Uma recente exposição de Gauguin, o Fauvista por excelência que vemos com os seus nús de jovens tahitianas quebrar alguns tabús epocais, fez-me pensar noutros artistas, com iguais "marcas" de estilo, sobretudo pela força do colorido e da expressão - no sentido do Expressionismo tal como foi definido pelos seus cultores, no início do século XX.
Afinal os "ismos" são de todos os tempos e de todos os espaços: a violência da côr, a velocidade da forma, a intensidade e espessura do traço podem ser encontrados num pintor como Hein Semke, por exemplo, no seu "exílio" português.
Como poderemos defini-lo, a ele que não gostava de definições?
A liberdade a que aspirava, no exercício da sua arte, transparece em todas as áreas que escolhe como campo de trabalho: as cerâmicas, as pinturas, as esculturas, os livros.
Só uma limitação, aquela que o material a usar lhe impõe : o barro ou o bronze não são o mesmo que o papel ou a tela.
Contudo e volto aos ismos, a modernidade da obra de Semke está patente em toda a obra produzida: formas livres, até mesmo libertárias (num Portugal que à época, anos 50-60, desviava com falso pudor o olhar pequeno-burguês que fingia não deitar sobre a arte); livre na obra, livre nas amizades, a maior parte do círculo dos surrealistas que a seu modo foram sacudindo arte e costumes enquanto viajavam entre Lisboa e Paris, e Paris e Lisboa; e com tudo isso, a permanente alegria da côr: nos corpos, nas paisagens de horizonte mais largo ou mais estreito, nas flores, nas árvores, fazendo da côr um verdadeiro elemento de suporte expressivo e simbólico, um meio de nos transmitir a energia de alma que era a sua.
Falarei de misticismo?
Talvez, pois houve sempre e manifesta-se sobretudo nas Esculturas e nos Livros uma dimensão filosófica no seu pensar de vida e obra.
Veja-se a terceira imagem que escolhi, de S.Francisco de Assis, um gesso policromado, de c. 1937. Mas se falarmos de misticismo teremos também de remontar a Lutero, à sua livre discussão do lugar do Homem no Mundo e de Deus no Homem.
Teríamos de falar da Consciência de Si na Arte, e da consciência do Outro em Si - a relação que dá universalidade à obra que se produz.
A recente exposição, na Galeria PERVE de um Cadavre-Trop-Exquis que reuniu Cruzeiro Seixas (que foi um dos amigos de Semke e de sua mulher, a poeta Teresa Balté) com Isabel Meyrelles e Benjamin Marques, fez-me pensar em como estes exercícios de rara elegância e beleza do mais puro surrealismo teriam ao tempo, com Cesariny ainda, fascinado o pintor que da pátria alemã trazia, como trouxe, a energia das raízes plurais.
E voltando aos ismos do nosso Modernismo, aqui e ali e acolá - o que mais importava era o que cada um por si próprio era capaz de oferecer aos outros: fosse nas tertúlias de casa (e relembro Natália Correia) dos bares ou dos cafés, fosse nos bairros antigos ou nas ruas por onde se passeavam os plurais de Fernando Pessoa, os inimigos de estimação de Almada Negreiros, ou outros do mesmo modo.
E Semke, até 1995, no meio deles.Podemos dizer que trouxe à melancolia nacional o seu animismo expressionista, a sua alegria solar.
A nota biográfica do Museu do Azulejo, muito completa, revela um artista de largo e universal convívio, onde não falta um Picasso, por exemplo, uma Vieira da Silva ou um Arpad, entre tantos outros.
Se tivesse de escolher agora um quadro em que se espelhasse a memória da totalidade de alguém como Hein Semke escolheria A TERRA E O CÉU, tinta da china sobre papel, de Cruzeiro Seixas.
Neste quadro, da cabeça coberta de penas de um guerreiro sai um cavalo que será voador, como o pensamento que voa, atravessando os céus. Esta cabeça, de rosto parcialmente coberto por fina mão, feminina no gesto, será a terra, ou o seu emblema; mas o cavalo é o céu, o espaço das Ideias do Belo, do Bom, do Verdadeiro, as energias da alma que Platão descreve no seu Fédon.
Evocar Hein Semke, a propósito dos fauvistas, dos expressionistas, e aproximando-o aqui dos ismos surrealistas, é evocar as energias da alma.
Deixo aos leitores a sugestão do catálogo da sua escultura, organizado pelo Museu de José Malhôa.
1 comment:
Muito bonito o quadro de Cruzeiro Seixas.
Gostei muito deste texto que toca as Ideias do Belo, do Bom, do Verdadeiro.
Ultimamente nesta grande aridez por que passamos tenho procurado estes pilares robustos de Platão. O seu post teve o condão de me trazer beleza.
Obrigada!
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