Wednesday, May 15, 2024

Luís Bento, DEBAIXO DE TODO O PESO, o Tempo é um processo com brechas

 

É sempre uma grande responsabilidade aceder a um pedido que parece simples, mas não é. Dar opinião sobre um texto, poesia ou prosa que um autor hesita em publicar, tentando uma editora que o aceite, ou, no caso de recusa, uma edição de autor.

Na minha idade, que tive de tudo um pouco, aceitações, críticas boas, silêncios e críticas menos boas e sem me importar muito segui em frente, escrever era-me necessário, dissessem sim ou não, só tenho um conselho como o que Rilke deu a um jovem poeta: se sentes que é vital para ti, escrever, escreve, escreve sempre, é a tua vida que está em jogo. Mas se por acaso não é isso que sentes, então não escrevas, faz outra coisa, há muita outra coisa mais útil para fazer no mundo...

Eu sou se calhar menos severa, mas também os tempos são outros e eu própria já nem sou muito deste tempo... 

Falemos então deste livro de Luís Bento: o título ajuda, por uma vez reflecte sobre o tempo, mais do que sobre o corpo e suas exigências de ser corpo e ser humano (conceitos e experiências que atravessaram um pouco o ano de 2023, em alguns autores). No caso das vivências do corpo, teve antecedentes vindos de um passado já longe, agora que se vive tudo de forma tão rápida e efémera: Luís Pacheco, que não hesita no palavrão (mas sou eu, aos 84 anos, com uma escolaridade que proibia os neo-realistas...) e Herberto Helder que não hesita com coisa nenhuma, traz uma orgia de imagens, uma originalidade  de associação meio surrealista, meio irónica, meio tão lírica que faz tremer o sangue que há nas rosas...e Luís Bento, na sua poesia, traz ao nosso convívio de leitores para que algo mais se acrescente às rotinas de um quotidiano que hoje em dia, tempos difíceis, todos partilham.

Estamos perante uma poesia de estilo narrativo, muitas vezes alargando-se mesmo em curtas descrições que não sendo prosaicas são mais do domínio da prosa do que da poesia, pois a prosa permite alargamentos que o poema prefere exprimir de forma condensada, e buscando, no descritivo e no detalhe do pormenor a realidade ou o seu palpitar secreto, que ali revela e esconde o que vive o poeta.

E vive mal. 

As brechas do seu tempo são feridas mal curadas num mundo em decadência, duro, difícil de aceitar para quem de vez em quando sonhou. Não tanto com um amor duradouro, eterno, feliz, mas com uma simples relação de fugitivo prazer. O olhar do poeta sobre o real à sua volta endureceu, e o seu tempo, quando sente que é seu e não lhe foi roubado, deixou arrefecer ainda assim o que podia vir a ser algum sentimento de maior leveza, sob o peso que refere no título.

Gosto de dar atenção aos títulos, porque ali se escondem, tantas vezes, os verdadeiros fios da leitura.  O que lhe pesa, na vida que vive, tem apesar de tudo uns momentos: as brechas que o libertam e lhe permitam a revelação da escrita, ou do poema.

A influência dos Haikai tanbém neste futuro livro está presente. Os versos curtos, contidos, a lição ou a reflexão que pode ser moral, ou mesmo irreverente.

Voltemos ao título: o que diria Heidegger, no SER E O TEMPO?

Para Luís parece evidente que é a brecha no tempo que permite a existência do ser. A brecha no eterno imaterial permite a materialização que é a do ser humano. A criatura que surpreende, na sua evolução que poderemos ler em Hariri, cuja curiosidade manchou no Éden um tempo que não teria peso, seria de eterna leveza, descontraída e feliz numa inocência que nada devia ter interrompido.

Mas este tempo de Luís não é virgem, a inocência perdeu-se logo nos primeiros momentos da criação, e agora as criaturas que habitam o planeta manchado sentem não a leveza prometida mas o peso de um eterno mal, o do tempo que tem brechas, mas que foi desviado. 

Um post não permite o alargamento de uma página de jornal, por isso não farei como faria normalmente algumas citações dos diferentes poemas em que se mostram diferentes realidades. Escolho um de inspiração oriental, que podia ser de um monge taoísta, ou de alguns poetas japoneses do século XVII mais conhecidos porque já traduzidos na nossa língua, um Bashô ou um que me foi trazido agora, Ryokan, que o Luís gostará de ler, a edição é muito linda e cuidada.

Fiquemos com o Luís: 

NOITE

Esta noite traz vinho

e poesia,

Antes que a angústia nos silencie a voz

e eu não saiba o que fazer comigo.























































 

  

 

Thursday, May 09, 2024

Não nego

 Não nego.

Há dias

em que a ausência

é tão funda

que não há distracção

não há pastilha 

que traga de novo

côr à vida.


NÃO SOU EU

 Não sou eu

é o dia

que está a entristecer


9 de Maio, 2024

Monday, May 06, 2024

Preparação para a Morte

 

OS FILHOS E AS MÃES

Devagar

quase sem dar por isso

há já algum tempo

que estavam a preparar-se

com um afastamento

gradual, quase invisível

mas que as mães sentiam

dia a dia aumentar.

Os filhos não sentiam a falta

entravam e saíam

com naturalidade

e às vezes passava-se

um tempo maior e um silêncio

que elas não interrompiam

pois esse afastamento

fazia parte da vida

e da preparação que a vida já pedia.

As mães sentem que está ali o dia

mas aguardam caladas

não querem que os filhos

antecipem a hora da chegada

uma hora que não sabem marcada

seria estragar a rotina dos dias

e da tranquilidade

que nem sempre lhes é

dada, vivem tempos difíceis

que um dia serão lembrados

e falarão da mãe, do dia especial

que no Dia da Mãe era costume antigo

celebrar.

Crianças, com prendinhas e desenhos

adultos já com filhos e netos

um almoço ou um jantar

que a todos reuniam, ou não podendo ser

um breve telefonema, para num outro dia

combinando lanchar.

 

6 de Maio, 2024

 

 

 

 

Sunday, May 05, 2024

Liberdades

  

AS LIBERDADES

Passaram 50 anos

mas faltam ainda mais 50

ou mesmo 100, quem sabe

os homens tomaram a Liberdade

de assalto já no ventre da mãe

não corria lá sangue

nem o amor natural

das criaturas

apenas uma água suja

impura

deram aos homens uma batuta

por dentro tinha um bastão

nasceram com eles na mão

e hoje são prepotentes

como todos os outros foram

em todos os momentos

que os antecederam

 

5 de Maio, 2024

 

Kantorov

 


O SOM DO PIANO

(calhou ser KANTOROV)

De manhã

Só o som do piano 

o deslisar suave dos dedos

nas teclas que obedecem

acalma o coração desabrido.

Por que razão bate ainda

tão atento a um som tão escondido?

Só o som o acalma

e deixa adivinhar

quem sabe um dia mais tranquilo.

Correm os dedos tão finos

como patas de aranha

tecendo os seus segredos.

Bate o sol nas cortinas

e pousa na varanda um pássaro fiel

mas atrevido.


5 de Maio, 2024

Saturday, May 04, 2024

A Mulher e o Gato

 

 A Mulher e o Gato


Reparo primeiro na mulher.Bastete – Wikipédia, a enciclopédia livre

Sentada no seu jardim

com jacarandás já floridos

à sua volta tudo ainda era seu

e ela uma incarnação renovada

traços tão estilados sem uma ruga sequer

nada que lhe abalasse a  voz

no momento de responder.

Estava a ser entrevistada, sem temor da sua imagem

que não seria deformada, promessa feita e cumprida

naquela tarde tão livre, tarde tão sossegada

que o tempo lhe tinha dado

e ela agora aproveitava sem saber ainda ao certo

que destino o tempo lhe reservava.

Orgulhosa de si

também pouco lhe importava,

dizia na entrevista tive tudo o que queria

que mais posso desejar?

Ao seu colo um gato enorme

dos que o meu filho, que tem um igual ao dela

chama de gato leão, também ele incarnação

do livro dos mortos egípcios

antigo guarda do templo que agora a guardava

a ela, quem sabe sacerdotiza da antiga religião

que nela se revelava.

Não era o gato de Alice, o quântico imprevisível,

era o gato que à mulher se agarrava como criança

perdida e que dela dependia na sua nova função.

Mal lhe cabia no colo, mas tinha a pata bem firme

bem junto ao pescoço do mimo, com a cabeça encostada

que beijava para lembrar que era ele o guardião

a mulher a sua presa, livre do templo de outrora

onde ambos ainda vivos viviam em comunhão.

Agora a vida era outra, mas não se engane ninguém,

a mulher não era a dona, era o gato o seu senhor

que dava calor e mimo, e a protegia dos medos

que de noite a afligiam e a enchiam de terror.

 

4 de Maio, 2024