Thursday, May 15, 2008







Está de saída O MARINHEIRO de Fernando Pessoa, na belíssima encenação de Alain Ollivier. O bom gosto da encenação define-se pela simplicidade elegante, contida, do design de luz, dos tons de cena, cortina inicial e final como que tecida na própria névoa do texto, máscaras que unem a diversidade, ainda que só aparente, das três irmãs veladoras, mas acima de tudo e isso tem de ser sublinhado e aplaudido, a indicação do modo de dizer o texto pessoano (difícil quanto baste): as vozes correm leves e fluidas, como um sopro, adquirindo só a dado momento a intensidade que permite delimitar o sonho, o medo, a comoção, ela própria como que retirada de si mesma e contida, como tudo o mais.
Uma encenação centrada na essência e na respiração do que o texto diz e desdiz, ou simplesmente deixa adivinhar, e apoiada na capacidade exemplar das intérpretes, que nunca sobrepõem ao dizer o exercício do seu virtuosismo, que é notável. 
Está de parabéns, o Teatro de Almada. Assim estivessem de parabéns os nossos leitores-espectadores,os nossos professores, os nossos estudantes.
Como lemos e estudamos hoje a obra de um grande autor? Por pequenos resumos, simplificados ?
Nada é simples na obra de uma grande autor, mas cabe ao seus intérpretes, neste caso o encenador e os seus actores, tornar mais acessível, mais inteligível, mais legível, a obra que apresentam.  
Assim, logo nas máscaras, de penteado quase aterrador, de tão carregado de noite, somos levados a compreender que estamos ali diante de algo mais do que meras veladoras de um cadáver.
Houve mão de Mestre, nos penteados que ornamentam as cabeças e que numa primeira impressão poderiam evocar as antigas Erínias. Estamos de facto perante formas antigas, mas não as vingadoras.Ali não houve crime, não houve abuso nem excesso: houve apenas ausência, regresso, sem que se saiba logo a que outra esfera.  Estamos perante as Mães, na imobilidade só aparente do seu Reino, o que fez tremer Fauso e Mefisto, só à menção do nome. Já o nome é sagrado, é divino, é princípio e fim de um outro mundo: ali onde a própria Urform,  origem primordial, terá lugar, se forma, se tece, e por fim se desvanece regresssando à poeira de que veio.
Poeira cósmica, abissal, nuvem galáctica que o sonho de alguma vela inexistente  atravessou, sem chegar ao possível espaço desejado. 
A obra é feita de espera, mais do que de desejo: algo definidor das marcas de Pessoa, no que escreve. Vive-se (espera-se) no intervalo de ser. A grande marca (o grande marco ) é o tempo, em suspenso. O Ser e o Tempo podiam ser balizas nesta peça, antecipando a magna obra de um Heidegger. O Tempo eterno flui: contém o passado, o presente e o futuro, ainda que ignorado. Mas o Ser, ou melhor, a consciência de Ser, petrificou: é o cadáver velado, é o quarto elemento que faltaria para completar o Todo da existência. 
Esse cadáver que nos interpela, como interpela as veladoras, é o que, por associação de imagens e ideias (no fundo o verdadeiro modelo estruturante da peça, a associação deslizante de imagens e ideias) confere às figuras hieráticas que vão quebrando o silêncio dessa noite espectral em que tudo podia acontecer e nada acontece a não ser o já acontecido- é o que confere, dizia eu, uma forte carga simbólica a um texto que ficará para sempre como texto emblemático da criação pessoana. 
Definido como drama estático, podíamos defini-lo, como faz Teresa Rita Lopes, como extático. Só que a experiência aqui não é a do divino a que a alma em êxtase se une, fundida numa mesma luz primordial. Deus é o nome da ausência, nunca se presentifica, ou se  actualiza, em movimento que leve da potência ao acto. O acto não existe, nem sequer o sonho dele. E se a palavra se constitui, nesta peça, em desejo algo impossível de dizer é porque sem palavra, sem Verbo, não há vida. 
E apesar de tudo é feita da Palavra, do permanente desejo e busca da Palavra, a vida de Pessoa. Goethe falou na Ur-Form, Pessoa responderia com a Ur-Wort.
Ele teve só uma pátria: a da língua portuguesa. 
   
 

3 comments:

jorge vicente said...

gostava mesmo muito de estar presente.

um abraço
jorge vicente

Yvette Centeno said...

Caro Jorge, é fácil, amanhã ainda é dia, a sala não esgotará e para quem pratica e ensina escrita criativa, esta obra é um manancial de inspiração possível!
Vá e leve alunos consigo...

G.A.M.N.A.A. said...

é preciso que os mmuseus estejam vivos. é preciso que os museus arranjem amigos. amigos verdadeiros que AJUDEM.
Cooperem pelo bem da cultura , em Portugal!

GAMNAA