Na realidade o título devia indicar que vou falar de Alexander Search, o heterónimo juvenil de Fernando Pessoa, cuja edição crítica também já se encontra publicada.
Da poesia de Search existe, para os leitores de língua portuguesa, uma excelente tradução de Luísa Freire, (ed. Assírio e Alvim, 1995) que obteve em 1996 o Grande Prémio de Tradução da Associação Portuguesa de Tradutores -Pen Club.
A organização dos materiais, feita por ordem cronológica, apresentando primeiro os poemas datados, a seguir os não datados e depois os que podem interessar devido à sua temática, serve os meus objectivos.
Pois aqui mais facilmente encontrará o leitor a semente da ideia, a imagem primeira e fundadora de motivos e temas que reaparecerão depois na obra do heterónimo ele mesmo.
Aqui, como no imaginado Jean Seul (este francês) veremos como em inglês, língua apesar de tudo mais familiar, devido à estadia do poeta na África do Sul, onde fez o liceu, surgem o que poderemos chamar as grandes obsessões: com a vida, Deus e o universo e a relação íntima com todas estas questões.
Há também um sentimento sempre presente - que não o deixará - de algum sentido único para o seu próprio destino. Sentido que buscará de todas as maneiras, e de que o imaginário ocultista fará parte. A dado momento transferirá para a pátria a ideia de uma vocação messiânica, oriunda das profecias de Bandarra e sobretudo dos escritos de António Vieira e da sua História do Futuro. Pessoa identifica-se com o génio de Camões, acrescentando essa visão mítica que transparece no ciclo da Mensagem.Dos poemas datados de 1904 logo o primeiro é sobre a morte: On Death / Sobre a Morte.
E como disse usarei, para facilitar a leitura, a tradução de L.Freire.
Trata-se de um soneto de qualidade banal, o poeta é ainda inexperiente, nesta altura, e o facto de usar não a sua mas uma segunda língua não o ajuda; o tom é solene e pomposo, e só o facto de fazer uma reflexão sobre a morte o torna interessante, pois tem 16 anos quando o escreve.
Mas recordemos Rimbaud e logo veremos a diferença da qualidade poética.
Pessoa começava, influenciado pelas leituras da escola, - já teria lido os clássicos, Shakespeare, certamente, o pensamento estava lá mas a genialidade só seria encontrada ao reencontrar a sua própria língua. Dirá um dia a minha pátria é a língua portuguesa, afirmação que pode ser entendida de diversas maneiras, mas também desta: na língua que é a nossa o ser mais íntimo, mais visceral, manifesta-se mais completamente.
Percorrendo os poemas de 1904 aí estão, como digo, os grandes temas, ainda que tratados de forma ingénua, ou incipiente. Também já surgem as Cíntias que merecem um Epigrama, ou umas quadras que aprecem resultar da leitura do Prometeu de Goethe, elogiando o mérito do trabalho:
Work/Trabalho
Não vieste à terra para perguntar
Se Deus, vida ou morte existem ou não.
Pega a ferramenta para trablahar
Pondo na tarefa cada pulsação.
Ferramente tens, não procures em vão -
Saúde, fé em ti, arte eficiente,
Capacidade, poder de expressão,
Coração sensível e força de mente.
Falei de Goethe, mas poderia também falar de Blake, ou antes dele John Donne, o grande metafísico inglês do século XVII. Há uma investigação por fazer, nos livros da biblioteca de Pessoa: verificar em que casos a contaminação até do estilo é mais directa, e se por vezes estaremos mesmo diante de versões livres daqueles poetas ou textos que mais amou. Não é crime esse ensaio de mão, é ele que prepara os futuros grandes momento de expressão total: quem não leu não escreverá nunca e nunca será grande escritor. Além do mais recordemos que tudo o que se publica agora é material do espólio, não foi escolhido, não foi preparado pelo poeta para divulgação. Estamos, ao ler agora os materiais da arca, a invadir a sua privacidade!.
Nos poemas de 1905 encontramos a Canção de Próspero /Song of Prospero que não deixa dúvidas quanto à leitura da peça The Tempest, de Shakespeare, a obra prima do fim da sua vida, sobre a qual escrevi no meu livro Teatro e Sociedade (ed. da Universidade Lusófona).Eis a tradução de L.Freire:
Minha vara partida no fundo enterrada
Para sempre vai ficar;
Mais fundo que nunca o prumo soou,
Afundarei meu livro no mar.
O encanto de Próspero desapareceu,
Arte e magia tudo morreu,
Mortos e jazendo no fundo do mar.
Nunca mais ligados a mim
Os alegres espíritos do ar,
O que os chamava vinha daí,
E está afundado no cavo mar.
Embora não veja da luta um renovo,
Desejo contudo esta vida de novo,
Jazendo pr'a sempre no fundo do mar.
Quem conheça a obra ulterior de Pessoa encontrará no poema Abdicação o desenvolvimento deste mesmo tema, de um poder oculto que se desejou, que se possuiu e do qual se abdica, reconhecendo para além do temporário benefício obtido os malefícios que igualmente acarretava.Abdicação é de 1921 e podemos ver como é profundo o tratamento dado ao impossível sonho de reinar, sobre os outros como sobre si mesmo.
Termina deste modo:
Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.
Os primeiros versos não são menos belos nem menos significativos:
Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços,
E chama-me teu filho.
...
A noite é um tema recorrente, como negro abissal onde toda a existência se dissolve e se recria, onde tudo se origina, como no Ungrund de um Boehme, ou já no século XX de um Paul Celan, como escrevi em Literatura e Alquimia (ed. Presença. 1987) O fragmento à noite, que Pessoa também escreverá em 1914, dois excertos de Odes, pela voz de Álvaro de Campos, é como um apelo à Grande Mãe, ao grande corpo materno, universal, envolvente, de que nada sabemos e tanto desejamos:
.................
Vem, Noite, antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.
Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas,
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo
.....
E assim continua, de fôlego longo, inspirado, inexcedível como poucos poemas o serão jamais.
Devemos a Maria Aliete Galhoz a primeira e pioneira cuidadosa organização, leitura e transcrição dos primeiros textos poéticos do espólio, preparados para a ed. Aguilar em 1972.
Neste volume pudemos nós outrora estudar o Pessoa ortónimo, os heterónimos, os poemas em inglês ou em francês, os fragmentos do Fausto, verificar as datas - e a cronologia é sempre importante para o estudo de uma obra - e a somar a todo este imenso esforço, as notas, abundantes (e carregadas de informação até hoje indispensável).
Faz falta uma homenagem adequada ao pioneirismo, feito de amor à obra de Pessoa, de Maria Aliete Galhoz. Não havia, naquele tempo, apoios financeiros, meios técnicos adequados, disponibilidade de equipas constituídas para esse efeito de divulgação do nosso grande poeta.
É ainda hoje o meu livro de cabeceira, quando quero reler Pessoa.
Mas voltando de novo a Alexander Search, e aos temas que de origem não mais o abandonarão, recordo um último, The Circle/ O Círculo, de 1907.
Há aqui de novo uma evocação que nos remete para leituras feitas, neste caso de Goethe e do seu Fausto I, quando o herói, imbuído ainda de paixão pelo poder da magia, procura, num círculo, descobrir os segredos da natureza, do Espírito da Terra, como diz.
Transcrevo parte da tradução de L. Freire:
Tracei um círculo por sobre a terra.
Era uma estranha, mística forma
Onde eu pensei que, muitos, houvera
Símbolos mudos que a mudança enforma
E da Lei, fórmulas complicadas
Que, do ventre da Mudança, são entradas.
Segue o poema com a afirmação de que o pensamento está condenado ao símbolo e à analogia:
Julguei que um círculo encerrasse inteiro/ em calma, a violência do mistério.
E adiante, para concluir:
E assim, em cabalístico jeito,
Ali tracei um círculo, curioso;
O círculo traçado era imperfeito,
Embora em sua forma cuidadoso.
Profundamente, da magia ao falhar,
Lição tirei que me fez suspirar.
Deixarei ao leitor, ao estudioso, que se oriente agora para estas primeiras produções de um Fernando Pessoa juvenil mas muito lido, empenhado num percurso que Fernando Gil chamou num seu recente livro de devir-eu, e que é isso mesmo: de todas as procuras a mais importante, a de quem se é, a do que se é. Ser quem, ser o quê, e de que modo. Pessoa procurou de todas as maneiras.
A evocação num círculo do Espírito do Mundo, que ao manifestar-se humilha Fausto e o coloca também a ele numa busca da Alma Superior, tem aqui, em Pessoa, um eco não menos importante.
Não será a magia a força condutora, embora possa ter sido, a dada altura, a força que despoletou todo um processo: o de um Eu que a experiência da vida torna humilde, e por isso mais sábio e exemplar.
1 comment:
Agradeço a beleza deste post e um Fernando Pessoa para mim desconhecido.
Talvez venha tarde este conhecimento, o que me deixa melancólica, o tempo que perdi...
o tempo que nunca vou agarrar.
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