Sunday, July 28, 2019

Tchiangui Cruz, guardados numa gaveta imaginária...

É um livro de poemas. Como sempre, nestas edições da Guerra e Paz, uma edição elegante, cuidada, que dá gosto segurar na mão, antes de abrir. Durante a Feira do Livro, alguém entrevistado dizia, sim, compro muitas vezes um livro só pela capa. Não é proibido, e sempre compra o livro. Espera-se que depois, quem sabe, o leia. Eu compro de forma diferente (embora goste de bonitas capas, faz parte de uma edição bonita): Vejo o título, que já é em si mesmo um indício que pode ser sedutor, leio um pouco na contracapa (quando não conheço o autor), abro as primeiras páginas, é tão importante o modo como se começa... e ou compro ou ponho de parte. Neste caso, dos poemas de Tchiangui Cruz, guardados numa gaveta imaginária, edição de 2019, foi o nome da autora que me atraiu: um nome musical, quando o dizemos em voz alta, que quase nos dança na boca. Não conhecia o nome, não conhecia a autora, li um pouco nas badanas o que se dizia sobre ela, e comecei então a ler os poemas guardados numa gaveta que ela decidiu abrir, quando escolheu antes ser poeta do que pintora. Sublinha bem que não segue o AO! Simpatizei logo com esta manifestação de bom sentido da língua. Formada na Faculdade de Letras de Lisboa, é actualmente Prof. Universitária em Luanda. Leu com certeza Fernando Pessoa, mas a mim agradou-me especialmente que se tenha inspirado, para a epígrafe, em Clarice Lispector, que eu descobri em Coimbra, aos dezasseis anos, ao ler Perto do Coração Selvagem, uma prosa tremenda, arrebatadora e cujo ritmo faria de mim, poeta incipiente, alguém que sempre deu muita atenção ao ritmo, ao deslizar das palavras, na ideia e na boca. Mas vamos ao que interessa: o que são os poemas, (o que é a criação poética) para Tchiangui que os confessa numa gaveta, numa zona mais escura da imaginação "um não lugar em que me continuo a procurar / incessantemente" (p.12) Como em Coral, de Sophia, que celebramos este ano: "Ia e vinha / e a cada coisa perguntava / que nome tinha". Sublinhemos, na origem, a procura, esse impulso que leva à busca do nome oculto, o que define o eu, e o seu sentido no ser e no tempo. O sentido transformará a existência, como diria Heidegger, que por sua vez gostou sempre de citar Hoelderlin, o Hino intitulado Mnemosyne (Memória), nos seus ensaios sobre O Que é Pensar"Somos um sinal, sem sentido (...) e quase perdemos a língua na distância". Depois o poeta alude ainda ao tempo, e à demora, mas no fim ao que se alcança, A VerdadeEsta é a mesma verdade que na vida, como na palavra poética, a procura e a demora nos permitem alcançar. Retira-se da zona obscura da memória recôndita o dizer que ela continha, e ali estava, a aguardar. Falamos connosco, com o nosso eu mais profundo, mais arcaico, quando buscamos essa palavra mágica, definidora do nome. Para Clarice um livro em cada um, para Sophia um nome. E para Tchiangui, no primeiro poema, um não-lugar que será ocupado pelo que retém na memória de que fala no segundo poema: "Recorro à memória e retenho a imagem do dia..." (p.13). Evoca a imagem do pai, de quando chegava a casa, e ela corria pelas escadas abaixo. E aqui temos a sua primeira marca de estilo: com naturalidade, um episódio que guardou na memória, a chegada do pai a casa, a descida pelas escadas abaixo para ir ter com ele, um reencontro, anunciado pelo toque da campainha. Motivos de um quotidiano que surgem e a memória guardada recupera. Com naturalidade. Só a palavra reencontro levanta uma suspeição: foi longa a espera? Terá sido dolorosa? Mas sobre isso não se demora, não há sombra de piedosa pseudo-poética emoção. A sua expressão é de agora, tem a distância devida, a reflexão necessária, na busca em aberto do sentido. Hoelderlin não faria melhor. Tchiangui em muitos dos poemas envolve o leitor na suavidade cálida da sua Angola nativa, as vozes, os cheiros, os sabores, e na distância o mar que também nos une, mais do que separa. Memórias e caminhos, assim se vai definindo a sua criação, que lhe permite afirmar que é dupla a sua personalidade, em Falsa Tímida (p. 34). Dialoga com Clarice, que lançou o dilema inicial, e conclui: " Clarice dizia: sou tímida e ousada ao mesmo tempo". Ideia que desenvolve a seguir em Mulher (p. 35): "Toda a mulher tem pelo menos duas faces ... / se ontem caiu, amanhã ela se levanta/ e, sem dar conta, se ergue/ por toda a mulher. / suas faces se duplicam em espelhos /esféricos, uma interna e outra externa, / um jeito de menina, uma vontade de mulher... (p.36). Dentro de cada mulher um pouco de todas as outras, força da natureza primordial, arquétipo do eterno feminino que é todo e uno, mesmo quando esfericamente dividido, na descrição do andrógino de Platão. 

No conjunto intitulado Transatlântico passamos por Lisboa, Luanda, Cabo, Bahía, esta é a epopeia de Tchiangui, na poética mistura de "raças, culturas, crenças" (p.42). Logo me ocorrem dois grandes da mesma estirpe, Jorge Amado, Vinícius e a geração de Chico, que o acompanhou. Na mesma linha de pensamento em que mistura é liberdade surge adiante o lamento por um marido preso político, a  realidade que o tempo parecia ter ultrapassado. 

O livro fecha com Três Continhos Tristes, uma minibiografia que a autora nos apresenta como se fosse um último mimo que nos concede, a nós leitores menos preparados para entender o que ela entende e ainda sente tão bem, porque é mesmo a sua origem, a sua vida vivida até este momento em que a evoca:
"Meus avós eram filhos de pai transmontano e de mãe preta de panos. Falavam um português perfeito, mas se o assunto fosse, digamos assim, íntimo, linguajavam em quimbundo para eu e os meus irmãos não entendermos "(p.54).
Haverá imagem mais linda para evocar a mãe antiga, dos avós, do que esta de "mãe preta de panos"? Panos da côr da vida, panos que esses sim conheço, porque um amigo nosso os trouxe de Cabo Verde, um  dia.
Mãe preta de panos: tanta ternura, tanto amor, tanto respeito também. E como é importante um começo tão simples e tão directo. Reparo muito nos começos dos livros, nas frases com que abrem. Como meditei longamente na frase de Proust: Longtemps je me suis couché de bonne heure. De como teria de a traduzir, para não deixar de ser fiel. Acabei por escolher "Durante muito tempo fui cedo para a cama". Talvez pela imagem, talvez pelo ritmo, em português. Como agora, nesta apresentação da avó : "mãe preta de panos". Mãe antiga, mulher trazida e amada, nesta frase tão simples uma imagem tão rica e tão cheia de sentido, condensado em tão poucas palavras. Como em Proust. O meu leitor aqui já terá percebido que dou atenção ao impulso da escrita, que cria o seu próprio e original modelo, e que para mim o escritor do "pouco" é maior do que o escritor redundante do "muito". Frase límpida, de pensamento límpido, que a mim me pode intrigar e deixar a reflectir um pouco mais, para meu benefício. Ler para mim é pensar, e esse movimento é o da criação, da evocação, do afundamento na memória. Como em Tchiangui, neste livro.
O livro tem um excelente pósfacio de José Luís Mendonça, que completará tudo o que eu não saberia dizer.
Mas de Tchiangui Cruz seguirei as obras, sejam de poesia ou de prosa, neste tom muito seu, natural, nascido do que ela é, uma mulher pós-moderna, que fala sem reticências do presente e do passado, enquanto espera o futuro. Sabendo de onde vem, saberá para onde ir, pois até nos sonhos alguém lhe faz companhia.

3 comments:

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