Friday, April 28, 2006

Sa-Carneiro



O aliciante, na leitura de um bom livro, é que nos remete para outras leituras.
Neste caso, depois de ter lido o estudo de Fátima Inácio Gomes, lembrei-me de um outro, que igualmente aconselho, de Maria José de Lancastre, intitulado O EU E O OUTRO ( para uma análise psicanalítica da obra de Mário de Sá-Carneiro).
Publicado em 1992, não perdeu a sua actualidade, neste ano em que em torno da obra de Pessoa se devem voltar a ler Almada Negreiros e Mário,o infeliz companheiro que desejava mudança, mas a si mesmo não se conseguiu mudar.
As Cartas fornecem, como é natural, o maior suporte para a análise que Maria José se propõe fazer: descrever o itinerário de uma situação melancólico-depressiva que o poeta terá atravessado durante a estadia em Paris, em 1912, e a seguir, novamente regressado, em 1915/16, data do seu suicídio.
A memória do jovem amigo perdura na de Pessoa: num poema de 1934, dedicado a Sá-Carneiro, escreve: " Como éramos só um falando.Nós eramos como um diálogo numa alma". (in F.Pessoa, Poesias Inéditas, ed. Ática, 1960)
A este propósito Maria José de Lancastre observa, nas notas, que este "diálogo numa alma" podia representar simbolicamente o que se passa numa sessão psicanalítica. Estaríamos aqui perante um caso de "transfert".
Dieter Woll, citado pela autora e ainda hoje um dos estudiosos que não podemos esquecer( REALIDADE E IDEALIDADE NA LÍRICA DE SÁ-CARNEIRO,Lisboa, 1968 ) fala de "depressão" ao abordar o estado de espírito do poeta.
Àcerca do retrato que Almada fez de Sá-Carneiro, a autora observa que é o único em que o vemos de corpo inteiro. Feito em 1963, retrata-o sentado à mesa de um café, onde numa folha de papel se pode ler a palavra "quasi".O seu rosto, gordo, como ele se descreveu tantas vezes, está virado para o alto, numa pose lânguida que, como diz Maria José tanto podia vir da memória de Almada como dos textos do poeta.
Certeira é a anotação do quase : pois ele foi quase, e só por não ter chegado a ser se transformou, na memória dos amigos e leitores, o símbolo mesmo da OBRA inacabada.Obra que numa interpretação de simbólica junguiana nos permitiria ver Pessoa como o Espírito, Sá-Carneiro como a Alma e a ligação profunda entre ambos como o momento que não foi possível viver, ultrapassando-o.
A questão do transfert é pertinente, e pode aplicar-se tanto a um como a outro dos poetas de "alma unida" , Na impossibilidade de haver integração sublimada, a fractura instalou-se em ambos de forma irremediável. Mas o jovem exilado em Paris lia Nerval, o romântico decadente, enquanto o Pessoa lisboeta, digerindo Freud, procurava na heteronimia os desdobramentos redentores.

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