Sunday, April 24, 2022
A terceira margem do rio, de João Guimarães Rosa
Neste conto, da colectânea das Primeiras Histórias, há um homem que sem saber como nem porquê decide enfiar-se numa canoa, ir para o meio de um rio que atravessava a sua aldeia, e nunca mais voltar a terra, vogando por ali, envelhecendo com o passar do tempo enquanto o filho perplexo tentava perceber que decisão e sentido aquilo podia ter.Foram anos assim.
Há um sentido oculto, nesta súbita decisão. Não podia ser mero capricho.
O homem que fizera essa escolha, deixando para trás mulher e filho, era um homem transformado. Mas em quê ? No guardião do Rio? Por imposição dos deuses, ou do seu íntimo deus, que lhe dera tal missão? Que terceira margem era essa para onde ele se retirara, esse entremeio de vida, que se tornara o único possível? Era um entremeio de pura espiritualidade, pois ele não pescava, para se alimentar das águas,nem ninguém das margens normais lhe enviava regularmente comida.Como Caronte, vivia ali o seu destino eterno, mas sem obrigação de transportar ninguém.
O RIO EXISTIA PARA SI, OU ELE SOZINHO E EXCLUSIVAMENTE PARA O RIO.
Tratava-se pois de uma viagem, uma travessia da sua vida mais secreta e mais profunda, em que o afastamento das margens separadas era o objectivo da escolha feita: diremos uma busca, que seria bem ou menos bem sucedida, do seu inconsciente, onde o todo do sentido de uma decisão de mudança de vida lhe seria revelada. Passa o tempo, ele é já um velho,de cabelo e barba comprida, desgrenhada, desagradável à vista, a ponto de a dada altura, quando finalmente acede ao apelo do filho, o assusta de morte e o filho não vai ter com ele, foge aterrado para bem longe. Podemos dizer que a união das duas margens (os opostos dos alquimistas) não tiveram ali a união que o terceiro elemento (a terceira margem) teria permitido. Se pensássemo na arquetípica doutrina da alquimia, a terceira margem seria aqui o sal vitae, o sal da vida, sendo as outras duas o enxofre (masculino) e o mercúrio (feminino).
Mais símbolos se poderiam procurar na magia oculta deste texto.
A questão da terceira margem (invisível aos outros, mas vivida pelo homem) sobrepõe-se à imagem do rio e do seu barco, salientando deste modo a importância de um inconsciente que aspira a manifestar-se e no pleno isolamento e no silêncio que a margem invisível lhe permite assim o fará atravessar a vida. Pois é da vida que se trata, tanto como da morte.
A vida, espiritualizada, como no célebre Axioma de Maria, sobre o qual Jung e seus seguidores tanto gostavam de meditar : do um nasce o dois e do dois nasce o três como quatro (ou como quarto, segundo outros). Sendo que o quatro é o número da completude, o número da pefeição, da Pedra sublimada. Leia-se Pedra como vida...
Nas margens do rio, a mulher e os filhos, havia um irmão e uma irmã, corria com a normalidade possível. Veio mais família para ajudar às lides da subsistência a vizinhança, por muito que quisesse ajudar não conseguia. Não se falava em loucura do homem que encomendara a sua canoa bem justa ao corpo, bem talhada em boa madeira resistente, canoa que podia ser caixão.O filho preocupava-se com ele. Como se alimentaria, se vestiria nas noites frias, como escaparia a algum bicho maldoso. O filho era seu alter-ego, seu duplo, seu Eu ainda não solto do mim.O homem entretanto envelhecia, a vida era o que o levava para cá e para lá, mas sempre longe, sozinho e mudo, no rio. Pensou o filho: estará ele a cumprir uma Promessa ? Feita no alvor dos tempos? E correu para ele e gritou que já bastva de tanta entrega a tão grande sofrimento, ele, o Filho iria substituí-lo na canoa. O homem pareceu responder e começou a aproximação à margem onde se encontravao filho.
Mas o filho não estava preparado para a morte, essa aproximação era o que significava, era a morte, de modo que se assusta e foge, tomado de pânico, e depois se arrepende: pois a morte exige que nos preparemos, mais ainda do que a vida, e daí o apelo fatal dessa terceira margem...
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1 comment:
A editora Global, no Brasil retoma os grandes autores.
Recebi hoje - prenda melhor não podia ter - a edição das Primeiras Histórias. Cura para o Covid!
Parabéns e obrigada, Global.
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