Saturday, April 22, 2006

BAUDELAIRE e MAGRITTE



LA GÉANTE é uma aguarela que Magritte pintou nos anos 1929/30, inspirado no célebre poema de Baudelaire,com o mesmo título, e que darei em tradução. Anos mais tarde, em 1967, publica-se na revista STUDIO uma conversa do pintor sobre o que une "o mistério e a poesia" : "O mistério existe, porque a mensagem poética possui uma realidade...O pensamento inspirado imagina uma ordem que une as imagens do visível; a imagem poética possui a mesma espécie de realidade que o universo. Porquê ? Porque responde ao nosso interesse natural pelo desconhecido."
Nesta aguarela, de que só vemos uma parte, a do corpo imenso da gigante, o mistério reside na dimensão dos objectos caseiros, a mesa, por exemplo, com o vaso de flores, e sobretudo na pequenez do homem que, de costas, de pouco ultrapassa a altura dos pés da mesa; a porta, a mesa, o homem,- tudo fica à esquerda de quem observa o quadro, de que se destaca então à direita o corpo nú, poderoso, da gigante cujo olhar não se desvia para esse "pequeno" mundo de que não parece fazer parte.

LA GÉANTE /A GIGANTE

No tempo em que a Natureza de poder vigoroso
gerava em cada dia seus filhos monstruosos,
gostaria eu de ter vivido com uma jovem gigante,
tal gato voluptuoso aos pés de uma rainha.

Gostaria de ter visto seu corpo a florir com a sua alma
crescendo livremente nos seus jogos terríveis.
Adivinhar se alguma chama escura se escondia no peito
ao ver nadar, nos seus olhos, húmidos nevoeiros.

Percorrer à vontade as magníficas formas,
rastejar sobre as curvas dos enormes joelhos
e às vezes, no Verão, quando os sóis doentios

a fizessem estender-se,cansada, sobre o campo,
dormir preguiçosamente à sombra dos seus seios,
como tranquila aldeia aos pés de uma montanha.


Vem a propósito recordar um poema do jovem Fernando Pessoa quando assinava Alexander Search e escrevia em inglês intitulado igualmente A GIGANTE /THE GIANTESS.
Poderá ter sido inspirado pela leitura de Baudelaire, ou ter sido apenas a concretização de um devaneio lírico e juvenil sobre o mistério assustador da Beleza.No poeta francês percebe-se que ali está a Mãe-Terra,a Grande-Mãe que a todos abraçará um dia, embalando os seus filhos ou os seus amantes, num sono mais do que preguiçoso, definitivo.
A poesia inglesa de Search foi traduzida por Luisa Freire para as ed. Assírio e Alvim ( 1999 ) e nunca será demais elogiar a elegancia do trabalho feito, e o cuidado com que a tradutora procurou ser fiel a uma "letra" nem sempre fácil, por pomposa, o que foi um traço frequente na poesia juvenil de Pessoa nesta língua, que afinal não era "a sua pátria".
Aqui deixo o poema ( de 1907 ) na tradução portuguesa:

THE GIANTESS /A GIGANTE

Vi um dia uma cómica gigante
tentando comer qualquer coisa enorme,
sozinha, num festim alucinante,
coisa,como pedra, dura e informe.
Mas para a sua boca era tão imensa
que, na sua avidez assim intensa,
dobrava o esforço de seu desejo nulo.
E seu abocanhar amplo, impotente,
teria feito rir, não fosse o riso
suspenso por isto ser pungente.
Nesta orgia oca, inconsequente,
eu a vi e, notando o seu sofrer,
perguntei: "o que é essa coisa imensa
que, sem sucesso,lutas por comer? "
E ri, grosseiro, tranquilamente.
Ela chorou e, entre lágrimas, disse:
"esta comida que, de grande, se escapa
sempre à minha boca já dorida
é a Beleza una e toda inteira".
Olhei para ela e já não me ri,
mas antes chorei, pois entendi.

1 comment:

Hil�rio said...

a propósito do poema "The Giantess"..
tinhamos conhecimento da existência de Search, mas desconheciamos este poema.
Impressiona...as palavras depois as frases..pergunto-me, como podem as palavras, à semelhença da música, tocar-nos tão cá no fundo?tão fundo que já não somos os mesmos que agora líamos o poema, tão fundo que nos arrepiamos e uma lágrima cai sem que consigamos sequer impedir...tão fundo que percebemos que estamos dianta da Beleza...e ela tem tantas formas de aparecer..
e é esta comunhão que se sente até às entranhas que nos faz ir longe...quando tal acontece, acreditamos estar diante de uma obra de arte, mais, só a arte pura é capaz de nos transformar assim..tudo o resto não é nada..

obrigada por este momento.