torres Centeno, advogado de profissão, que se tem dedicado a estes estudos, continuando com este volume uma série que tem surgido com o alto Patrocínio da Comissão Portuguesa de História Militar.

Apresenta-se nela o que o autor define como um breve desenvolvimento, desde 1640 até às reformas do fim do séc.XVIII e mais detalhadamente a organização desde a campanha do Rossilhão até ao fim da 2a. Invasão, quando se funde com o Exército
Britânico no exército de operações. Este viria a ser o embrião do Exército Anglo-Português, superiormente comandado pelo futuro Duque de Wellington, vencedor de Napoleão em Waterloo.
Duas chamadas de atenção: com abundante matéria de investigação, muito e interessante material iconográfico, lembra que a História de Portugal se fez de muita inteligência e arte militar, e desde longe.
Para quem se dedique a estes assuntos, recomenda-se que acorra à feira do Livro, enquanto é tempo. E que se leia, sempre, e cada vez mais, não deixando que se apague a nossa memória política, social, cultural. Pois vendo bem, onde há leitura e cultura a memória estará sempre presente.
Cito o director da Fundação Murnau (para o cinema ), o que ele diz serve para toda a memória cultural:
" O que seria a vida sem memórias ?
O que seriam as memórias sem imagens?
O que seriam as imagens dos nossos tempos sem o cinema ?"

O livro ainda  é o nosso cinema, no tocante à memória histórica.

Monday, June 02, 2008

Fashion Now 2


Af Vandevorst:
" Fashion is a language".
" Beauty lies in the unexpected".
E quanto às lições de vida: " A rolling stone gathers no moss".




Wednesday, May 28, 2008

Memórias do Holocausto


Com o título de DIE ZEICHNUNG UEBERLEBT , O Desenho Sobrevive, publicou Maike Bruhns uma obra com os testemunhos de presos do campo de concentração de Neuengamme ( Ed. Temmen, 2007 ).
São presos oriundos de vários paises: Dinamarca, Alemanha, França, Holanda, Noruega, União Soviética, Hungria, todos têm em comum o serem ou judeus, ou ciganos, ou comunistas ou simplesmente resistentes activos contra o nazismo e sua ideologia perniciosa, que não desejaríamos ver reproduzida sob nenhuma outra forma, manifesta ou  oculta.
Aquele que, por se sentir todo poderoso ( ilusão que os tempos, a prazo, se encarregam de destruir ) se permite ofender, perseguir até à violação dos mais íntimos direitos e preceitos da dignidade humana, da relação com o outro, merece que o denunciem.
Estes presos, que tinham o dom de saber desenhar cumpriram esse dever da denúncia, no desejo de que a memória perpetuada não voltasse a permitir tal horror. 
Encontram-se nesta obra exemplos comovedores, pela capacidade de resistência (marca do homem profundo). 
Mas chegou a hora de apontar para as imagens que agora e repetidamente as televisões de várias partes do mundo nos dão a conhecer: as crianças morrendo à fome no Sudão são uma parte do que o Ocidente está a permitir, em muitos pontos da África sofredora. Como permitiu, durante um tempo, que se morresse nos campos de concentração. 
Nós, entre nós, discutimos neste momento a fome em Portugal: está nas cinturas de Lisboa, ou mesmo no seu coração. Está fora dela, no chamado Portugal interior. 
Que mão irá desenhar esses rostos, esses corpos, esses olhos que já não olham de frente?
Não tanto para compaixão como para alerta? E só agora se deu por isso? 
Os novos campos terão outro nome, mas serão à mesma campos de abandono e sofrimento inenarráveis.
Na imagem vemos um preso doente a ser obrigado a mostrar aos guardas se ainda tinha diarreia. Se tivesse voltava mais um dia à barraca hospitalar; de qualquer modo, passado esse dia, estivesse melhor ou pior voltava ao trabalho ou era gazeado, se demasiado fraco.
Nós que fazemos com os fracos ? Que país é este?
 E que Europa é esta, já que dizemos que é tudo culpa da Europa?




Saturday, May 17, 2008

Os poemas de Jayro


Chega-me às mãos, enviado por Henrique Chaudon, poeta amigo, o livro de poemas de Jayro José Xavier:
POEMAS, 2007.
Abre com duas Epístolas, cuja elegância clássica nos conduz, pelo embalar do verso, até aos nossos mitos culturais de raiz mais profunda. Evoca Ovídio, um dos  grandes Mestres, mas é de Orfeu que recolhemos o lamento:
" Este é um tempo sem mitos
onde Orfeu sufoca.
Inútil pretender
a primavera, o brando 
rumor dos remos nas 
águas. E aqueles deuses
claros, aqueles deuses
de uma era sem orvalho".

No Brasil como em Portugal, sem nenhuma necessidade de acordo ortográfico (que parece imposto por razões que nada têm a ver com nossa mútua cultura) a poesia cresce nos seus lugares naturais, onde é amada e lida, cá e lá. Sempre li os autores brasileiros de que me ia informando e cuja leitura me apaixonava. Recordo Clarisse Lispector, era eu muito jovem ainda. E tantos outros. Penso: o que fará o acordo a um autor como Guimarães Rosa ? E se agora, por um acaso feliz, de mão de amigo, leio Jayro, direi com ele, no seu poema :
Eu Me Defendo com Sintaxe e Rosas

"Eu me defendo com sintaxe rosas
de teorias e teocracias,
quais, por aéreas brisas, fugidias
e quais, por duros ventos, desditosas.
Com soprarem as duas, enganosas,
de trevas são as trilhas destes dias,
daí a minha espada- de- utopias
ferindo o mundo (e mote) em novas glosas.
Fará meu verso a fábula fecundo
e, um dia, um trovador de Sagitário
o reino que habitemos mais jucundo.
Terçar armas com reis é temerário;
pior, porém, é repensar o mundo
sem alma de poeta visionário".

Como não sentir o eco camoniano, doloroso, neste soneto que os tempos e o tempo tornam tão actual ? 
O livro de Jayro lê-se de um fôlego, e depois torna-se a ele para recuperar o gosto das nossas próprias emoções perdidas. 
Ele diz, como Pessoa diria: "Sou um bicho que pensa.E a quem oprime/ a solidão de ser, sem nenhum crime" (in Dois Sonetos do Último Verão).

Deseja-se um Acordo? Publiquem-se em Portugal estes poetas das novas gerações.O seu sopro é moderno, nem podia ser de outro modo, e a sua cultura é universal.
 

Thursday, May 15, 2008







Está de saída O MARINHEIRO de Fernando Pessoa, na belíssima encenação de Alain Ollivier. O bom gosto da encenação define-se pela simplicidade elegante, contida, do design de luz, dos tons de cena, cortina inicial e final como que tecida na própria névoa do texto, máscaras que unem a diversidade, ainda que só aparente, das três irmãs veladoras, mas acima de tudo e isso tem de ser sublinhado e aplaudido, a indicação do modo de dizer o texto pessoano (difícil quanto baste): as vozes correm leves e fluidas, como um sopro, adquirindo só a dado momento a intensidade que permite delimitar o sonho, o medo, a comoção, ela própria como que retirada de si mesma e contida, como tudo o mais.
Uma encenação centrada na essência e na respiração do que o texto diz e desdiz, ou simplesmente deixa adivinhar, e apoiada na capacidade exemplar das intérpretes, que nunca sobrepõem ao dizer o exercício do seu virtuosismo, que é notável. 
Está de parabéns, o Teatro de Almada. Assim estivessem de parabéns os nossos leitores-espectadores,os nossos professores, os nossos estudantes.
Como lemos e estudamos hoje a obra de um grande autor? Por pequenos resumos, simplificados ?
Nada é simples na obra de uma grande autor, mas cabe ao seus intérpretes, neste caso o encenador e os seus actores, tornar mais acessível, mais inteligível, mais legível, a obra que apresentam.  
Assim, logo nas máscaras, de penteado quase aterrador, de tão carregado de noite, somos levados a compreender que estamos ali diante de algo mais do que meras veladoras de um cadáver.
Houve mão de Mestre, nos penteados que ornamentam as cabeças e que numa primeira impressão poderiam evocar as antigas Erínias. Estamos de facto perante formas antigas, mas não as vingadoras.Ali não houve crime, não houve abuso nem excesso: houve apenas ausência, regresso, sem que se saiba logo a que outra esfera.  Estamos perante as Mães, na imobilidade só aparente do seu Reino, o que fez tremer Fauso e Mefisto, só à menção do nome. Já o nome é sagrado, é divino, é princípio e fim de um outro mundo: ali onde a própria Urform,  origem primordial, terá lugar, se forma, se tece, e por fim se desvanece regresssando à poeira de que veio.
Poeira cósmica, abissal, nuvem galáctica que o sonho de alguma vela inexistente  atravessou, sem chegar ao possível espaço desejado. 
A obra é feita de espera, mais do que de desejo: algo definidor das marcas de Pessoa, no que escreve. Vive-se (espera-se) no intervalo de ser. A grande marca (o grande marco ) é o tempo, em suspenso. O Ser e o Tempo podiam ser balizas nesta peça, antecipando a magna obra de um Heidegger. O Tempo eterno flui: contém o passado, o presente e o futuro, ainda que ignorado. Mas o Ser, ou melhor, a consciência de Ser, petrificou: é o cadáver velado, é o quarto elemento que faltaria para completar o Todo da existência. 
Esse cadáver que nos interpela, como interpela as veladoras, é o que, por associação de imagens e ideias (no fundo o verdadeiro modelo estruturante da peça, a associação deslizante de imagens e ideias) confere às figuras hieráticas que vão quebrando o silêncio dessa noite espectral em que tudo podia acontecer e nada acontece a não ser o já acontecido- é o que confere, dizia eu, uma forte carga simbólica a um texto que ficará para sempre como texto emblemático da criação pessoana. 
Definido como drama estático, podíamos defini-lo, como faz Teresa Rita Lopes, como extático. Só que a experiência aqui não é a do divino a que a alma em êxtase se une, fundida numa mesma luz primordial. Deus é o nome da ausência, nunca se presentifica, ou se  actualiza, em movimento que leve da potência ao acto. O acto não existe, nem sequer o sonho dele. E se a palavra se constitui, nesta peça, em desejo algo impossível de dizer é porque sem palavra, sem Verbo, não há vida. 
E apesar de tudo é feita da Palavra, do permanente desejo e busca da Palavra, a vida de Pessoa. Goethe falou na Ur-Form, Pessoa responderia com a Ur-Wort.
Ele teve só uma pátria: a da língua portuguesa. 
   
 

Monday, May 12, 2008

Brecht, As Canções de Teatro


Aceitei o comvite de um bom amigo para fazer versões livres das canções que B.Brecht escreveu para teatro e foram musicadas por compositores como Weill,Bruinier, Hindemith, Eisler, Dessau, Britten, Adorno,entre vários outros, e cantadas por Brecht ele mesmo, Lotte Lenya, Helene Weigel, Gisela May, Milva, David Bowie, etc.
Tratou-se de uma proposta irrecusável, que me deu o maior prazer.
Em breve, e isto é só o anúncio, começarei a blogar, poema a poema, ou canção a canção, as versões que serão cantadas por Luís Madureira e Teresa Gafeira, acompanhados por um Mestre: Jeff Cohen.
A promessa está feita, o trabalho quase acabado.
Para quem possa ler alemão, deixo uma indicação bibliográfica preciosa, cuja tradução ao menos para inglês deveria existir e ainda não existe: 
de ALBRECHT DUMLING, LASST EUCH NICHT VERFUEHREN.Brecht und die Musik, ed. Kindler, 1985.
Magnífico guia para a aventura musical de Brecht através da sua vida e da sua obra, num verdadeiro percurso de gigante, comparável ao de um Shakespeare ou de um Goethe.
Ah, e como são actuais as suas propostas de revolução numa sociedade dolorosamente adormecida como está a nossa!

Monday, May 05, 2008

Pina Bausch


CCB e SÃO LUIZ oferecem ao público português um Festival Pina Bausch.José Sasportes diz tudo sobre a sua obra, ao defini-la como " acções para bailarinos".
São de facto acções, pois todo o movimento implica uma intenção que é acção. 
Mas não são acções ao acaso, arbitrárias; são acções com sentido, um sentido que se apura na extrema exigência e no extremo rigor do desenho no espaço de trabalho.
Por trás de cada gesto, excessivo ou contido, a reflexão cuidada, a justificação, ainda que sub-liminal, da escolha feita.
Quanto menos se revela, mais se diz.
Há algo da mística oriental (até mesmo na ironia que irrompe e rompe algum acontecimento) na meditação e na prática bauschiana.
Corre-se muito ? mas o importante é mesmo estar parado.
Fala-se? Mas o importante é mesmo estar calado.
É-se feliz, por momentos?
Mas a dôr não deixa de estar presente, com o seu rasgão, com o seu grito.
A natureza é fértil, resistente, é a Mãe abundante?
Mas o choro das crianças faz-se ouvir para sempre.
Numa realidade fragmentada, de múltipla leitura, fica a imagem que se guarda melhor,  e o Todo poderá ser lido nela : o do cego correr da vida, do quotidiano onde por vezes uma louca ânsia de Perfeição e Beleza deixará a sua marca. 
Pequeno Poema das Crianças de Lodz

Em Lodz
o guarda chamou as mães:
peguem nas crianças 
levem-nas para o jardim
sentem-nas viradas 
de costas para mim.
Ensinem-lhes o jogo 
do 1, 2, 3 !
À contagem do três
não olhem para trás:
ficarão a dormir 
numa cama de folhas
quem sabe sem sofrer.

Wednesday, April 23, 2008

Henrique Chaudon


Há fantásticas coincidências: no dia em que vou ao Teatro São Luiz ouvir as Valsas Brasileiras de Francisco Mignone, recebo o livro de poemas de Henrique Chaudon, meu amigo transatlântico.
Nas valsas encontro o som dos chorinhos, atravessado por Chopin, entre outros mais modernos europeus. Mas o que fica na alma é essa mistura da tradição e do lamento brasileiro com o exercício ora romântico ora modernista das composições de Mignone.
Da pianista Alexandra Mascolo-David escreveu o crítico do Washington Post:
" a splendid pianist, refined, searching and expressive, and her playing is loaded with insight and interpretative detail".
Não poderei dizer melhor.
Quanto ao Henrique, seus poemas são para reler devagar, depois de os ter lido.Também nele encontro o fundo cruzar de linguagens: da paisagem e dos dias brasileiros de sua morada, suas pessoas, seus lugares preferidos, com o trabalho de sublimação que opera na palavra poética. Seu dizer é directo, despido, ainda que emocionado.

Poema do mais Profundo

" Meu coração é campo extenso
onde dormem flores, trigo, ervas.
Meu coração é lago tranquilo
onde passam nuvens, o sol, a lua.
Meu coração é fonte
regato
rio.

Meu coração é poço.

Lá 
do profundo silêncio
posso mirar as estrelas ".

A terra, a água, o ar (céu ) - os elementos da vida natural caminham para uma simbiose na meditação que propõe o último verso: o poço do profundo silêncio onde pode mirar as estrelas.
Walt Whitman está na epígrafe, apontando essa sensualidade terreal, mas os poetas são transformadores, alteram tudo o que tocam, e poderemos encontrar também aqui  a marca de uma  sabedoria oriental, que a imagem do poço condensa, como no Yi King:
n. 48 Tsing, o Poço:
O poço significa união.
O poço não aumenta nem diminui, pode mudar-se a cidade, mas não pode mudar-se o poço... a acção de beber a água fresca do poço repousa na sua posição central e correcta. 
Aqui a noção de centro imóvel é o mais importante, e é esse sentimento que os versos finais do poema de Henrique nos transmitem. 
Noutro poema escreve:
"...
É hora de ficar parado
sentado imovelmente na cadeira.
Vejo a noite em me redor:
desgasta a pedra, os campos,
meus cabelos, tudo quanto toco.
Não me esforçarei agora.
Sentado aqui nesta cadeira
ouvirei seu falar mudo e convincente:
ensina mais que os longes todos, mais que os alfarrábios.

Mais,
muito mais".

Do panteísmo latente à observação realista de um Erich Fried ou ainda, no fecho que é súmula, o mais e o menos de um Celan quando escreve :
"tudo é menos do que/ é/ tudo é mais" ( in Cello-Einsatz)
Celan do fundo da sua noite da alma, Chaudon do fundo da sua melancolia e abandono ao real ( o real é o destino). Um pouco como nas valsas brasileiras. 


 
 

Monday, April 21, 2008

Corpus Jan Fabre



Obra magnífica, sobre o percurso artístico de um grande artista, Jan Fabre.
Como nos diz  Luk van den Dries, no prefácio,a obra de Fabre incarna uma das formas exemplares do teatro do nosso tempo.
Teatro radical, implantado em profundidade: guarda o eco da grande tradição, os primeiros rituais, o teatro grego, os dramas da Idade-Média, Renascimento e Barroco.
Um teatro feito de memória, actualizada.
O livro é uma compilação de ideias, antes de mais. Mas ainda de palavras e imagens. Contempla os segredos do trabalho do palco, à medida que  vai sendo preenchido com os seus corpos próprios: dos actores, e do guia que é Fabre, mesmo no improviso, ou sobretudo no improviso. O melhor improviso é o que foi mais profundamente reflectido, preparado. Não há arbitrariedade na grande arte, quem não perceber esta lógica da criação original, está longe de poder vir a ser um criador. 
Diz Luk que o seu livro tenta penetrar " na alquimia da criação". Fabre é o grande alquimista, o grande transformador que sublima a imperfeição da existência no corpo. Mas esse é o desafio: a imperfeição do corpo, que o seu trabalho alquímico em todos os sentidos ajudará a ultrapassar. 
Ao abordar a imagem do corpo na obra de Fabre, Luk aborda de igual modo uma concepção moderna da estética do teatro.Passo a citar, lembrando que muito do que é dito se pode igualmente aplicar à dança, como arte suprema do corpo no espaço.
" O teatro é uma arte contaminada.Uma arte contaminada pela vida.E trazida por actores que não podem subtrair-se à sua forma humana, seu peso, a envergadura dos seus membros, seu sexo.Aparece um corpo, aparece   sempre um corpo, e nós olhamos para ele.Este corpo fala, sua, liberta uma aura, atrai ou repele. O teatro é um media carnívoro. Alimenta-se de corporalidade, de corpos que não se podem controlar, que são ignorantes das leis e excerbam ingenuamente as suas próprias paixões. Corpos que querem tudo e cada vez mais. Namorando perigosamente as fronteiras do impossível, desafiando as interdições da moral....O teatro é um cadafalso a partir do qual os corpos se lançam no abismo". 

Monday, April 14, 2008

Armando Silva Carvalho



O seu último livro O Amante Japonês, na editora Assírio e Alvim.
Lido o poeta, ler os livros que ele lê:
Camilo Pessanha
Pessoa-Campos (mas quem lê este, lê todos...)
Herberto Helder
Novalis
William Blake
Luiz Pacheco
Carlos de Oliveira (sim Finisterra, sempre...)
Manuel de Freitas
Sá de Miranda
...

De um roteiro mais íntimo e selvagem, a um roteiro não menos íntimo e selvagem (Wagner também lá está, com a sua vertigem musical, ambição desmedida que só em Veneza terá fim) Armando oferece neste seu livro os poemas que só ele sabe erguer, como

"Altos ciprestes, esses poemas
Que se perfilam ao longe na planície escrita dos meus dias.
Negras presenças do mundo, dos homens, da rosa
Incendiada nas palavras. 
...
Versos do começo e do fim
Fábulas de nervos ao redor do cérebro
Quem vos traz aqui ao sabor do vento imoderado
De encontro ao vidro sujo do meu rosto e do carro ?"

Viaja-se, neste livro.
Num carro que tem asas e que voa, por vezes desamparado, de lugar em lugar. Mas o poeta sabe qual é o seu ofício, qual é o seu lugar.
Uma palavra acesa na fímbria do tecido, na pétala da rosa ou na espuma do mar. Nem sempre se dirá a luz, mas sempre sempre esse bater convulso do sangue no coração do mundo.



Friday, April 04, 2008

Ana Marques Gastão, Lápis Mínimo



Em edição cuidada, como todas aquelas de que Piedade Ferreira e Rogério Petinga se ocupam, saiu na colecção Oceanos mais um livro de Ana Marques Gastão, 
LÁPIS MÍNIMO.
Já a côr escolhida para a capa indica a suave melancolia que encontraremos nos seus versos, muito próximos de uma sensibilidade oriental, mística por vezes e igualmente  discreta, ainda que directa.
Há uma grande contenção e elegância de alma na escrita de Ana, que me faz lembrar a Princesa Shikishi , filha do Imperador Goshirakawa, que serviu como vestal do templo e deixou um legado de escritos melancólicos de grande luminosidade e beleza. Foi no seu tempo considerada  uma das glórias da criação poética, e ainda hoje quem a  lê não pode deixar de se encantar :é a alma que fala, na sua simplicidade e nudez. 
Deste século XII japonês passamos, com o mesmo encantamento fluido, para os aforismos de Ana Marques Gastão.
São feitos de prosa poética, e um Michaux, por exemplo, se fosse vivo nunca lhes negaria o título de poemas. 
Poemas escritos, como ela diz, com lápis mínimo: sentimentos-sugestões-imagens-reflexões em tom menor, usando agora uma linguagem musical.
Há música nos seus textos, no ritmo da sua escrita.
Não é formal, é balançada, mesmo quando alguma suspeição ou amargura a atravessa. 
O olhar sapiente (consciente) distancia-se, de si e dos outros, no acto de (se) escrever.Basta evocar Pessoa, Michaux, Celan (que muito admirava Michaux, considerava-se seu discípulo) para percebermos que não há ingenuidade no acto de criação, por muito que a busca da palavra no tempo nos absorva e não cesse. Os poetas perdem, muito cedo, o olhar da infância, a relação entregue e disponível com o mundo. E é no esforço da Ponte que vai surgindo a Obra. As palavras são o seu caminhar.
Quando Ana escreve:
"Roubo-te à linguagem, só assim serás real" (P.43) diz menos e diz mais (Celan) do que aquilo que diz e ficou dito. 
Nunca nada fica dito, as palavras levantam vôo, seguem o seu caminho oculto, irão perder-se ou encontrar-se mais longe, noutro espaço, do "Interior Longínquo" de que falava Michaux.
Com Lápis Mínimo desenha-se um espaço-tempo ideal, de apelo e rejeição, de meditação-aceitação do que em si mesmo, pela vida e pela Obra, o autor vai descobrindo: " Que na memória fiquem não só os lugares, mas também as horas"(p.42).
Escrever é descobrir, mais do que inventar: o segredo está lá, no interior dos mandalas. 
Ana pode dizer "Sou uma caçadora de emoções"(p.84). Mas sabe que é transformadora, é esse o seu segredo. Esse o fio que nos leva, de página em página, à procura de mais: sabemos  de onde partiu ? Pois queremos saber onde irá chegar: rasgada a pele, onde o Outono, o osso do Inverno, a Primavera do coração que bate.
Bem pode dizer, como nos diz no fim:
"A palavra é o meu nome. A palavra quer ser outra de mim, está além".

Tuesday, April 01, 2008

Henri Michaux


De 2005, mas que nunca perderá actualidade, o estudo de Robert Bréchon sobre Henri Michaux:
HENRI MICHAUX, La poésie comme destin, ed. aden.
Proposto como Biografia, é mais do que isso.
Bréchon, já no seu tratamento da obra de Fernando Pessoa nos habituara a uma linguagem erudita, de bom conhecedor (porque amando a obra daquele que nos apresentava) sem contudo perder a elegância, a fluidez do discurso.
O que fazia, no caso de Pessoa, como agora no caso de Michaux, o exercício do estudo e da leitura algo de muito sedutor. 
Os franceses são sedutores e Bréchon, neste seu livro, é sedutor em extremo. Abre-se, lê-se sem mais interrupções, capítulo a capítulo, até chegar ao fim.
Conta, como que em conversa de mesa de café, como descobriu Michaux, como o leu pela primeira vez, como veio depois a conhecê-lo pessoalmente, sem que por isso se tenham tornado de facto amigos íntimos.
Com que facilidade, morto Michaux, celebrado no mundo, editado, reeditado, traduzido, exposto em galerias e museus (era pintor e a sua obra neste campo não era de menor importância) poderia Bréchon fazer desses encontros algo de superiormente marcado e marcante, para ambos:
 Mas não; de honestidade intelectual exemplar, parte dessa elegância de ser de que falei, Bréchon diz simplesmente que Michaux a ele o impressionou e arrebatou pela obra, como pela personalidade, só aparentemente frágil (tinha um sopro cardíaco), mas que nunca chegaram a ser amigos íntimos, no pleno sentido da palavra. E conta o episódio dos convites para tomar chá, que aceitava, acompanhado às vezes pela sua mulher:
"Il la recevait avec une exquise courtoisie, devant une tasse de thé presque incolore.
Elle était fascinée par l'extrême distinction de cet homme, proche de la soixantaine...
d'une présence légère et diaphane, avec pourtant des éclats de voix, des chuchotements, des rires étouffés".
A alegria dos encontros perdia-se à medida que se aproximava a publicação da obra prevista de Michaux. Era, no relacionamento com os editores, um autor difícil:
 "J' étais pris entre les exigences de Mallet (o editor) qui avait conçu pour les volumes de la collection un plan type auquel chaque auteur devait se conformer, et celles de Michaux, dont le mot préféré était non".
E segue a saborosa narrativa, entremeada com referências à obra, marcando de forma sensível os grandes temas que seriam para sempre centrais e vitais no decurso da vida de um criador que, ao contrário do que sempre julgara, viveria até bastante tarde. 
Um dos poemas citados logo de início põe a nú essa preocupação, de hipocondríaco-poeta, com o corpo:

Je suis né troué

Il souffle un vent terrible.
Ce n'est qu'un petit trou dans ma poitrine
Mais il souffle un vent terrible.
(...)
Ah! Comme on est mal dans ma peau!
(...)
Et c'est ma vie, ma vie par le vide.
S'il disparaît, ce vide, je me cherche, je m'affole et c'est encore pis.
....
Nasci furado

Sopra um vento terrível.
É só um buraquinho no meu peito
mas sopra lá dentro um vento terrível.
(...)
Ah, como se está mal na minha pele!
(...)
E é a minha vida, a minha vida pelo vazio.
Se desaparece, este vazio, procuro-me, assusto-me e é ainda pior.

Bréchon refere-se a este poema e a um outro (Nausée, ou C'est la Mort qui Vient), como expressões do "sofrimento ontológico de Michaux", ao fim e ao cabo "o único tema da sua poesia"; e acrescenta: 
"il souffre du manque d'être, qui est l'envers d'un excès d'être" (ele  sofre da falta de ser, que é o reverso de um excesso de ser). 
E não dizia já Paul Celan, que "tudo é menos do que é/ tudo é mais " ?
Em Michaux tudo é mais.
E Bréchon, poeta, além de ensaísta notável, é o guia perfeito para esta leitura-aventura de alma.




Primavera no São Luiz

Monday, March 31, 2008

Ilustrações



Desenho de uma menina de 10 anos para um poema, O MONTE

Anoitecer suave
no topo das colinas

calam-se os pássaros,
as lebres e os coelhos
aninham-se nas tocas

sai um morcego
a debicar romãs

os gatos sorrateiros
saltam entre os telhados
em busca de algum ninho
ou de algum rato

luar de Agosto

lá em baixo
na estrada
conversam os namorados
...

( do livro a publicar, Outonais e outros poemas)

Wednesday, March 26, 2008

A Arte do Actor


Em regra são os encenadores, os dramaturgos, os críticos e teóricos que se dirigem aos actores.
Mas há outros que o fazem e cuja reflexão, neste caso poético-filosófica, não é menos interessante, antes pelo contrário. Refiro-me a HERBERTO HELDER, poeta de eleição, cujo poema merecia ser objecto de monólogo integrado nalgum espectáculo que o desse a conhecer.
O POEMACTO tem na parte III uma evocação do actor como alguém que "subtrai Deus de Deus", dizendo "uma palavra inaudível". Merecia ser lido na íntegra, eu deixo aqui  umas estrofes, celebrando assim o dia mundial do teatro.

III

O actor acende a boca. Depois, os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores.
O actor põe e tira a cabeça
de búfalo.
De veado.
De rinoceronte.
Põe flores nos cornos.
Ninguém ama tão desalmadamente
como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.
Bocado janela para fora.
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo
ao pequeno talento humano.
O actor estala como sal queimado.
O que rutila, o que arde destacadamente
na noite, é o actor, com
uma voz pura monotonamente batida
pela solidão universal.
O espantoso actor que tira e coloca
e retira
o adjectivo da coisa, a subtileza
da forma,
e precipita a verdade.
De um lado extrai a maçã com sua
divagação de maçã.
Fabrica peixes mergulhados na própria
labareda de peixes.
Porque o actor está como a maçã.
O actor é um peixe.


Sorri assim o actor contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus,
e dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o actor é uma astronave que atravessa
a distância de Deus.
Embrulha. Desvela.
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra
à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.
O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.
O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente
como o actor.
Como a unidade do actor.

O actor é um advérbio que ramificou
de um substantivo.
E o substantivo retorna e gira,
e o actor é um adjectivo.
É um nome que provém ultimamente
do Nome.
Nome que se murmura em si, e agita,
e enlouquece.
O actor é o grande Nome cheio de holofotes.
O nome que cega.
Que sangra.
Que é o sangue
Assim o actor levanta o corpo, 
enche o corpo com melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.
Como o corpo do actor.
........
O actor ama em acção de estrela.
Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimento
de onde brota a pantomima.
O actor vê aparecer a amanhã sobre a cama.
Vê a cobra entre as pernas.
O actor vê fulminantemente
como é puro.
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral.

O actor em estado geral de graça.

(in Poemacto, 1961, dedicado a Luis Pacheco.)