Wednesday, September 28, 2022

Estranhamentos, ainda os poemas

 Quando o livro me chegou, pelo correio, não estranhei a beleza da edição, há anos que a editora Quetzal da Piedade Ferreira e do Rogério Petinga me habituaram ao bom papel, à letra cuidada, escolhida para que se leia, aos autores que depois arrumo na estante que chamo dos amigos. Só bons autores, bem editados, um prazer. Prosa ou poesia, sempre a colheita é genuína.

Por que me ocorre então esta palavra, estranhamento, com este livro de agora, O MEU CORPO HUMANO de Maria do Rosário Pedreira?Poderia ser outra coisa, o seu corpo, a não ser humano? Podiam os poemas ser de animais, uma espécie de bestiário moderno, ao gosto dos textos de metáforas medievais? Que humanidade especial deseja a poeta sublinhar, neste livro, com estes poemas? O tu a quem se dirigem não perceberia o sentido se ela não o sublinhasse? Que é corpo, (tanto como será de alma) e cada parcela do seu corpo adquire vida própria, como se fosse de vida renovada, pelos sentidos despertos, que abrem  em epígrafe o início da escrita e da nossa leitura:

É o meu corpo

humano, vê, ouve,

toca, pensa e

dói-lhe.

Volto porque

preciso muito

que me amem.

 

O livro fala do que sente um corpo que ama, mas deseja mais, que sofre e evoca o sofrimento, ainda que passado, desarticula, como se fosse livro de estudo de anatomia, as várias partes de um corpo que no poema se disseca. Tem a noção da efemeridade do que é humano no corpo, sem se sentir obrigada, no exercício poético a exprimir estados românticos de alma: "daqui até à morte é um instante". Pede contudo que aquele a quem se dirige - esse outro sempre presente - lhe ensine no intervalo da vida " as horas do amor". O amor, dado e pedido, faz a materialidade do seu corpo mais presente, ou mesmo sempre presente, quando é expresso. Basta um gesto, uma presença, uma comunhão, mesmo ao envelhecer pensando em como foi o sexo que fizeram e o que vão fazer. O mesmo com os poemas, pois também os versos terão o seu tempo, ou já o tiveram, e não se sabe se voltarão a ter. Esta não é uma poética de interrogação, é uma poética de evocação (bem humana) ou de afirmação convicta do que diz. Torna-se um quase diário que se não estivesse ordenado em estrofes, poderíamos chamar de prosa poética como a de Comte Lautréamont: prosa pela narrativa nua, realista por vezes de tão directa (passo a mão pelo veludo das tuas calças velhas / e aperto as nádegas / firmes do passado. Não sou /  só eu: as tuas roupas também / têm saudades".

Oscilamos, ao ler, entre passado e presente outrora um tempo feliz, agora um tempo que se suspende entre ser e não ser um tempo (um corpo) desejado. Ou como no poema de Sexo, um envelhecer ainda assim cuidado: " Os poemas, tal como nós, já vão / murchando. Há uma espécie de / bolor que se instala nas pregas da / nossa vida e deixa as mãos mais / trôpegas sobre o papel. / Ao fim da tarde / eu fico triste sem razão e / tu adormeces diante de um bom / livro. Temos medo do que aí vem, / mas não o confessamos (...) mas juntos e abraçados até ao fim. " O sexo, o acto de o praticar, com desejo e amor, é referido no poema, em suspenso porque como nos poemas tudo pode ter um fim: são corpo e são humanos os poemas, como a carne de quem escreve e também tem o seu tempo. 

O tempo, de sofrer, de ser feliz, de amar e ser amada, recordar e esquecer,  atravessa esta obra de Rosário Pedreira. É o tempo que torna humano esse seu corpo que ela detalha materializando, como Heidegger, o Ser. 

E já percebo porque me ocorreu a palavra estranhamento ao pegar neste seu livro. Quem já tanto fez, já tanto disse e escreveu, sente esta necessidade imperiosa de voltar a dizer, por que razão? Devolve a quem lhe deu outra vida, um seu relato, cheio de amor e gratidão que se adivinha entre linhas? Diz da sua existência, quem sabe outrora apagada, agora feliz num corpo que sente amado e por isso mesmo humano? Mais humano, como em Nietzche? Humano, demasiado humano, e precisando de mais e mais consciência de que é amado esse corpo, que é o seu. Não esquecer nunca que esta poeta é culta, lida, vivida, e não estranhemos o que nos pode a nós parecer estranho.

Estranha mesmo só a vida...

 



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