Sunday, August 08, 2021

RITA FERRO, OS PÁSSAROS CANTAM EM GREGO, DIÁRIO III

Leio este Diário, o terceiro de uma série que espero  seja continuada com a mesma verve, gosto do pormenor e do inusitado, e penso: vamos, na sua escrita, do particular ao universal. Talvez nem ela dê por isso, autora de uma vasta obra, conhecida e reconhecida, que neste momento da sua vida (ela refere os seus sessenta anos) toma a decisão de sair da Lisboa dos muitos eventos sociais a que não se podia faltar, e de se recolher no Ribatejo a um silêncio, a um isolamento (que não é solidão) que lhe permita viver os dias a tempo e com tempo - também para esta escrita de um Diário que será diferente dos outros já publicados. 

Desde que li o primeiro que me senti atraída pelo seu modo de narrar, culto sem exibir erudição, simples e directo numa prosa genuína que aproxima o leitor, não o afasta, e ao escolher o que preenchia os seus dias, do trabalho, dos amores, da família, o cuidado de dar a ver uma vida, a sua, com os altos e baixos que todas as vidas têm. E por aqui, esta sinceridade que revela ao mesmo tempo liberdade (os outros que pensem o que quiserem, pouco importa) e coragem Rita conquista os seus leitores. Querem mais do que ela diz, querem mais da sua vida, que é, ou foi, a muitos títulos, uma vida  de privilégio.

Nasceu em berço especial, num antigamente em que as famílias tinham casas grandes e boas, mas no seu caso ainda mais especial, porque era uma casa de cultura, onde abundavam livros, quadros, artistas vários que a frequentavam para amenas conversas em que tudo era discutido e se esperava um horizonte maior para o país. O seu pai, de quem fui amiga e admiradora, encontrava em Fernando Pessoa a lucidez e a criatividade que reencontro aqui, nos escritos da Rita. Uma geração que desejava servir o país, quando não era num espaço era noutro, igualmente pensado para divulgar o amor da arte. Lembro-me do IADE, onde António Quadros, com Mestre Lima de Freitas davam continuação a essa esperança e esse amor. Fui lá algumas vezes falar de Fernando Pessoa, eram os anos oitenta. Não conhecia a Rita Ferro, mas com esse ambiente em que cresceu não me admirei nada ao descobrir a qualidade da sua inteligência e da sua escrita, já na mudança dos tempos, com a naturalidade de quem se sente livre e em liberdade pode dizer o que tem a dizer. E não há dúvida que no caso das mulheres, a sociedade portuguesa se abriu, as exigências passaram a ser outras, e fazia falta que alguém as apontasse. Rita fez o que sentia que tinha de fazer, também ela, ajudar a mudar um país que outrora de tão envelhecido estaria a morrer.

Primeiro de tudo clamar independência. E a seguir viver de verdade a independência adquirida. Tinha trabalho ( sem trabalho é mais difícil ser independente, mesmo quando se tem pergaminhos de nascença). Eu sou do tempo em que a mulher não trabalhava, era preparada para casar, ter filhos, tomar conta da casa, do marido e da família, sempre numerosa. Mulher disponível, sempre, e  sem vontade própria. Vi as minhas colegas do colégio onde andei, em Coimbra, e no liceu, saírem para casar. Universidade? Quase parecia mal.

Rita Ferro teve melhor sorte, viveu a mudança, não ficou presa a um passado de opressão, e tomou em mãos a sua liberdade, fez as suas escolhas, e tudo transparece nos Diários. São grande lição de vida, e mais uma vez neste último é com ela que se pode aprender que a mulher tem vida própria, que deve ter a coragem de a viver, sabendo que a ideia de felicidade (a pacatez de outrora) é mais um sonho, um entretém passageiro, do que uma realidade. 

Real é a vida em plena consciência do que se quer, do que se é, do que se foi, do que se pode ainda vir a ser. Não é por acaso que temos a abrir o livro uma epígrafe de Bernardo Soares, o do desassossego de Pessoa: "A liberdade é a possibilidade do isolamento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo". Eu diria mais: andar ao sabor dos acontecimentos impostos é pior do que ser escravo, é morrer, mesmo que não se saiba. 

O Diário começa em Janeiro de 2019, com um olá amigo aos seus leitores, e tratando-os por tu. Porque se a leram até aqui já se ganhou esse afável tratamento do "tu" destinado a amigos.

E cá estou eu, de novo sorrindo, porque também eu digo, como Jacques Prévert: je dis tu à tout ceux que j'aime. Não a qualquer um, mas àqueles que amo e com quem me sinto à vontade, em casa, como se fossem família. São poucos, mas são os verdadeiros.

A questão da idade, e do isolamento que Rita procurou, dando uma grande reviravolta na sua vida - deixando a Lisboa de sempre, a casa ou as casas de sempre, as rotinas e até os amigos, pelo menos alguns - revelam a sua enorme necessidade de escolher, ser livre e estar sozinha. Sozinha, sem horas determinadas e compromissos quantas vezes penosos. De novo apesar da diferença de idades me revejo nessa absoluta necessidade de estar sozinha de vez em quando: se assim não fosse não escreveria nunca. Não mudei de casa, nem deixei de ter filhos, família, amigos. Tive a sorte de um marido, companheiro até hoje de uma longa vida, e quando a Rita escreve que hoje em dia benze-se muito, reza muito, dou comigo a pensar que rezo, também eu: avançar na vida é para mim temor, não digo um ano a mais, receio um ano a menos. Não meu, mas de quem amo. 

Rita fala de amor, o amor dos homens, no seu Diário. Percebe-se que o seu isolamento terá a dada altura um fim: um companheiro que ali fique com ela, ao menos por um tempo. É jovem, a vida está ainda à sua frente. Assim parte para a casa que comprou no Ribatejo, onde tem por perto uma tia ( e aqui de novo estou próxima, a tia é uma amiga de sempre do meu marido...).

Descobre na net um cão, que lhe fará companhia pelo Diário fora, em várias situações. O dono - e veja-se como é pequeno o país - é o Bruno Namora, sobrinho do Fernando Namora, escritor que foi em Coimbra amigo do meu pai, que me deu a ler os Retalhos da Vida de um Médico. A dada altura também eu convivi com o Fernando Namora, quando ele foi Presidente do Instituto da Alta Cultura. Marcar presença no mundo, levando lá para fora os valores das nossas Universidades, dos nossos Criadores. As páginas que descrevem o cão, de nome Beef, e os conselhos do Bruno, os cães precisam de mimo, tal qual as pessoas a que se afeiçoam, mais os passeios quotidianos pelo campo, ocupam várias páginas, em que não falta inclusivé a trágica morte de uma zeladora a ser atacada e devorada raivosamente por quatro rottweilers. O campo tem disto: mas deixar aqui na página 23, ainda no início da narrativa da mudança de vida, revela, por parte da autora, um saber de como se quebra a monotonia de um discurso e se introduz um elemento que de chocante faz o leitor acordar melhor para o que se vai contando.

Seguem-se páginas suaves, em que Rita fala dos filhos, do seu amor por eles, que estão como se vê, pelas restantes situações referidas, sempre no seu pensamento e no seu coração, junto com os netos que também vão surgindo à medida que as páginas avançam.

Mas não esconde como se sentia presa e infeliz com as exigências de um marido, descrito como machista na p.28, e a revolta que sentia por não ter um único momento para si, em que se pudesse recolher para pensar.  Salto o episódio semicómico, se não a fizesse sofrer, do rabanete que não estava cortado como o marido gostava...e subtilmente se denuncia como são importantes, numa relação, as origens e os hábitos rotineiros, culturais. Uma história de rabanete pode realmente acabar com uma relação...as fúrias, as zangas, os sentimentos de revolta ocupam as páginas seguintes, e explicam como uma mulher moderna, num mundo que queria mudar, tinha ainda muito que sofrer (p.29). Da confissão que faz a seguir de como se apercebia que os outros, os filhos, sofriam com os seus destemperos passa então à descrição do que foi a mudança para a casa nova, e todo o tempo, maçadas e cansaço que uma mudança implica.

A mudança de casa foi de facto épica, como diz a autora e tomou-lhe muito tempo e muito cansaço, até que chegou à elegância, há que o dizer, do resultado final, com móveis antigos de boas madeiras, quartos onde caberiam muita gente, casa de banho quanto baste para o conforto de todos, a descrição vem muito bem detalhada nas páginas 31 a 33, sem omitir o "tapete enorme" que veio da antiga casa de Rio Maior, onde foi feliz e infeliz até se divorciar mais uma vez. Nesta nova casa não falta jardim nem piscina, nem televisão em cada quarto. Gosta de adormecer a ver televisão e deixa aos outros a mesma possibilidade, se quiserem. Mudou de casa, como lembra, quinze vezes, o que revela uma grande necessidade de mudar, de se renovar e começar de novo. 

É sabido que os filhos, por muito que amem os pais, ao crescer se tornam seus Juízes, e os julgam, ora calando ora dizendo em voz alta o que pensam. E deixo Rita falar:

O meu filho diz que faço batota, pois esta casa não é bem uma casa de campo, mas uma casa da Linha (entenda-se a do Estoril) plantada numa rua de terra batida com extremas para terrenos agrícolas. Talvez tenha razão (vemos que tem, pela descrição que foi feita da casa) é elegante e nada tem de rústico, já que a mobilei com tudo o que tenho de bom e trouxe do Estoril, decorando-a com toda a aristocracia que me resta no sangue" (p. 33). É isso mesmo, o berço não se renega, as marcas ficaram e serão para sempre. Rita aludiu às muitas quezílias que tivera com a mãe, mas agora não queria quezílias com os filhos. Tinha amor que chegava para todos, queria ser amada de volta, mais do que julgada, e queria que a visitassem, sempre que possível, naquele espaço de reconstituição, mais do que de renovação. Pedia apenas um tempo, o do isolamento que esperava criador, como se veio a revelar, com mais este Diário.

" Hei-de chegar a ser, apenas, uma sombra amiga, de regaço disponível e sem exigências de nenhuma ordem" (p.39). Um voto ou um anseio feliz, depois de ter reunido em festa de anos a família toda (o núcleo duro, como escreve) e ter matado saudades. A família e a sua dedicação estão sempre presentes no que escreve.

Acrescenta ainda, depois de todos irem embora, que é para um arquétipo especial, o do silêncio, que tenta caminhar. O ser, a consciência de ser, exige um tal silêncio: ser o que se é e ter consciência disso. Poucas linhas adiante afirma " Pensei, também, que a minha dimensão de mãe de família gregária se está, pouco a pouco, a transformar numa prioridade sobre  o meu trabalho, os meus livros e a minha já penosa vida social. E que há um momento para se ser, finalmente, a mãe que os filhos desejam, e que esse momento é ditado por nós e não por eles - venham a mim as criancinhas" (p.40). Eis uma avó que surge, mas também neste momento não é hora chegada de ser completamente o que se julga ser. Há mais vida ainda, para interpelar, para esperar reposta, para fazer balanço, melhor ou pior, do que a existência permitiu.  Muito se faz  ou se deixa de fazer sem ser por vontade própria, ao longo de uma vida. E vejo, aos oitenta anos que tanto podia ter feito e não fiz, como Rita neste momento de reflexão no Diário vai explicando a si mesma. Está a tentar saber, por isso procurou em parte o isolamento, nunca total, a que se entregou. Fez 64 anos, neste dia de todos juntos, filhos e netos. Mas sente que tem 18. Vive nela uma pulsão de criança eterna, e a vida estende-se à sua frente.

Na página 47 deste diálogo permanente que mantém consigo mesma transcreve a carta de um amigo escritor, que lhe fala da relação pais-filhos, filhos-pais. Com grande sensibilidade e inteligência diz a verdade: os filhos já vivem, depois de crescidos, e hoje em dia, "num outro tempo, com outras solicitações, outro ritmo, outra cultura, um tempo que poucas vezes encontra o nosso"(p.47). E ainda: " O tempo das casas grandes e das famílias alargadas, em que viviam na mesma casa três gerações, acabou. Hoje em dia as famílias estão atomizadas, à moda americana. Os pais vivem aqui e os filhos podem trabalhar na Polónia ou no Dubai"(p.48).

E é mesmo assim, os meus netos já vivem ou viverão melhor lá fora do que perto de nós, os avós que os adoram, mas não têm condições de os acolher a não ser quando calha, num ou noutro momento. Foi igual com os filhos, quando o país deixou de se importar com bons modelos de educação, e foram para fora estudar o que tinham escolhido, e aqui não havia portas que se abrissem. É o mundo em que temos, nós, os antigos, de nos habituar a viver, deixando que os outros voem, nas suas vidas, e tenham o sucesso que desejam. Não o social, mas o espiritual, cada vez mais importante para a felicidade interior de que tanto se fala. Rita responde estranhando ainda, era tudo adquirido no mundo que viveu como criança e jovem, - mas agora nada é adquirido, e é disso que filhos e netos falam, porque vivem na pele a insegurança,  a todos os níveis. Como diz noutra resposta o amigo "Os nossos filhos estão fartos de nos ouvir. Não têm pachorra, como dizes, porque acham que dominam tudo. Aos trinta e tal anos as pessoas acham que dominam tudo. Eu também achava. Não procurava o saber dos meus pais" (p.49).

Revejo-me, não no espanto e estranheza da Rita (sempre são os meus 80 anos), mas na sabedoria deste amigo, que não conheço mas descreve a realidade do hoje, não a saudade do ontem, que não existe mais.

Já fiz referência ao facto de os filhos, ao crescerem, passarem a julgar-nos. Nem sempre de modo amável. Rita lembra um desabafo de Marta: Em todas as vezes que podia abraçar-nos, preferia ensinar-nos (p.49).

Mas é sorte, e Marta beneficiou de certeza mais tarde dessa capacidade de ensinar que a sua mãe teve. Hoje não há quem ensine, as relações, o trabalho, o convívio, é tudo quase sempre artificial, ou interesseiro do pior modo,  muitas vezes político e para benefício futuro.

Os dias vão passando, no Diário, e de novo ressurge Bernardo, o terceiro marido, e a amizade que ficou depois do divórcio, e os aproximou ainda mais. Ele grande doente-resistente, ela a admirá-lo por tanta luta e mais qualidade de vida, a que restasse. São páginas de recordação comovente, mas não se volta atrás nunca, nem num amor perdido e que parece achado. Ao chegar a casa, depois do encontro na estrada, Rita chora.

Sem dar por isso, foram abordados os grandes temas da nossa condição: a necessidade de mudar, para se aprofundar o sentido da vida, a relação ímpar com a família, núcleo duro de mãe e avó, e a questão de aceitar sem discussão inútil as diferenças de geração. A nossa que nunca mais será igual ao que foi, e a deles, de constante imprevisto. Segurança é conceito do passado. E pelo meio o reviver inesperado de um grande amor, o do Bernardo.

Mas a vida continua, e já na página 77 se vê que que a fome de isolamento não se compara à fome de boa comida e melhor bebida, trazendo à baila a questão do excesso de peso, do desgosto com a imagem do espelho, e outras no género, como o isolamento anunciado não ter grande efeito, pois a casa é uma correria de gente - o que já seria de esperar, sendo a Rita Ferro quem é. Uma artista em todos os sentidos, dos mais amáveis aos mais desconhecidos.

Não cabe num post que escrevo para chamar a tenção de um livro bem escrito, com temas que subtilmente o atravessam e têm tudo a ver com a vida, as várias vidas, nossas e dos outros, e do seu sentido profundo, toda a leitura que fiz.  Na página 99 Rita decide apresentar-se, com um resumo tipo c.v., por onde estudou, o que fez, como perdeu os pais, como viveu num atropelamento de compromissos a que chama "bebedeira permanente".

Agora vinha a ressaca? Não, não é isso que se espera de uma autora como ela, agora vinha em parte uma vida normal, mas não normalizada, uma vida escolhida, não imposta, adquirindo novos ritmos, com as interrupções que fossem necessárias, as idas a Lisboa, os regressos saudados pelos cães e sempre o cuidado de ir contando. Um Diário é uma história que se conta, para se recordar, e exige rigor, e um pouco de invenção, nos intervalos da memória. Num Diário não adianta recriminar, é pura perda de tempo, o que passou passou, o olhar é em frente, enquanto as Estações mudam, se sucedem, e nós temos também de nos ir sucedendo, para não estiolar de vez. 

É a vida que chama por nós, em cada dia nos interpela, exige que saibamos o que somos, quem somos, como somos, até que chegue a hora. Só isso vale a pena recordar.

(continua talvez amanhã ou depois...)







 






 

1 comment:

Rita said...

Yvette, Yvette, fiquei de coração cheio. O seu artigo chegou há dias, devo ter aberto sem querer e não me ter apercebido, e só hoje é que li. Fiquei pela segunda vez comovida - a sua primeira leitura foi de A menina é filha de quem? - pois, apesar de ter sido poupada por uns e criticada por outros, nunca ninguém me leu com esta minúcia, esta profundidade, esta extensão e generosidade de palavras. Fiquei com um nó na garganta e os olhos cheios de lágrimas, de certa modo senti-me vingada de toda esta gente que me olha altivamente há tantos anos, como se o meu avô, nascido no século XIX, me tivesse contagiado com lepra. Não tenho palavras, mas agradeço-lhe do coração. É uma dívida que jamais poderei pagar-lhe a não ser com o meu profundo respeito e gratidão. Gosto muito de si, sempre gostei muito de si, sempre ouvi o meu pai referir-se a si como uma autoridade e quando ouvimos coisas destas na infância a pessoas que nos são caras fica gravado na pedra da nossa memória. Entrego-lhe o meu coração.