Saturday, April 11, 2020

João de Mancelos, os Haikai

Num post mais antigo sublinhei a forma poética mais livre, mais despojada, que encontramos nos criadores de hoje em dia, que já viveram literariamente os Modernistas, Pessoa, Almada, ou os dos anos sessenta, libertários e criativos como um Herberto Helder, um Alexandre O'Neil, Alberto Pimenta, entre outros.
Tenho nas mãos o mais recente livro de poesia de João de Mancelos e encontro uma relação tranquila com um dizer de marca oriental que corresponde a uma outra forma de evolução, à medida que o pensamento taoísta se vai divulgando entre nós, pelas artes marciais, de raiz mística,  e pelos hábitos culinários que nos vão habituando a sabores ora mais puros ora mais subtis e requintados.
 A produção poética, pela via das formas elípticas, condensando em três ou no máximo quatro versos, ideia e imagem, o que é mais natural numa escrita ideográfica, como a chinesa, também tem feito o seu caminho, e deparo agora com um belo livro de João de Mancelos, um livro de Haikai, poesia depurada, evocando nas suas 5 partes momentos especiais em que se demora para os iluminar. A memória, mais antiga ou mais recente ocupa um lugar especial. 
Um Haiku (a forma singular do plural Haikai) é uma condensação de um súbito momento vivido, de contemplação e revelação ao mesmo tempo.
Vive-se hoje em dia muito depressa e mal. O tempo é devorado por uma multiplicidade de apelos e chamamentos que impedem o silêncio e o sossego que se devia conservar nalgum canto da alma. A tirania da imagem, em permanente actualização/exposição, colide com o silêncio, com a contemplação, o retiro onde a criação genuína ( a iluminação) se pode verificar. 
Agora castigados, confinados à força num espaço limitado, talvez possamos apreender a beleza simples das situações descritas neste livro.
São 5 os momentos escolhidos ( e também o 5 tem uma dimensão simbólica no pensamento oriental: é a madeira, o 5º elemento que encontramos nos hexagramas do Yi King. Na alquimia ocidental referem-se apenas 4: a terra, o fogo, o ar, a água. Mas no Yi King encontraremos o poço com o seu balde de madeira ( que nos traz a água que é de vida) ou a árvore, com a raiz e o   tronco,  fortes suportes que ligam céu e terra. Há um lirismo panteísta na poesia dos cultores de Haikai, como Issa, o meu preferido, e outros (aqui remeto para a edição completa da poesia oriental chinesa, da Pléiade, com excelentes traduções para quem, como eu, não pode ler no original) ou Bashô com a célebre rã que se tornou emblemática, e em geral todos citam.
Nas cinco partes em que divide o livro, João de Mancelos faz, um pouco à maneira de Proust, uma recuperação dos momentos da sua vida vivida, da adolescência ( em que quase cada poema respeita uma das normas desta prática,  titulando os meses em que situa os versos ) até ao momento em que escreve, já distanciado das paixões iniciais: as Memórias, "pássaros invisíveis", o Silêncio (forçoso seria neste contexto, aludir ao silêncio), Boca a Boca ( o desejo, a sua finitude), e finalmente a meditação da escrita, nos Poemas Do Lume.
Há que ler tudo, para que o livro no seu todo nos envolva. Abriu com um beijo inacabado, como são todos os primeiros beijos dos amantes de que também Rilke falava: na juventude só amores impossíveis.
Mas termino com o último trigrama, com uma vida já amadurecida, e sob outras influências (Celan, talvez?) e o impulso que leva, no poema, ao desejo mais nú, mais despojado, que só o silêncio permite:
desce os degraus
desce os degraus,
poema a poema,
até ao silêncio.
(2020)




No comments: