Wednesday, May 02, 2018

João Pedro George, Mamas e Badanas, ed. Guerra e Paz, 2018

Mérito às edições Guerra e Paz que têm no título a dupla ameaça da guerra, com a não menos perigosa realidade da paz. Eu pendo mais para o lado da guerra, pois a costumeira paz nacional, de moleza, preguiça, pasmaceira ou pior ainda verdadeira indiferença por tudo o que seja um mais arguto olhar sobre literatura, cultura e arte...a mim incomoda-me, sempre me incomodou, e continuo a achar, com Eça de Queiroz, em A Capital, que a dita precisa, para despertar, de um verdadeiro choque eléctrico, ao menos de vez em quando.
A editora já me tinha seduzido com o Dicionário das Palavras Supimpas: supimpa mesmo, e que me justificou a existência de mais uma tarde risonha de leitura...
Depois um risco enorme, edição dourada de O Físico Prodigioso de Jorge de Sena, um livro caixa, que se desdobra e deixa ver as pinturas sensuais de Mariana Viana a ilustrar o texto. Quem ousaria? Manuel Fonseca ousou. A sua guerra é também contra o esquecimento, a que nós, os portugueses, somos tão atreitos...a uma agitação de semi-histeria segue-se em regra uma cortina espessa de silêncio, com aparência de paz. 
João Pedro George, com esta sua investigação bem fundada e de um sarcasmo bem merecido, vem com o seu editor brandir um glaivo que não é submisso e pessoano, é de guerra.
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Guerra ao facilitismo preguiçoso que se auto-elogia e faz copypaste conforme a ocasião, a saber, a rapidez imperiosa de mais um lançamento anunciado, de uma obra que pouco acrescenta mas é preciso mesmo assim louvar e editar...e o que faz o temeroso guerreiro: escolhe a dedo, umas atrás das outras, as badanas, as ditas que se repetem até à exaustão, num fraseado ôco, por vezes até bacôco e que ao leitor mais sério tiram a vontade de comprar. A mim tiram.
É uma guerra útil? perguntará por aqui algum dos meus amigos. Claro que sim. Tudo que uma inteligência mais aguda detecte, aponte, corrija (ou não) e denuncie, é útil. Ajudará o escritor a estar mais atento, o editor a ser menos facilitista e, com sorte, o comprador a deixar de comprar, e a escolher outra coisa: uma t-shirt para os filhos, ou para os netos (se fôr da minha geração). O mau serviço do AO está à vista, e não há meio, com tanta festa das semanas da literatura, de ser emendado. Emendemos ao menos o vício de badanar.
Talvez se emendem os caricatos advérbios e adjectivos das badanas? Vale a pena estar por aqui a criticar, embora com riso largo? Acho que sim, adiro com gosto a esta guerra. 
Se na questão do gosto e da prática das badanas somos levados a uma interpelação do que poderia ser o princípio de uma história da edição em Portugal, os editores são de facto coniventes, já na questão das mamas (pardon my French...não se pretende ofender, o termo é médico, assim mesmo usado) o historial é diferente, e da plena responsabilidade dos autores-escritores.
João Pedro George merece que esta segunda parte do livro seja lida com o cuidado que nos mereceria uma investigação para ensaio de Mestrado ou mesmo de doutoramento. Porque leu muito, não se pode dizer que tenha lido tudo, nunca se lê tudo, mas leu muito, e escolheu, na variedade dos autores e das épocas, do século XVI ao nosso tempo, os exemplos mais significativos em cada poema, ou em cada narrativa em que os seios das mulheres se tornassem objecto de atenção, de tentação e quem sabe de alguma devoração...(psicológica, não quero ninguém perseguido por violência antropofágica). É espantoso o cardápio oferecido, por maiores ou mesmo menores (mas em Portugal não há menores, somos todos enormes) escritores e não resisto à pequena listagem, que vem na Introdução:
"Quem leu Camões, Eça de Queiroz, Mário de Sá-Carneiro, David Mourão-Ferreira, Baptista-Bastos, Maria João Lopo de Carvalho, Nuno Júdice ou Margarida Rebelo Pinto, entre outros, não terá por certo deixado de notar a abundância e variedade de mamas. As personagens dos romances de Miguel Sousa Tavares, por exemplo, são propensas a ver mamas em toda a parte, vivem dominadas pelo desejo de mamas, parecem não ter outra ideia, outro objectivo que não seja  a genuína busca de um par de mamas; nos livros de Domingos Amaral, é sobretudo de mamas descomunais, desmesuradas, de pôr os olhos em bico, que se fala" etc. etc. - pela enumeração, com exemplos detalhados, vê-se que J.P. George leu tudo e leu com atenção pois não omite detalhes, por respeito aos autores em causa, e entre esta Introdução, da página 121 até à Conclusão, na página 214, temos sucessivas variações de peitos femininos, (podiam ser masculinos, também? fica para novo projecto, ou Excurso em futura reedição) bem formados, entenda-se enormes e maternais, quase almofadas, ao gosto popular, neo-realista, que também aprecia como me lembro de ler ( e deixar de ler) no Alves Redol das coxas das moçoilas...) deformados, reformados por plásticas eventuais, redondos, bicudos, quase como armas de arremesso, enfim, não vou tirar ao leitor o prazer de ser ele mesmo a passear pelos títulos (em si mesmos todo um projecto de leitura) e pelas obras citadas.Vale a pena: 
O Império das Mamas Grandes (p.123), sim andam por aqui o Lobo Antunes, e a jovem geração de feministas, com Inês Pedrosa.
Enormes, Descomunais (p.129) sim, até a nossa prezada Agustina Bessa-Luís, mas dela esperam-se todas as ironias. Os outros acreditam mesmo no que dizem, desqualificando a definição de metáfora, que estudámos nos velhos manuais de Teoria da Literatura, desqualificando, ou melhor dito qualificando, mas da pior maneira, a mais medíocre, mais provinciana e parola de exprimir o desejo de um corpo que se reduz a olhares e descrições (digo bem, estamos com um sociólogo) de manejos e não de entregas mais subtis, a corpos que se reduzem a mamas, "gigantescas esferas dos peitos"( no Fado Alexandrino de Lobo Antunes) nem um Botero, no seu maior paroxismo lhe levaria a palma. Na prosa feminina, feminista, as metáforas sofrem, o vocabulário empobrece: "mamas cheias, cú redondo" (Margarida Rebelo Pinto, Vou Contar-te um Segredo). 
Na verdade, cú bicudo (pardon my French, mais uma vez, mas o que hei-de fazer, estou a ler o George) só a célebre pintura de Salvador Dali da nádega de Lenine apoiada num tripé,  que o surrealismo divinizou; tudo o mais é redondo. 
A Questão do Sutiã (p.134), Pequena Nótula Sobre coisas Óbvias (p.137), em que se sublinha que o interesse por esta atributo físico mamal é de todos os géneros, todas as classes sociais, todas as gerações, havendo apenas ligeiras e modestas alterações na designação usada, mais realista (quase ofendendo a vista) ou mais discreta, mas ainda assim quem sabe demasiado presente? Permitindo que se fale em obcecação excessiva, e levando à questão dos porquês? Falta de mais matéria? Por ser moda, ser chocante, e chocar levará a que se leia (venda) mais? (não a que se leia melhor...).
E por aí fora, não vou incluir, não é possível, todo o Índice, embora de tão justo, por um lado, e tão irónico, por outro, me apetecesse fazê-lo. Se quem me seguiu até aqui ainda não viu razão para ir depressa adquirir o livro, antes que esgote a primeira edição, ou que as livrarias fechem todas de uma vez, não considero mesmo assim o meu tempo perdido. Eu aprendi, e diverti-me imenso a aprender. Desejo o mesmo aos outros, que leiam, que aprendam, se divirtam.
Já agora uma última nota, à guisa de conclusão:
o autor, na badana de abertura não se exclui do esperado comentário com que deve apresentar-se. Diz de si mesmo "que nasceu nú, a 13 de Fevereiro de 1972, num domingo de Lourenço Marques (Moçambique) com quase quatro quilos". 
Já pesava no seu corpinho de bébé certamente um cérebro carregado de inteligência e sentido de humor ( o sentido de humor é um dos mais altos graus de cultura e inteligência  que possam definir o ser humano).
Mas a mim o que me reteve, e até este momento, em que volto a escrever, é a afirmação com que arranca o seu texto: nasceu nú. Faz rir, mas na verdade interpela de um modo bem profundo. Todos nascemos nús, por isso todos somos iguais. Mas todos morremos vestidos, e por isso todos somos diferentes.
É a roupa que nos veste que, ao longo do tempo, fará a diferença. Veja-se, cada vez mais, a importância da Moda e das Marcas na sociedade moderna.
Eu cresci educada a cortar as etiquetas que as roupas traziam por dentro, do casaco ou do vestido mais sofisticado ( por vezes de alta costura), ao mais simples de uso quotidiano. Não era correcto exibir o que se tinha. Hoje, pelo contrário, a marca é colocada bem à vista, por fora, na frente ou nas costas, tudo se exibe, tudo se sublinha, o que se veste marcará a diferença.
O que quero dizer? Que com uma simples frase, aparentemente jocosa, João Pedro George  nos devolve ao nosso lugar  de espécie mal acabada, nasce bem, porque igual, estraga-se pelo caminho, na ânsia de envergar a diferença, e é esta imperfeição que está na origem de muito do mal que vai no mundo, também nas letras, desde o modo como se vestem as capas e badanas ao modo como se despem as mamas.
Agora sim, tenho dito.





6 comments:

LMR said...

Diga-me, só por curiosidade, quem é que Manuel Fonseca salvou do esquecimento com essa edição de luxo de O Físico Prodigioso? Um escritor que teve esse livro publicado pela Babel em edição de capa dura há não muitos anos e que ainda pode ser encontrado facilmente em livrarias?

Yvette Centeno said...

Em primeiro lugar é um livro de Arte, não é apenas edição de luxo, pelo ouro da capa. Tem dentro ilustração que aprofunda a sensualidade de uma escrita que já pouco ou nada é lida, nas escolas, na Universidade. Fui amiga do Jorge de Sena, convidei-o para argumentar o meu doutoramento, e guardo a carta em que ele me diz o que pensa do nosso eterno Portugal...e por que razão o seu nome, mesmo após o 25 de Abril, seria recusado no Conselho Científico..
De longe, um autor é amado, na pátria é o que sabemos.
Dirá: mas um livro de luxo? Se na casa de quem o comprar se falar de vez em quando de literatura e arte, quem sabe, se nos PLN volta a aparecer a memória dos clássicos - hoje em dia Jorge de Sena é um clássico - em edição acessível, em vez dos habituais recortes de jornais, como se com recortes, e logo de jornais (!!!) se pudesse despertar o gosto da leitura...
Bem sei, agora que morreu, o Herberto Helder será o objecto de todas as saudades, louvores, infinitas ladaínhas: e a propósito, a pintora Mariana Viana, ainda em vida dele, fez um verdadeiro (mais um) livro de artista, sobre os Passos em Volta. Vale a pena procurar, a ver se aceleram a publicação...

LMR said...

Antes de mais, concordo consigo que Jorge de Sena é um clássico.

Agora, ele não é um pobrezinho esquecido e ignorado. A Babel tem produzido nos últimos anos óptimas edições da sua obra; é a ela que eu devo dois calhamaços da sua poesia completa. A Guerra & Paz, honra lhe seja, também tem feito um bom trabalho em publicar a correspondência dele. Há, além disso, muita atenção crítica a nível da academia, óptimos livros de ensaios, esses sim ignorados pela imprensa. Eu não vou trazer o PLN para este assunto, ele nunca me ditou gostos. Sem dúvida, ter Sena na oleccção daria um impulso à obra, mas eu acredito que o leitor educado saberá chegar a ela sem essa orientação.

Segundo, eu não vou à bola com ilustrações. Parece-me sempre uma forma de diminuir a palavra em proveito da imagem; penso que a palavra já trava uma batalha injusta contra a imagem fora dos livros, não precisa de o fazer aí também. Não obstante a qualidade das ilustrações, prefiro um livro na sua versão original. Também não acredito que sejam edições ilustradas que salvem escritores do esquecimento.

Terceiro, espero que essa carta chegue às mãos de Mécia; seria uma pena não aparecer num hipotético volume das Cartas Completas de Jorge de Sena.

Yvette Centeno said...

Caro Amigo,
Vejo que acordou mal disposto. Amar a literatura e a grandeza de uma obra, a mim não me impede de amar a Arte.
Quando era mais nova sempre pensei que ou seria editora, ou teria uma galeria de arte. Acabei Universitária. Gosto de Literatura e gosto de Arte, e pode haver e há, nos bons pintores, Ilustração que é criação, é arte, e em nada prejudica um grande texto.
Quanto à carta que o Jorge me escreveu, como calcula é minha, e a correspondência é, por enquanto privada... Tenho quatro filhos, 13 netos, não vejo por que hei-de "fazer chegar às mãos" de outrem como diz de forma azeda (também conheci a Mécia, num almoço de amigos comuns) algo que não pretendo vender, e por enquanto, embora pareça não estar viva não estou morta, estou só mal enterrada!
Ficamos por aqui? Ou a minha gentileza merece que me ofereça um livro da BABEL? Sem ilustrações e à sua escolha?

LMR said...

Olá,

Não, não pus nenhum azedume nas minhas palavras; essa impressão vem do vácuo de tom da internet. Mas realmente espero que um dia todas as cartas de Jorge de Sena existentes sejam publicadas.

Já deixámos os nossos pontos de vista bem vincados: eu não gosto de edições ilustradas; a Yvette, sim. Quero só esclarecer que não tenho nada contra ilustradores nem ilustrações. Nada me move contra Gustave Doré, por exemplo; mas prefiro os meus livros sem ilustrações, se não estiveram nos planos dos autores.

E para aonde deveria enviar o livro da BABEL?

Anonymous said...

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