Friday, September 02, 2022

Félix com Hegel e Lacan (relendo Slavoj Zizec)

 Na edição da puf, de 2011, Zizec é definido como "o mais sublime dos histéricos". Uma adjectivação que atrai, porque o define como anti- seja o que fôr, neste caso contra Platão, o que Aristóteles já fora e continuando a distinção entre o que é possível ou desejável num filósofo Zizec vai fazendo um rápido mas brilhante historial dos filósofos que distinguiu, Fichte, o dos Discursos à Nação Alemã a ser derrotada por Napoleão, a Hegel, que ele define, como se diz no prefácio a este volume, como "monstro do panlogicismo, a mediação dialéctica total da realidade,  da dissolução total da realidade no automovimento da IDEIA. Face a este monstro afirmou-se, pelo contrário, o elemento que era suposto escapar à mediação do conceito" (p.11). Assim evoluíram os sistemas ditos post-hegelianos que se opuseram ao absolutismo da da Ideia em nome do abismo irracional da Vontade, cita-se Schelling, eu lembraria também Schopenhauer ( o mundo como Vontade e Representação), cita-se Kierkegaard evocando o "paradoxo da existência do indivíduo" e ainda Marx "em nome do processo produtivo da vida". A questão que permanece, em relação a Hegel, é que não se ultrapasse o limite que é constituído pelo Saber Absoluto. Zizec interroga-se sobre a origem deste conceito, e que causa horror, do Saber Absoluto. Donde vem? O que se esconde por trás de uma ideia fantasmagórica como esta e da sua presença "fascinante" ? (p.13) Um buraco, um vazio, que só pode ser preenchido se lermos Hegel com Lacan, é a tese defendida por Zizec, ou seja, sobre o fundo da problemática lacaniana da ausência no Outro, o vazio traumático à volta do qual se articula o processo significante. Podemos, por limitação de espaço, saltar para as três étapas do Simbólico em Lacan, a partir do seu hegelianismo : a primeira é a da função e do campo da palavra e da linguagem na psicanálise, que coloca o acento sobre a dimensão intersubjectiva da palavra: a palavra como meio do reconhecimento intersubjectivo do desejo. O que aí predomina são os temas da simbolisação como historiarização, realização simbólica: os sintomas, os traumatismos são "brancas", são espaços vazios, não historiados, do universo simbólico do sujeito; a análise realiza no simbólico esses traços traumáticos, inclui-os no universo simbólico conferindo-lhes a-posteriori, retroactivamente um significado. No fundo estamos ainda numa concepção fenomenológica da linguagem, tendo a análise como objectivo produzir o reconhecimento do desejo numa palavra  "total", de a integrar no universo da significação, identificando a ordem da palavra à da significação. Citando Lacan: " Toda a experiência analítica é uma experiência de significação" (Lacan, 1978, p.374). Será preciso recordar agora que Hegel estudou nos seminários de Hoelderlin e Schelling ambos tido influencia nos seus conceitos idealistas, o que nos levaria até Platão, o Pai das Ideias fundadoras do Bem, do Belo e do Verdadeiro. Uma herança que foi chegando aos nossos dias, incluindo como Zizec refere a utopia do marxismo (tal como em Platão também já tínhamos tido  A República e a sua ideia da sociedade perfeita, gerida por sábios filósofos (com a expulsão dos poetas, perturbadores das almas). Mas retomando Lacan:  eis que da filosofia, pela análise se busca agora o sentido, aquele que se oculta e reprime nos sinais de que falara Hoelderlin, nos seus Hinos. Ser um sinal que perdeu o sentido...E chegou o momento de falar de Nuno Félix, que conhece bem este filósofo, Lacan, e para quem a citação de que toda a análise é uma experiência de significação nos remete também para o célebre verso do poeta alemão: somos um sinal que perdeu o sentido. Filósofos, que constroem os seus sistemas buscando uma racionalidade que se torne explícita e clara, são diferenciados em relação aos poetas que. embora filosofando não é da racionalidade que se ocupam, mas sim de todas as outras formas possíveis, as irracionais também e acima de tudo. Porque há uma razão oculta no irracional, a circunstância, o acontecimento, a vivência (  o desejo ou a repulsa reprimidos). O interessante em Lacan é o modo como ele transita para os domínios da palavra, da linguagem, no dizer de não-sistemas que se aproximam mais da poesia do que da filosofia, manipulam símbolos como se fossem coisas palpáveis no mundo impalpável do que já foi e não é recuperável, engana-se quem julga que o tempo devolve ao outro tempo, do imaginário, o que nele se dissolveu. O que lhe devolve é já outra coisa, que a análise digeriu.

Podemos não ter herdeiros, mas temos antepassados. Nesta leitura que o estudo de Nuno Félix desencadeou há um Freud, fundador e que a todos guiou nos seus vários caminhos, mas há, como em Lacan, as árvores do pensamento dos caminhos de floresta de um Heidegger, por sua vez abrindo a questão do ser e do tempo - tudo o que é, é no tempo - e adiante a questão da linguagem, o sinal e o sentido, deriva que fez os linguistas de Paris dizer que Lacan tinha dado cabo dos estudos de Linguística na Universidade, ao formatar conceitos oriundos da filosofia e da psicanálise, traduzidos do alemão e por aí inovando e confundindo o que era normalmente ensinado.

Félix teve todos estes antepassados e foi ele próprio inovador: bebeu no surrealismo metáforas e símbolos arcaicos, mas a que deu novo sopro e nova actualidade. Toda a imagem, todo o objecto, e nas várias escolas também as da abjeccção, com em Bataille, se forem úteis serão utilizadas. A liberdade é total, Freud pode lá estar mas sem autoritarismo. Termino como ele faz, citando Wittgenstein: calar aquilo de que não se pode (por não conseguir) falar.

Mas deixo Valère Novarina, pintor e poeta, que afirma o contrário: ce dont on ne peut parler c'est cela qu'il faut dire!

Não tem fim o caminho...



   

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