Wednesday, July 09, 2008

Sete Partidas



Doze Naus, Sete Partidas...
Manuel Alegre continua em viagem: pela História, pela Memória, aprofunda um canto Camoniano, Pessoano e que, à semelhança dos seus antecessores, não desvia o olhar do mundo ( o país) que o rodeia.
Percorre cidades, mas detém-se na sua, que é uma cidade da alma.
De D. Pedro, o guia, retém o desejo de mudança. Desse desejo nasce o poema, permanente  interrogação e enigma:

" Como Santo Agostinho vou pelos campos
da memória. Pronuncio o nome de D.Pedro
e o que fica é o nome não a imagem

porque tudo na memória se contém
e tudo é palavra que nomeia.
Digo D.Pedro e ao certo eu digo quem

é nome e mais que nome tempo e História
e mais que tempo e História é a própria ideia.
Vou com D.Pedro pelos campos da memória."
(poema 5 )

Poesia descritiva, intencional na meditação que propõe, sobre as mudanças e as esperanças dos tempos.
O nosso tempo é de insónia, e "um poema escreve-se entre a noite e a manhã/quando as águas irrompem na memória" (poema 12)... que rasto deixam, neste país, nesta cidade, nesta Europa que melancólica perdeu o rumo, que era destino fundador e inicial? Pessoa diria iniciático, mas Manuel é mais simples, mais directo:

" Em Lisboa assina-se um tratado mas agora
Europa já não é o umbigo do mundo
o vasto mundo global e em toda a parte o mesmo
à mesma hora nos telejornais
...
É então que D.Pedro já regente
concede a D.Henrique a exploração do mar.
E o poema escreve-se quando se aprende
em português o verbo navegar." 
(poema 9)

A navegação hoje é feita em águas profundas, da memória em revolta.
Penso, ao ler este poema: em que salas de aulas poderíamos, a propósito da História de Portugal, explicar o sentido que aqui se esconde e se revela? 
E explicar pelo meio as referencias a Platão, a Aristóteles, Santo Agostinho, Cícero e às cidades de cultura, Bruges, Roma, Veneza, e o que na arte maior aí acontecia?
Fico a pensar se esta Hora ( nada Pessoana) será mais de retirar-se do que de enfrentar um mundo que não deseja escapar à sua condição de alienado e alienante de uma realidade que parece cada vez mais escapar-lhe.
Manuel Alegre foi sempre um lutador e não cala, não esconde, o seu protesto:

" A roda trituradora põe-se a girar
microfones perguntas entrevistas.
O poema escreve-se enquanto leio
com D.Pedro o elogio do Benefício
quem o pode fazer e quem não pode

e de como Aristóteles recomenda
o necessário entendimento de quem faz
e do estranho capítulo em que os servos
podem dar benefícios aos senhores
ou das obras morais que são exemplos.

Coisas que não preocupam quem rasteja
nos corredores da corte e da intriga
...
Com D.Pedro escreve-se no conflito
entre o apelo público e a voz de dentro
no desejo de paz e solidão
em Veneza ou Coimbra onde o poema
pode escever-se traduzindo Cícero".
(poema 10) 

O poema continua, na sua busca do que chamará " a frase certa a escrita nova".
A D.Pedro como a Manuel Alegre, nesta identificação poética, se coloca o dilema : intervir ou aguardar que algum momento, alguma palavra mais íntima, mais secreta e mais certa indique outro caminho.
Na poesia há só um e o mesmo caminho: a escrita, que se expõe, como no dizer paradigmático de Celan: " A poesia já não se impõe, expõe-se".

Aqui se expõem os dilemas de quem pode ser voz que cala ( a escrita, no recolhimento e na intimidade ) e voz que fala ( a da interrogação e exigência face ao mundo em mudança):

"Chega um tempo em que um homem se interroga
sobre o último sentido ou o sem sentido
o como o quê o para quê e o para onde
um tempo de balanço em que se mede
o vivido e o não vivido.
E o poema escreve-se"
.... (poema 11)

Não resisto a trazer aqui a dupla imagem dos hemisférios do tempo a que alude o Padre António Vieira, outro dos gigantes da nossa cultura que celebramos este ano:
" O tempo (como o mundo) tem dous hemisférios:um superior e visível, que é o passado; outro inferior e invisível, que é o futuro.No meio de um e outro hemisfério ficam os horizontes do tempo, que são estes instantes do presente que imos vivendo, onde o passado se termina e o  futuro começa (...)Oh, que de cousas grandes e raras haverá que ver neste novo descubrimento! "
Neste Livro anteprimeiro da História do Futuro (ed. crítica de J.van den Besselaar) os hemisférios do tempo abrem-se à utopia que, fundada na História, pretende redesenhar um destino glorioso. Fernando Pessoa, bebendo também ele no mesmo mito antigo saúda a memória, mas antevê o nevoeiro caindo sobre a Pátria. Manuel Alegre, nesta sua viagem de exaltação de um D.Pedro filósofo, letrado, utopista a seu modo, recupera um tempo cujo horizonte (o presente que imos vivendo) apela à reflexão, para que do poema nasça uma palavra certa, no limiar da esperança. 

Não concluo, deixo ao leitor  o verdadeiro prazer de ler e descobrir.
(Manuel Alegre, Sete Partidas, poema, edições Nelson de Matos, 2008 )




1 comment:

Klatuu o embuçado said...

Terá decerto importância cultural, o saldo de uma vida, etc, mas Manuel Alegre é um poeta menor, de cuja obra se aproveitam meia dúzia de poemas medianos.