Saturday, April 15, 2006

Mais Beckett



Por ocasião dos 75 anos de Beckett a Ed. Suhrkamp preparou um edição trilingue das suas peças de teatro. O francês e o inglês são do autor, que escreveu sempre nessas duas linguas e a tradução alemã é de Elmar Tophoven, fazendo jus à grande tradição que na Alemanha vem de longe, de dar a conhecer o que há de melhor no mundo, em versões excelentes.
Não se esperou que ele morresse para homenagear o grande dramaturgo.
A edição comemorativa, que pus no blog, reúne num só volume os dois primeiros existentes, aos quais se seguiu um terceiro.Mas esta edição compacta é muito agradável de ler, e é dela que me sirvo mais regularmente.
Ao reler PLAY /COMÉDIE (na versão seguinte) datada de 1964, apercebo-me mais uma vez de como é profunda a escrita dramática de um autor, considerado ,com IONESCO, fundador do TEATRO DO ABSURDO. Mas só absurdo porque o mundo se tornou doentio e absurdo aos olhos de quem o contempla com seriedade. A representação pode levar ao riso, mas joga-se ali o drama universal do teatro do mundo, da COMÉDIA HUMANA ao gosto de um BALZAC, mais do que uma DIVINA COMÉDIA ao gosto de um DANTE. Na Divina Comédia, o poeta /herói é conduzido pelas várias esferas que lhe permitirão descobrir o céu.
Aí guarda a esperança da revelação que o redima, e ao mundo com ele.
Não há redenção em Beckett, há interrogação permanente e uma resposta adiada, em suspenso, como o próprio discurso dos seus textos.
Em PLAY são muito importantes as personagens :3, número simbólico por excelencia, duas mulheres e um homem, que na cena fica colocado entre elas.Aqui temos um homem dividido e uma primeira referencia a essa condição.
As indicações do autor são igualmente importantes, em todas há um sentido a descobrir:

Ao centro, tocando-se, três jarras identicas, de cerca de um metro de altura, das quais saem três cabeças, de pescoço muito apertado no gargalo .
Vistas do auditório temos a mulher 2 à esquerda, o homem no meio e a mulher 1 à direita.
Ficaraõ assim de frente para o público e sem se mexer, durante todo o acto.
São "rostos sem idade"e por assim dizer sem definição, pouco mais diferenciados do que as jarras.

E repare-se agora nesta observação que fará do exercício da peça um verdadeiro drama existencial: "A palavra é-lhes EXTORQUIDA ( o sublinhado é meu ) por um projector dirigido exclusivamente sobre os rostos".
Este Fiat Lux não concede a generosidade do corpo, nem do seu movimento, que é a vida, deixará apenas que no discurso abstruso, que não chega por completo a ser diálogo, se tente encontrar uma articulação que permita que a hora chegue, como diz a mulher 1 : a hora chegará.
Mas o que chega é o negro, com os projectores a apagarem-se regularmente, mantendo aquele "pequeno mundo " sem luz, como no Génesis antes da Criação.
Segue-se uma dança de luz acompanhando ora um ora outro dos que vão esfarrapando os momentos de paixão das suas vidas.
É a luz do Projector que condiciona o discurso, ou seja, a vida naquele instante. Ele "arranca" as palavras ou, ao mudar de personagem,impõe o seu silêncio.
O PROJECTOR, ali a mão de um deus de Babel, faz rodar um discurso que pode repetir-se do modo mais cruel, até ao infinito, como os males da vida.

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