Recebi esta edição bilingue da EUFEME, com as traduções de Sérgio Ninguém de um conjunto de Haikai de Peter Levitt, autor que não conhecia e que seduz por várias razões: a escolha da beleza dos Haikai, em primeiro lugar, e em segundo a fidelidade que demonstra em relação às doutrinas do Tao, o Caminho, The Way, - que deveríamos, de seguida ir ler, se não o fizemos já, no célebre Tao Te King (uso a tradução francesa de Étienne Perrot, mas há várias, excelentes, em inglês).
Esta centena de borboletas, têm também elas, o seu significado simbólico: pertencem a uma esfera de beleza e leveza, tanto poisam na flôr como levantam vôo, seguindo para um céu pleno, misterioso, onde abunda um luar que em silêncio acompanha a meditação do poeta:
1.
Trazes-me um maço de poemas.
A lua levanta-se num,
põe-se noutro,
e há flores espalhadas
entre as demais,
molhadas na erva recente.
Em troca fico sentado sem pensar, dias a fim.
Fiz uma ou outra pequena mudança na tradução do Sérgio, mas que é na mesma uma homenagem à sua interpretação. Sem ele a tradução não existiria.
Neste poema a entrega à meditação do Tao, o Caminho, que se alcança ou se persegue pela via da contemplação, da ausência de ruído que o fluir do pensamento provoca, ficou bem expressa. E do modo mais belo, o do maço de poemas.
2.
quatrocentos pelos de um pincel
pintam uma folha de bambú
a pincelada dura dez mil anos
O número 100, o número 10.000, significam a abundância da existência, a vastidão do universo, para o qual o Tao nos chama a atenção. E a arte, como o universo, é a forma de eternidade concedida ao homem, no seu caminho.
No seu pincel, na finura do ideograma que desenha, se condensa o que há de espiritualidade a descobrir. O Espírito é eterno, possa embora o bambú em que se materializou apodrecer.
3.
Esta água corre o ano todo
mesmo no Verão
sem destino.
Na boca do rio
as pessoas reúnem-se para a beber.
Cumprem-se nestes versos duas das normas que definem o Haiku, e que é a alusão a um dos elementos (são cinco na China, a madeira é o quinto): água, terra, céu, fogo, ou ainda, a referência às estações do ano, Verão, Inverno, Primavera, Outono.
Atrás o bambú seria emanação da terra, ou da madeira; aqui temos a água e o Verão, mas a água corre o ano todo, ou seja, abarca o todo do tempo que se vive.
No número 16 encontramos uma alusão muito especial ao Vazio que é a aproximação do indicível Tao.
Eis no original de Peter Levitt:
The page is full of words
the well is full of water
night full of dreams
all this
empty my heart.
A arte de condensar, na pincelada ( que imaginamos) como no dizer, leva-nos à meditação do Vazio no coração do artista. As muitas palavras na página, o poço cheio de água, a noite cheia de sonhos - são tudo o que lhe esvazia o coração. Esse Vazio é um dos mitos nomes do Tao, a Via, o caminho.
A meditação desta doutrina é mais metafísica do que mística, e a criação que no Haiku reúne conceito e imagem, é-lhe perfeitamente adequada. É o que encontro no nº40, que de novo deixo no original de Peter Levitt:
No life but this one.
Tall grasses
bow in the wind.
Só uma vida.
Ervas altas
curvam-se no vento.
O Tao exprime a vivência do momento, a poesia taoísta é resultado do Presente, no interior do Tempo eterno, do Ser que sendo embora luminoso contém em si o oposto da treva, como lemos no poema 42:
Antes do amanhecer
trocamos a luz de um
mundo de sonho
pela escuridão de outro.
O sábio que medita opera em silêncio a fusão de ambos.
Outro dos grandes livros do taoísmo, o Yi King, desenvolve, nos seus 64 hexagramas, as várias dimensões da vida de quem o consulta, a pessoal e sua circunstância, a social, condicionada também ela pelos comportamentos da comunidade, e a política, que ordena seguindo o modelo celeste o caos que de outro modo destruiria a humanidade.
São livros da sabedoria mais antiga, que no século XX foram encontrando tradutores e estudiosos e que neste momento estão à nossa disposição.
Agradeçamos à EUFEME a generosidade de lembrar.
86
Um portão aberto-
um campo vazio-
quem quer avançar?
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