Wednesday, July 18, 2012

Manuel Alegre II


José Gil, numa obra que gosto de recordar, A Imagem-Nua e as pequenas percepções (1996), abre com “A visão do invisível”  e dedica um capítulo em especial ao “Caos  e Quadrado Negro” (p. 135).

Interroga-se José Gil: “ Porque é que a percepção estética precisa de ao mesmo tempo conhecer e ignorar a forma como objecto? Se a percepção neutraliza o conhecimento, este último, ainda que neutralizado, permanence: o quadro mais abstracto conserva sempre alguma coisa de ‘figurativo’. Até mesmo no Quadrado Branco sobre Fundo Branco de Malevitch o olhar  reconhece alguma coisa, um ‘quadrado’ pintado sobre um ‘fundo’ falso: adivinham-se aqui formas e fantasmas de formas. O quadro mais informal mostra ainda pontos, manchas, contornos, ou materiais rugosos, pregueados, lisos” (p.136).

De modo que a perturbadora criação do Quadrado Branco e a do Quadrado Negro levam o pintor a considerar a ruptura “total e definitiva com o mundo do objecto” (p.138).

Nasce a arte abstracta, como Suprematismo.

Neste movimento, de descoberta e de anulação, o que acontece à imagem como representação?

Permite o anular da imagem dar lugar a novas formas ainda que não o desejem ser? Ou é imperioso que, para existir negação, haja primeiro alguma forma de real que se negue?

E como podemos, pintando, anular a pintura? Ou falando anular a palavra? Esvaziando o sentido? Procurando um sentido no Vazio criado, adivinhado?

Encontro numa poema recente de Manuel Alegre uma interrogação semelhante:
Depois do Branco
Quem sabe o que na página se esconde
e se dentro do branco está um muro

e se depois do muro não há onde

e se depois do branco é tudo escuro?


Quem sabe o que pode acontecer

quando ao verso já escrito outro se junta

e tudo está no verso por escrever
e o que se escreve é só uma pergunta?

Quem sabe o que se vê e não se vê
se por dentro do branco apenas cabe
esse nome que nunca ninguém lê
e o verso que se sabe e não se sabe?
(in NADA ESTÁ ESCRITO, 2012 )




Este poema sublinha uma contradição de fundo : 

a do branco com o escuro ( podia chamar-se negro, como na alquimia e teríamos claramente o jogo de opostos da albedo com a nigredo); a da afirmação (do verso escrito) com a pergunta (a dúvida).

Servem estas reflexões para o aprofundamento da definição de Imagem? Imagem como representação ou anulação de um real que na Arte perdeu o sentido?

Haverá sempre um momento em que a energia profunda de uma ideia poderá apropriar-se da mão que pinta, ou que escreve – e então nascerá uma Imagem: mais realista do que outrora ( com os surrealistas, por exemplo) ou mais abstracta, mas representando sempre a pulsão que impele o criador nesse seu gesto, que será sempre vivido como primeiro, primordial e fundador.

Sendo que este branco de Manuel Alegre, como o do Quadrado de Malevitch, pressupõe uma revelação que o pintor, no seu tempo, também teve. Não a da fusão intemporal de Rimbaud no seu poema, mas a da anulação objectiva, temporal,  que o branco sobre o branco permitiu, abrindo a imaginação dos artistas a novos e revolucionários conceitos de produção artística.
O Suprematismo de uns, abolindo o Simbolismo ou o Realismo de outros, está na base da produção dos Modernistas em geral; e aqui se poderia aludir ao exemplo de Fernando Pessoa e a um dos seus mais antigos e interessantes poemas, ALÉM-DEUS, datado de 1913. Lança uma mesma interrogação, com a mesma carga metafísica, ao olhar o rio Tejo:“O que é ser-rio e correr?
O que é está-lo eu a ver?”
A descrição do que sente conduz à imagem de “Vácuo”, o vazio que toma o lugar do momento ( o tempo) e do lugar ( o espaço). 
Desta anulação da consciência nascerá a experiência de Deus.Veja-se através de que passos:
“ Tudo de repente é ôco-

Mesmo o meu estar a pensar.

Tudo – eu e o mundo em redor-

Fica mais que exterior.



Perde tudo o ser, ficar,

E do pensar se me some.

Fico sem poder ligar

Ser, idéia, alma de nome

A mim, à terra e aos céus.

E súbito encontro Deus.”
Este Deus, secreto, escondido no escuro e no silêncio da alma, Essência que não se revela mas arrebata e absorve, como um buraco negro, levando à dissolução da consciência de si, na dissolução de todo o mundo exterior – não é um Deus que Malevitch ou outros dos seguidores tenham de verdade procurado. O que procuravam, no exercício da sua Arte, era antes como destruir a norma, que lhes pesava, de um Figurativo realista que se tornara obsoleto. E pelo apagamento da Forma recuperar o Sentido: um sentido, qualquer um, desde que aberto a todas as sensações (o que em Portugal seria o projecto do Sensacionismo). E por oposição, seguindo o mesmo modelo, recusando todas as sensações, pois a recusa de tudo é uma forma de inclusão.
No Poema O Silêncio, que antecede o que citei acima, Depois Do Branco, Manuel parecia adivinhar o que eu iria dizer. Que à interrogação corresponde o silêncio, e que a este, e só a este, como sabem os místicos, pode corresponder Deus.:

O Silêncio
Subiu ao cume da montanha e não viu Deus

desceu ao fundo do mar e não o viu.

Andou caminhos e caminhos
procurou no céu procurou na terra

na confusão e no barulho da cidade
no grande espaço aberto e limpo do deserto.
Procurou na palavra e perguntou aos livros
pediu à música pediu ao vento
mas nada achou mas nada ouviu.
Procurou no silêncio
e no silêncio viu a pedra branca.
Mas a pedra que fala não falava
e o silêncio era a única palavra.
(p.26)


Ao longo das outras 7 partes do livro, muita outra coisa acontece: o olhar que se demora na rua da cidade, na beleza do campo ou no vôo da gaivota, no desgosto de um falecimento ou de um extermínio cruel (o de Auschwitz), sem esquecer alguma evocação de amor antigo, ou memórias graves da História, antiga (Tróia) ou mais recente (a morte de Trotsky).Percebe-se que há neste poeta uma cultura literária, política, artística (Malevitch, com os seus quadrados) e religiosa até no que encerra de mais fundo: a meditação da noite do silêncio e dentro do silêncio uma Palavra, única, a do Poema.
Não é por acaso que se escolhe como epígrafe um dizer de San Juan de la Cruz: “ aunque es de noche”….(p.41).
Não se estranhe pois que eu escolha, de SETE, o poema Sombra e Forma (p.84):
O poema há-de emergir da sombra
florir no zero e no silêncio
o poema que está dentro
da forma por nascer
o poema que já é
antes de ser.

Retomo aqui a reflexão sobre a Imagem/Representação, tal como nos pode surgir a partir do Quadrado Negro; o negro, bem sabiam os alquimistas, absorve e afunda; mas dele emerge o branco (da Pedra, ou do Poema) que liberta e explode.







Friday, July 06, 2012

Manuel Alegre, Nada está Escrito

Terá sido este título?
A primeira vez que escrevi um post sobre este novo livro do Manuel foi engolido pelo espaço ( levado por algum maldoso bosão?)
E agora foram precisas várias tentativas até conseguir escolher a imagem da capa. Deve ser do título: nada está escrito, então que nada se escreva a propósito.
Mas sou teimosa.
Manuel Alegre, mesmo quando triste ("de alegre se fez triste"....) é um poeta feliz: encontra as memórias e as palavras certas para o que pretende dizer. 
O livro está dividido em 7 partes, como as 7 partidas do mundo, por aí podemos adivinhar que há sonho nos poemas, há desejo, utopia, - ainda que num momento de especial fragilidade identitária: afinal somos europeus, mas sem o ser plenamente?Somos europeus, se pensarmos na nossa tradição cultural.
O primeiro poema do livro, belíssimo, BALADA DOS AFLITOS é desde logo a prova de que uma cultura entranhada na tradição e na memória literária se actualiza em qualquer momento e se faz portadora de voz outra, nacional, que não nacionalista - e deste modo podemos falar de uma cultura europeia universal, vivida e absorvida pelos seus grandes. Eis a Balada:
Irmãos humanos tão desamparados
a luz que nos guiava já não guia
somos pessoas - dizeis - e não mercados
este por certo não é tempo de poesia
gostaria de vos dar outros recados
com pão e vinho e menos mais valia.


Irmãos meus que passais um mau bocado
e não tendes sequer a fantasia
de sonhar outro tempo e outro lado
como António digo adeus a Alexandria
desconcerto do mundo tão mudado
tão diferente daquilo que se queria.


Talvez Deus esteja a ser crucificado
neste reino onde tudo se avalia
irmãos meus sem valor acrescentado
rogai por nós Senhora da Agonia
irmãos meus a quem tudo é recusado
talvez o poema traga um novo dia.


Rogai por nós Senhora dos Aflitos
em cada dia em terra naufragados
mão invisível nos tem aqui proscritos
em nós mesmos perdidos e cercados
venham por nós os versos nunca escritos
irmãos humanos que não sois mercados.


Balada de ritmo pungente, logo no primeiro verso declara a sua filiação: retoma o lamento do ÉPITAPHE VILLON de François Villon, o grande poeta francês do século XV (1431-?) de vida aventurosa, várias vezes condenado e preso, em 1463 condenado à forca ( é quando escreve a célebre Ballade des Pendus, Balada dos Enforcados) e depois libertado. A seguir a esta data nada mais se sabe da sua vida. 
Ora vem isto a propósito da cultura, da tradição e da memória: todos os bons leitores de poesia conhecem e reconhecem este poeta e a sua poesia sem igual:
Frères humains qui après nous vivez,
N'ayez les coeurs contre nous endurcis,
Car, si pitié de nous pauvres  avez,
Dieu en aura plutôt de vous mercis.
Vous nous voyez ci attachés cinq, six:
Quant de la chair, que trop avons nourrie,
Elle est pièça dévorée et pourrie,
Et nous, les os, devenons cendre et poudre.
De notre mal personne ne s'en rie;
Mais priez Dieu que tous nous veuille absoudre!
.....
E segue, a Balada, com a plena consciência do pecado, mancha da humanidade e não apenas dos condenados, pedindo a Deus que todos sejam perdoados. Este é o refrão com que termina cada uma das estrofes: 
"Mais priez Dieu que tous nous veuille absoudre !". Rogai a Deus que a todos nos absolva!
O poema de Manuel actualiza e politiza o lamento, mas ainda assim mantém um apelo ao divino, como que reconhecendo que entre os homens não tem havido ou não haverá solução. É o lamento de alguém que reconhece que estão perdidos laços e caminhos; que talvez só mesmo a palavra poética ajude à salvação: do poeta de certeza, que se liberta nela e por ela; mas dos outros? Só mesmo de quem lê.... 
E nem de propósito, eis o poema com que encerra a primeira parte do livro:
DEPOIS DO BRANCO
Quem sabe o que na página se esconde
e se dentro do branco está um muro
e se depois do muro não há onde
e se depois do branco é tudo escuro?


Quem sabe o que pode acontecer 
quando ao verso já escrito outro se junta
e tudo está no verso por escrever
e o que se escreve é só uma pergunta?


Quem sabe o que se vê e não se vê
se por dentro do branco apenas cabe
esse nome que nunca ninguém lê
e o verso que se sabe e não se sabe?


Sobre este poema escrevi algumas notas noutro blog, Cultura Visual, ao evocar Malevitch e os seus célebres Quadrados, Brancos e Negros...remeto para lá, pois não caberia aqui outro texto mais longo.
Como é costume, o que se aconselha agora é que se leia o livro, pois se Nunca Nada está Escrito, ainda menos está lido....(ed. D.Quixote, 2012).