Sunday, July 15, 2018

A CASA




A CASA
 Distraídos não víamos
a casa a envelhecer connosco
e no entanto a casa envelhecia:
tinha dores
achaques
tropeções
incómodos pequenos
lâmpada que falhava
e uma ou outra coisa,
vertigem passageira.

Assim corria o tempo
em pequenos derrames
que a todos por dentro
corroía: a casa e com ela
as portas que rangiam
e umas résteas de luz
já quase a apagar-se.

A casa não andava
a casa já não via,
e nós ainda achávamos
que era coisa ligeira.

Não tem mal, dizíamos,
quando chegasse a hora
umas velas acesas,
candieiros de avó
sem perigo de incêndio:
a casa envelhecida
sempre estaria ali,
sempre resistiria.

Sem dar por isso 
o nosso envelhecer
ali juntos, fechados,
embora já morrendo
seria a última prova
de um grande amor
vivido
o dessa casa antiga
às vezes ainda rindo,
outras vezes zangada,
mas dividindo connosco
o tempo que faltava.

Lisboa, 2018




Monday, July 09, 2018

O Pomar das Romãzeiras do José Manuel Castanheira



Ler, pintar, trazer um brilho azul evocador de Yves Klein para um Jardim especial: eis o que fez o pintor José Manuel Castanheira numa instalação de segredos e sussurros, ligando pelo fio da memória, em folha branca, o que a vida traz consigo, bago a bago de romã, que foi suspendendo no ar. A vida atravessada por uma luz azul, que é luz do Verbo, que é luz de palavra confirmada. O seu segredo: o do tempo, que ali se tornou espaço, como no Parsifal de Wagner.

É-me difícil falar, porque a sua obra, de concepção tão lírica e subtil, me foi imerecidamente dedicada. São as longas amizades, as de sempre, que ali são evocadas, em traços que mal se adivinham no branco que as acolhe.

Deixo então o meu gesto, gesto grato, de passeio por entrega a tão belo Jardim, a descobrir no Festival de Almada deste ano de 2018.

O Jardim

Para o José Manuel Castanheira


O Jardim estava ali,
atrás do brilho azul
de uma cortina
que o Anjo segurava.

Ao pôr-do-sol
o Anjo abria a cortina,
via-se então esse Jardim secreto
e a árvore desse pomar
só de romãs fechadas.

O Anjo, paciente,
aguardava tranquilo
as chuvadas do Outono
e os bagos de rubi
que as romãs ao abrir-se
deixariam cair.

Apanharia os bagos,
devagar, um a um,
como quem conta os dias
contra o tempo.

Pois o Anjo sabia:
contado o tempo
o brilho azul do Jardim
logo se apagaria.


Y.K.Centeno

Lisboa, 2018,
celebrando os 35 anos do Festival de Almada







Wednesday, July 04, 2018

Para o António de Castro Caeiro, que ama a poesia.


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De Novalis ( 1772-1801) a Schubert (1797- 1828)
 I
Novalis (pseudónimo de Georg Philipp Friedrich Freiherr von Hardenberg) figura maior do Romantimo alemão, teve a sua obra editada primeiro em 2 vols. pelos amigos Ludwig Tieck e Friedrich Schlegel, em 1802.
As obras de Novalis, bem como as dos irmãos Schlegel, tiveram marcada influência em Franz Schubert.
Vemos que na Bela Moleira/ Die Schoene Muellerin ( 1823) se recupera um imaginário de cariz popular, nacionalista ou melhor tradicionalista,  eivado de uma reflexão melancólica resultante da empatia profunda com a natureza,os seus ciclos, de que o Tempo e a Temporalidade são parte integrante e que o fluir da água do regato, na última canção (n.20, Des Baches Wiegenlied / Canção de Embalar do Regato)  evoca e representa.
Esta canção funde os vários motives da temática romântica por excelência:
1.    a contemplação da natureza e a elevação de alma que suscita
2.    o desejo de um repouso que se aproxima do sono, depois do sonho que foi a Viagem (evocadora da busca da Flôr Azul, no célebre romance inacabado Heinrich von Ofterdingen e que são referidas na estrofe em que cita “ as pequenas flores azuis” pedindo que não olhem para ele)
3.    apelo à noite, com a lua cheia a erguer-se no céu imenso, noite que. tal como o sono que pode ser antecipação da morte, dissolverá para sempre alegrias e desgostos.
Este Moleiro-Poeta  é uma recuperação do Viandante de Goethe.
Quando na primeira canção Das Wandern/ Viajar (que eu gostaria mais de traduzir por algo como Vaguear, pois é mais de vaguear que se trata, caminhando solto na paisagem,  de floresta, de ribeiro ou de mar, deixando corer o pensamento) se alude a esse ímpeto de correr mundo, já se adivinha, pela imagem escolhida da água cujo curso é imparável, da roda, que não cessa o seu rodar (como a roda da vida, que é a roda do Tempo) da pedra da mó, também ela redonda e girando cada vez mais depressa- já se adivinha, dizia que esta não sera uma viagem qualquer, mas um percurso que é decurso simbolizado da vida.
Pelo meio um atravessamento de amor, sem consequência a não ser a de despertar saudade, saudade do regresso a uma casa que é muito mais do que o lar que se deixou para trás, é morada de repouso, quem sabe se definitivo, uma paz de alma reconciliada que só a morte concede.
Os poemas de Wilhelm Mueller (1794 -1827), um dos grandes amigos do compositor, constituem um verdadeiro ciclo, em que o fio narrativo não se perde, ampliando a temática central da viagem pela vida e do horizonte da morte. Dos vinte e cinco textos da edição original do poeta (1821) Schubert escolhe 20, que organiza numa “introdução” e fecha com um “epílogo”, o que sublinha a dramaticidade lírica e musical da obra.
O tema fulcral é o da Viagem, como já se disse.
O Wandern alemão não significa o mesmo que Reise, mas seria difícil traduzir por vaguear, viajar ao acaso, pois o Moleiro não parte ao acaso. Caminha em direcção ao moínho onde estará a sua amada. Daí que se tenha escolhido o termo Viagem, e não o Vaguear, embora este ficasse melhor no caso do Viandante, que não temos traduzido por Viajante.
Mas deixemos a questão, respeitando o que tradicionalmente está aceite.
Na canção n.1 começa a descrição da caminhada do Moleiro, junto ao riacho, e aí se glorifica a água, elemento primordial, através do que a água simboliza se glorifica o movimento perpétuo, o caminhar ( a roda) da vida:
Das Wandern / Viajar
 Viajar é a alegria do moleiro,
Viajar!
Só pode ser mau moleiro
Aquele a quem viajar não agrade,
Viajar!

Aprendemos com a água,
Com a água!
Que não pára dia e noite,
Pensando só na viagem,
A água.

O mesmo fazem as rodas,
As rodas!
Que nunca ficam quietas,
Não se cansam de rodar,
As rodas.

E até as mós,tão pesadas que elas são,
As mós!
     Giram numa dança alegre,
     E querem ir mais depressa,
     As mós.

     Oh viajar, viajar, minha alegria,
     Oh viajar!
     Meu senhor, minha senhora,
     Deixai-me partir em paz,
     Vou viajar.

Se o tema central é o da Viagem, o símbolo vital será a Água.
Mas é uma água complexa, que tanto corre para a vida como esconde já alguma pulsão sombria: é o que se adivinha na canção seguinte, n.2.
 Wohin/ Para Onde:
 Ouvi murmurar um regato,
Corria da fonte do rochedo
Em direcção ao vale
Fresco e maravilhado.

Não sei o que me aconteceu,
Nem quem me deu o conselho,
Também tive de o seguir,
Com o bordão de caminheiro

A descer e sempre em frente,
e sempre atrás do regato,
A correr com o seu murmúrio,
De uma alegre limpidez.

É este então o caminho?
Diz-me, regato, onde vou?
O teu murmúrio suave
Perturbou os meus sentidos.

Que digo do teu murmúrio?
Não pode ser murmurar
São Ondinas a cantar
Nas profundezas do Reno

Deixa cantar, companheiro,e
murmurando segue o teu caminho!
Rodam as rodas do moinho,
Em todos os regatos de água clara.

Repare-se como nesta alusão a uma água feliz já está contida, pela alusão às Ondinas do Reno, a pulsão da morte que um Heine descreverá como ninguém na sua Lorelei.
Outras imagens simbólicas poderão surgir, como a floresta, ou o bosque (que seria a Terra) ou o Céu (que seria o Ar) ou mesmo o Fogo (quando se arde de paixão ou de paixão se morre). Vemo-las também noutros poetas, que Schubert muito amou, como Goethe ou Heine em quem uma consciência alquímica da vida se torna muito patente.
Mas fiquemos nesta meditação do Wandern.
Impossível não evocar aqui o poema de Goethe que melhor reflecte este estado de espírito:
 Canto Nocturno do Viandante / Wanderers Nachtlied (1776 )
 Tu que és do céu,
E todo o o sofrimento e dôr acalmas,
Que ao duplamente infeliz
Duplamente consolas,
Ah, estou cansado de tanta agitação,
De que servem a dôr e o prazer? –
Doce paz,
Vem, ah vem desce ao meu coração!

E ainda este, que completa o anterior e lhe amplia o sentido da brevidade da vida ou do desejo de morrer:
Outro Igual /Ein Gleiches ( 1780 )
No alto dos montes
Reina a paz,
Nas árvores
Não se pressente
nem um sopro.
Os  passarinhos calam-se no bosque.
Espera, que em breve
Também tu repousarás.

Com este mesmo estado de espírito, de abandono à noite do desgosto e da melancolia, e de ânsia pelo repouso eterno (da morte) é concluída a última canção, n. 20:
 Des Baches Wiegenlied / Canção de Embalar do Regato
Descansa em paz, descansa em paz! Fecha os teus olhos!
Viajante, que estás cansado, chegaste a casa.
Aqui reside a fidelidade,junto a mim repousarás,
Até que o mar engula todos os regatos.

Lavada de fresco será a tua cama
Com largo travesseiro no quarto azul de cristal,
Vinde, vinde agora, vós que sabeis embalar,
Embalai nas ondas o rapaz até que ele adormeça.

Se uma trompa soar no bosque verdejante
Farei um barulhão à sua volta.
Não olheis para mim, florzinhas azuis!
Estais a dar pesadelos ao meu adormecido.

Afasta, afasta, o trilho do moinho!
Fora, fora, rapariguinha má,
Que a tua sombra não o venha acordar.
Mas dá-me o teu lencinho fino
Para os seus olhos tapar.

Boa noite! Boa noite!Até que tudo desperte.
Que o sono te consuma as alegrias e as dores!
Ergue-se a lua cheia, dissipa-se o nevoeiro
E o céu lá em cima tão vasto que ele é.

Na Viagem de Inverno / Winterreise (1825) adensa-se o tom da melancolia, pressente-se em cada momento um fim de ciclo, com a última das Estações do ano, antes que renasça a vida com o retorno dos Maios da Primavera, novos amores,  cantos de pássaros felizes.
O Viandante é de facto um Estrangeiro e não mais um Caminheiro da vida. O seu estranhamento, em relação a tudo o que o rodeia é agora total. O ciclo é igualmente composto sobre os poemas de Wilhelm Mueller, e o primeiro é um de Boa Noite:
Gute Nacht
Cheguei como estrangeiro
e como estrangeiro vou embora.
não posso escolher
a data da partida
vou-me sozinho
em plena escuridão
de que servia esperar
até ser posto fora?

Parte, então, depois de um amor frustrado, concluindo que o Wandern, o vaguear pelo mundo, é o que o amor impõe, é o que Deus concede ao ser humano.
O seu caminhar pela vida terá paisagem de neve, terá lágrimas que lhe escorrem geladas pela face, terá esperança de algum repouso ( em vão ) sob a tília sonhada, que já lhe ficou longe.
Ecoando a Bela Moleira, na canção Junto ao Ribeiro / Auf dem Flusse (n.7), Schubert retoma a imagem da água, mas que não corre, pois tem sobre si uma capa de frio gelo que lhe impede o movimento.
Sendo que o movimento é vida, esta capa de gelo alude aqui a um antigo amor que terminou, um coração que arrefeceu e corre o risco de deixar de bater.
A sequência é de saudade, por vezes evocando um passado mais feliz, como em Sonho de Primavera / Fruelingstraum (n.11) e de desalento sempre, pois nenhum dos sonhos que o poeta sonhara chegou a ser realidade.
A canção n. 12 é explícita a este respeito: Solidão / Einsamkeit)
Encontro nesta canção o eco directo do poema de Goethe ( Ein Gleiches), citado acima, e por isso a transcrevo na íntegra:
Solidão
Igual à nuvem sombria
que no ar leve se move
quando na copa dos pinheiros
sopra uma brisa ligeira
assim vou eu caminhando
arrastando os pés cansados
vendo os outros tão alegres
e eu tão só a vida inteira

Ah, como o ar está tranquilo!
Ah, quão luminoso o mundo!
No meio das trovoadas
não estava eu tão no fundo!

A ausência de um Deus mais generoso, que a todos distribua alguma felicidade, é o sentimento geral com que se fica, chegados que somos ao fim de um ciclo em que apenas um velho, (Der Leierman n.24) tiritando de frio, que não é só do Inverno, mas também de um coração abandonado, insiste em tocar o seu realejo: variante empobrecida da roda do moleiro, da roda do universo, que esse sim, e só ele, insiste em continuar. E o poeta ironiza: e se nos juntássemos, tocavas no realejo as minhas canções?
Mas talvez a canção dos três sóis, Die Nebensonnen (n.23), nos ajude a situar melhor o estado de espírito de poeta e compositor. A tradução literal seria Os Sóis Juntos, mas está estabelecido traduzir por Os Três Sóis,nas versões em francês; mantenho então o costume:
Os Três Sóis
Vi três sóis ao alto no céu
mirei-os fixamente durante muito tempo;
e eles permaneceram quietos
como se não quisessem afastar-se de mim.

Ah, não me pertencem estes sóis!
Brilham para rostos que não são o meu!
Sim, também eu tive três sóis, outrora,
mas os dois melhores já não estão mais aqui!

Que se afunde o terceiro também no seu poente,
na escuridão estarei muito melhor.

II
Sabendo-se que Novalis e os Hymnen an die Nacht (Hinos à Noite) foram lidos por Schubert na sua juventude, bem como os Cânticos Espirituais(Geistliche Lieder), inspirando as suas composições de idêntico título, vale a pena evocar esses textos que glosam a Noite como emblema de Morte, de tanta ou mais intensidade do que os célebres ciclos de Rainer Maria Rilke,  quase um século depois, nas Elegias de Duíno (1922) ou nos Sonetos a Orfeu (1922). O culto da noite e da morte, em Novalis, depois do falecimento da sua jovem noiva Sophie von Kuhn, atravessa como uma espécie de Missa Negra, a obra toda.
O seu desejo é morrer, e encontramos nos seus Diários entradas permanentes em que considera a hipótese de suicídio de forma muito directa.
Nota-se a dada altura uma evolução de pensamento, quando se converte ao Cristianismo, ainda que de forma não completamente ortodoxa, pois é bebida, como também podemos ler nos Diários, na obra de Jacob Boehme. Intuída a noção de que todo o Universo é um Corpo, como diz Boehme, um Corpo Único, ultrapassada a convicção de que com a morte tudo se perdia, Novalis irá encontrar a sua consolação num amor universal e transcendente, de que Cristo é o Emblema maior. O mesmo acontece com a figuração do Eterno Feminino, a outra face de Deus ( a Shekinah dos místicos Kabalistas) que Novalis celebra na Mãe Universal que é a Virgem Maria.
São ideias salvíficas, que ajudam a moderar o tom negro da sua poesia.
Quanto aos outros vários escritos, que ficaram incompletos, alguns em forma de fragmento mais ou menos desenvolvido, outros apenas em notas e apontamentos – permitem ainda assim acompanhar as suas preocupações filosóficas, poéticas e artísticas.
Há uma teologia da Natureza que defende, ao modo panteísta de um Schelling, uma sociologia da Ordem, na visão de uma Monarquia Universal (A Cristandade ou a Europa) suporte de um Utopia que deveria ter sido ampliada em Heinrich von Ofterdingen, como resposta paralela ao Wilhelm Meister de Goethe. Mas deste romance-fragmento o que nos fica é um Maerchen, um Conto ( talvez também em paralelo com o Maerchen de Goethe) em si mesmo completo no interior do romance, e uma metáfora, a da Flôr Azul, que fará caminho pelas canções de Shubert.
Interessante é verificar como  de uns autores para outros , as ideias e os sentimentos se vão “contaminando”, as imagens mais fortes ( por serem arquétipos universais, simbólicos) atravessam as variadas obras, os variados tempos, e chegam até nós ainda carregadas de significação.
Os criadores “falam” uns com os outros.
É assim que descubro, na poesia de Helder Macedo, uma Viagem de Inverno, publicada em 1994, onde se estabelece um belíssimo diálogo aberto com os poemas de Wilhelm Mueller que Shubert musicou. Uma Viagem que faz de um poeta contemporâneo nosso um Viandante como os de outrora, que na obra de outros encontrou o eco do seu caminhar pela vida e lhe permitiu acrescentar a sua própria experiência (na vida como na poesia, não há vivências iguais) de original contributo para algo que será eterno: a consciência do menos que é mais, como diria Paul Celan.
Vemos pelas epígrafes escolhidas, abrindo com W.Mueller, as preferências literárias que foram objecto do estudo e da investigação do erudito que Helder Macedo também é: assim nos surgem os cancioneiros medievais, Camões, Cesário Verde (Mestre também de Fernando Pessoa), Camilo Pessanha.
E eu acrescento, por Helder Macedo ter dado um contributo tão importante, à época, (para o seu enquadramento místico e simbólico) A Menina e Moça de  Bernardim Ribeiro: nesta obra se bebem a Saudade e a Melancolia, como um atravessamento permanente.
O estudo de Helder Macedo, pioneiro, recebe o Prémio da Academia das Ciências de Lisboa em 1977, depois da publicação em 1990:
Do Significado Oculto da Menina e Moça, uma obra, na minha opinião, para ler e reler.
São igualmente 24, como em Schubert, os poemas da Viagem de Inverno de Helder Macedo.
Em alguns responde directamente às metáforas da canção original.
Noutros amplia o seu sentido, noutros ainda trabalha uma intimidade que ao ser transposta se torna universal.
Se no primeiro poema se coloca já no seu meio de vida, com uma reflexão à guisa de balanço,
 A meio do caminho
a mais de meia vida já vivida
reencontrei-me só na selva escura
da vida indecifrada
e não sei de que lado está a morte
e não sei se é o amor quem a sustenta
no tempo
que chegou
de destruir
…. (p.11)
No ultimo retoma com energia (talvez irónica, ou amarga) um cantar de dança de roda que tem algo das danças da morte medievais, ou melhor ainda de uma balada como a Lenore, de Burger, ou a Dança da Vida de um Munch expressionista:
Bailemos amigas
que a dança acabou
os rios correram
a fonte secou

bailemos na noite
libertas do amor
sem nada querer
sem qualquer temor

bailemos irmãs
nos corpos sumidos
das jovens que fomos
 nos tempo perdidos
bailemos que é tarde
para resistir
quando a madrugada
já não pode vir

bailemos meninas
de seios mirrados
com olhos vazios
e sem namorados

bailemos a dança
que a todos nivela
o filho o amante
a feia e a bela

e quem não quiser
connosco bailar
saiba que esta roda
terá de dançar

com velhos e moços
com monstros e mansos
com mancos e destros
com loucos e castos

terá de bailar
saiba que esta roda
pela noite toda
não há-de acabar
                (p.35)
 Dos Lieder, já em Schubert uma metáfora ou duas impressionam pela força que transportam, a par do seu mistério: a dos Três Sóis, e a do Velho do Realejo, que Helder Macedo também recupera. No caso dos três sóis, o artifício poético de Helder é muito interessante, pois actualiza a metáfora: serão os faróis de um carro onde os amantes se encontram, sendo que a lua, por cima, iluminará tal amor. Quanto ao velho do realejo, o seu rodar infinito evoca a Roda da Vida que na mística hindú desde sempre foi consagrada. Restam, para nossa perplexidade, os sóis de Mueller/Schubert. São três como e porquê ? Os eruditos afirmam que já muito doente, à data em que Schubert trabalha a selecção  de Mueller, teria, no seu delírio, visto uma tripla imagem do sol reflectida no gelo.
Pode ser. Mas também existe a ideia de que os sóis poderiam referir-se a amores vividos e passados, fazendo o poeta agora, no Inverno da sua alma, apelo a uma escuridão tranquila, definitiva. Helder Macedo recorda, em nota a propósito, que este sol negro poderia também ser uma evocação de Nerval (1808-1855) do poema El Desdichado, e do “Sol negro da Melancolia ”:
Je suis le Ténébreux,-le Veuf,- l’Inconsolé,
Le Prince d’Aquitaine à la Tour abolie:
Ma seule Étoile est morte, - et mon luth constellé
Porte le Soleil noir de la Mélancolie.
….
Nerval, o grande tradutor do Fausto de Goethe e de alguns dos mais belos poemas de Heine. E uma última possível interpretação:
que o terceiro sol seja o do poente, aquele que se deseja e supõe abismal,  variante do sol niger dos alquimistas, o negro de alma que não é mais do que a marca de uma profunda depressão, que em certos casos pode levar ao suicídio, ficcionado ou real.
Numa obra muito interessante,
FR: SCHUBERT, SA VIE, SES OEUVRES, SON TEMPS…de Hippolyte Barbedette, Franz Schubert (Musicien), Paris, 1865 – é referida uma carta do poeta Johann Mayrhofer (1787-1836) escrita em 1829, um ano depois da morte do compositor, em que se descreve a vida que levavam em conjunto, partilhando um apartamento que era “uma pobre mansarda” um sótão de tecto inclinado:
“ Só tínhamos um péssimo piano, uma pobre biblioteca, mobília miserável, pouca luz do dia! E no entanto passei lá as horas mais felizes da minha vida! Assim como a Primavera alegra a terra e lhe fornece a verdura e o sangue, também a força criadora do meu amigo alegrava e consolava os homens (…) O acaso, o amor da música e da poesia foram a nossa íntima ligação. Eu escrevia e ele cantava” (p. 29).
Mayrhofer, que morreu oito anos depois de Schubert, atirando-se da janela do seu escritório em Viena, foi com Mueller um dos seus poetas favoritos. Conheceram-se em1814, e datam de 1824 as primeiras composições líricas editadas.
Existem dele 47 Canções, bem como os librettos de duas óperas: Die Freunde von Salamanca (1815), e Adrast (1819).
Era Goethe quem comentava que o Romantismo era uma doença. E de  facto, tanto o amor doentio de Novalis pela jovem Sofie, como o de Mayrhofer por outra jovem, filha do seu senhorio ( um amor não correspondido) dão o tom da melancolia e da pulsão de suicídio destes artistas que Goethe admirava, mas de longe, do alto da sua Sabedoria, tendo já ultrapassado o momento das paixões convulsivas.
Só a título de exemplo, traduzo um dos poemas de Mayrhofer de que Schubert se ocupou:
Abschied / Despedida
Para lá dos montes caminhais
passando por verdes bosques;
mas voltais sem companhia,
Então adeus! assim mesmo tem de ser!

Separações, um adeus ao que se ama,
destroçam o coração!
Espelhos de água, bosques, montes, tudo desaparece;
oiço as vozes ecoando em todo o lado.

Adeus! Oiço o lamento,
parte-se o coração,
no adeus ao que se ama;
Adeus! Fico a ouvir o lamento!