Friday, March 31, 2006

Brant e Bosch


No JARDIM DAS DELÍCIAS (c.1503-4) de Bosch sobressai o severo, para não dizer mesmo apocalíptico, tom moralizador.
Da Criação de Adão e Eva à Queda e à descrição das penas do Inferno,com o imaginário altamente cruel dos seus suplícios, pouco espaço fica para as marcas da Redenção.
Apesar de tudo sempre existe uma FONTE DE VIDA, colocada ao centro, simbolizando talvez que uma vida (re)centrada merece ou pode merecer, ser salva.
Um dos pormenores que do ponto de vista simbólico e alquímico se torna interessante é aquele em que se vê uma Eva "emudecida" e aprisionada numa espécie de athanor transparente, de vidro frágil como a frágil vida humana; essa figura feminina segura na mão uma esfera já quebrada , anunciando o pior, dado que a esfera, o círculo, seria uma das representações da completude e da perfeição.
Noutro pormenor (é como se a viagem pelo quadro se tornasse a cada pormenor mais e mais interessante) surge de facto uma representação, ainda que especial, do andrógino alquímico; e digo especial porque Bosch nos deixa com a sensação de que conhece, mas não acredita , nessa hipótese platónica de seres outrora perfeitos.
A figura ,encabeçada por uma flôr fechada (uma corola de tulipa,vermelha,como a côr do pecado)deixa ver quatro pernas e quatro braços parecendo rodopiar numa dança algo frenética, e o todo coberto enfim por um mocho que ali parece firme, sólido e "fixo" , como se diz no processo alquímico da maturação final.
As flores e as romãs à volta completam em delicada imagem, que contrasta com espessura da representação central , a ideia de que pode vir a alcançar-se a quinta-essencia da alma.

Na vasta bibliografia existente sobre Bosch e a sua visão do mundo, destaca~se a influencia da seita dos Adamitas, e do imaginário alquímico que em muitos códices já circulava pela Europa de filósofos, médicos e químicos; mas seria interessante ler a NAVE DOS LOUCOS de Sebastian Brant e em função dessa leitura voltar a olhar para o tom de severa crítica social e moral de que os quadros de Bosch também dão conta.
A NAVE DOS LOUCOS (Das Narrenschiff ) é das obras que mais edições teve desde a primeira, em 1494, com um eco retumbante na Europa de então, prenunciando, com a sua feroz crítica aos costumes ( em verso ligeiro, popular, ilustrado por gravuras que diziam tanto ou mais do que os versos) a grande revolução que em breve chegaria, sobretudo pela voz de Lutero e da sua Reforma.
As teses de Lutero abriram espaço ao questionamento dos valores feudais tanto da Igreja e do Papado como da própria nobreza alemã à qual directamente se dirige exigindo também mudanças radicais.
As críticas abrangem todo o espaço social, moral, político, religioso.
Brant e Bosch levam ambos nos seus barcos, que são a vida , no seu percurso perverso, os seres apodrecidos de um Paraíso que consideram perdido.

2 comments:

Valéria Pires dos Santos said...

Oi, boa noite, adorei seu blog e gostaria de publicar um artigo seu se você me autorizar.

Abraços.

Yvette Centeno said...

Autorizo, se não esquecer a minha autoria.....obrigada!