Tuesday, February 12, 2019

Hugo Mezena, AS VELHAS

Foi com João Borges que descobri o blog dos livros pela capa, e o trabalho de pesquisa e atenção contínua que se exige.
Pelas capas ele vai fazendo uma verdadeira história do design e do livro em Portugal. É magnífico ir encontrando preciosidades que marcam pelo estilo, pela inovação, (mesmo em tempos de adormecimento, só aparente...). Presto-lhe a minha homenagem, e desejo que continue sempre.
Vem isto a propósito de um livro, em breve a ser lançado, de Hugo Mezena, AS VELHAS.  A seguir a Gente Séria, não me espanta que tenha abordado, como se Beckett e os seus irónicos Dias Felizes se nos impusessem de novo, em tempos cruéis, de doença, distracção ou abandono, aos jovens que escrevem agora, e nos dão a ler o que nos espantará sempre: a vida, no seu particular e no seu universal. Não será por acaso que uma actriz merecedora de todas as atenções e distinções, como Cucha Carvalheiro, nos apresenta Dias Felizes, pela mão de Sandra Faleiro, numa representação que dói de tão certeira e actual.
Mas se em Beckett encontramos esta permanente universalidade, eis que em HUGO MEZENA, fixemos também o seu nome, e nestas suas VELHAS, narrativas curtas (short stories) iremos descobrir,  num olhar mais jovem e por isso mais distante, quase cruel na distância, um mesmo submundo de um particular oculto, encafuado em quartos, em lares envergonhados, que põe a nú a universalidade da condição humana: com a velhice, abandono e solidão. 
Raro, e marca sua de originalidade, é o estilo que adopta, sem grande preocupação de colocar um chapéu de definição de género: são narrativas curtas. Ou seja: de grande concentração, numa página ou duas, mete um mundo. E isso, sendo o mais difícil, é o mais notável. Porque a pincelada aqui, feita de poucos retoques e poucas palavras apresenta um quadro que é um painel inteiro, de memórias perdidas ou recuperadas de vida que se estendem, como roupa a secar, até que chegue a elas a maré negra que tudo submergirá. Roubei esta imagem, arcaica, verdadeira, profunda, a uma escritora que como eu é velha e declara que este será (eu diria apenas talvez, porque nunca se sabe...) o seu último romance: Margaret Drabble, The Dark Flood Rises, 20017, já com tradução  portuguesa. No Sunday Independent o crítico escreveHeartbreaking and hilarious, comovente e hilariante.
Esta associação que faço não é futilidade minha. Porque do livro do Hugo Mezena se pode dizer o mesmo, no seu tratamento das Velhas, muitas e variadas, mas com um ponto comum: o seu abandono à velhice é ao mesmo tempo comovente, ou mesmo mais, doloroso e hilariante (como em Beckett). Esta argúcia em alguém tão jovem como Mezena, faz com que me esqueça que ele é jovem, e a sua maturidade, quando o leio, me surpreende e encanta. Há no seu olhar, que fixa o detalhe como quem esboça num caderno o quadro que vai pintar, uma interrogação severa e que julga, ao mesmo tempo que ironiza. Rara e notável qualidade...


Impossível também não falar da capa, das suas criadoras, a Mariana Viana (Ilustração)  e a Patrícia Proença (Design) porque a capa e a contracapa merecem toda uma atenção que ainda agora, enquanto escrevo, me faz pegar no livro, contemplar tanta beleza e elegância num jogo de transparências de que surgem, como num sonho do longe, figuras de meninas de outrora, com bonecas de outrora, subtis, mas marcando presença, em contraste com a dureza do título. Aquelas Velhas foram crianças, brincaram, foram felizes, antes das mantas do frio vestiram rendas, bordados ...tudo ali se evoca dum passado outro, com um desenho de tão fina renda, tão fino bordado, que só não  dá vontade de chorar porque ali está agora, evocado num  presente que a mão das artistas recriou.
Que mais posso dizer, antes que a maré a mim também me leve?
Que ler é viver, e que a beleza e cuidado com que se trata um livro nos prolonga a vida.