Thursday, July 04, 2019

Isabel Allegro de Magalhães, Transversal Mente, Literatura e Música

I
Nesta edição da Caleidoscópio, de Maio 2019, apresenta Isabel Allegro uma recolha de ensaios transversais à palavra e à música, que a palavra também já contém, quando se forma. A palavra é aqui literatura, palavra trabalhada, como a música é composição, onda sonora trabalhada também, e ambas na emoção do Sopro, do Verbo que se manifesta de repente.
Iremos falar de arte, não há arte sem emoção, e esta a que me refiro, com a ajuda de Isabel é, como ela a define, especialmente sedutora, a desenvolver-
-se no tempo: um tempo especial, que segundo alguns se espacializa na palavra escrita, na pauta elaborada (que se fixarão para memória futura) mas que não existiria se não tivesse nascido primeiro de um impulso semi ou totalmente inconsciente, vindo de dentro, do Ser profundo, em que ser e tempo se fundem, antes de tudo o mais.
A autora, cuja erudição é notória, e cuidadosa nos fundamentos que escolhe, não ignora que "a gramática de um texto verbal nunca é totalmente sobreponível à de outro texto musical" (p. 11). Mas vai lidar com um mundo que é o das várias possibilidades, e nesse exercício ampliar o nosso conhecimento, abrindo-o pelo caminho à nossa sensibilidade.
E explica:
"...em comum, literatura e música têm a dimensão da temporalidade : o tempo, o ritmo, eventualmente ausente ou apenas simbolicamente presente nas artes plásticas. E, mais que outras artes, palavra e música fazem apelo ao ouvido, com sons articulados ou puros, requerendo, como o cinema, e mais que a pintura ou a fotografia, sempre diante de quem as olha, um particular exercício da memória. Além disso, seguramente a música precisa de alguém para tocá-la, depende desse alguém, portanto. E a sua duração é passageira e a experiência da escuta fugaz - apesar de permanecerem na memória e na imaginação para além desse momento de presença: o que será, em termos de Gérard Genette, o aspecto de 'transcendência' de qualquer obra de arte?" (p.12)
Genette discute o problema em l'Oeuvre d'art. Immanence et transcendence, 1994. Sem ir buscar argumentos ao pensador francês, Isabel segue o seu caminho, que nos deve conduzir não ao contraste, mas às afinidades possíveis, ao "novo lugar" que irá amplificar os sentidos já prefigurados em novas articulações, ao gosto dos comparatistas. Aqui comparar não é buscar o igual, mas o diferente, o que inspira o criador, poeta ou músico,  levando a sua arte para uma esfera outra, do domínio do intercâmbio simbólico profundo.
Isabel evoca Jorge Luís Borges: " Cada acto ( y cada pensamiento es el eco de otros que en el pasado lo antecedieron, sin principio visible (...) no hay cosa que no esté como perdida entre infatigables espejos" (p.13. 
E segue alertando para a variedade das modalidades de relação entre um texto musical e outro verbal. São infinitas, do Lied à ópera mais complexa e desafiante, como são múltiplos os escritores em que as referências e reverberações ecoam e permanecem, no seu jogo de espelhos. Partem de sons e sonoridades, mais líricas ou mais agressivas, que os conduzem à expressão do "Descrito ao Vivido", como em Gastão Cruz, num dos poemas que integra a escolha feita.
Falou-se de tempo, e de tempos. Não por acaso, escolhe Heidegger para início de um dos seus seminários sobre o que é Pensar, um célebre verso de um hino de Hoelderlin, Mnemosyne:
Ein Zeichen sind wir, deutungslos,
Schmerzlos sind wir und haben fast
Die Sprache in der Fremde verloren.
(Somos um sinal, sem sentido,
Não sentimos dôr e quase
Perdemos a língua na distância).
e ainda:
Lang ist 
Die Zeit, es ereignet sich aber
Das Wahre.
(É longo
O tempo, mas alcança-se ainda assim
A verdade).
O sentido de uma língua primordial que se perdeu, perdendo-se com ela a Verdade que exprimia. E no exercício do Pensamento a que se é levado por um impulso interior que nos põe a caminho, é aí, nesse tempo que é longo, que o caminho inteiro de poesia e música finalmente se encontram e se fundem. 
A autora propõe um conjunto de leituras que vão de Jorge de Sena a Gastão Cruz, Maria Velho da Costa, Graça Moura, Nuno Júdice e outros, onze ensaios de relação em que os tempos da música, seus ritmos, seus silêncios, se organizam em palavra poética, fundadora, raiz de uma língua perdida e reencontrada em multiplicidade de sentidos, segundo cada poeta e cada poema.
Este não é o lugar de os resumir, apenas de apontar a existência de uma leitura que seduz porque amplia espaços de um imaginário raramente abordado entre nós, ao contrário do que acontece na Alemanha, por exemplo e que recorda como na Arte, musical ou poética, é pela contaminação de imagens e símbolos que se organizam, que se recupera a Verdade a que o poema de Hoelderlin deseja conduzir-nos.
Poderia dar aqui um belo exemplo, o de Helder Macedo, a cuja Viagem de Inverno me referi num dos meus posts antigos deste blog. 
É a Winterreise de Schubert que o leva pelos caminhos da sua imaginação, como já no século XVIII Novalis tinha encontrado nos temas musicais da melancolia do Inverno a matéria que alimentava, nos Hinos e nos Fragmentos a sua própria melancolia, a nigredo da alma.
A relação da escrita poética ou narrativa com a música que a inspira é talvez mais fácil de identificar do que o contrário: como parte de um texto a música que enche a cabeça de sons, num compositor? A Ode à Alegria  de um Schiller para uma Sinfonia, a última, de um Beethoven?  Os grandes mitos germânicos para a Tetralogia de Wagner, sendo ele próprio autor, enquanto libretista, e compositor?
Isabel escolheu para epígrafe dos seus textos, uma frase de Leibniz: 
"A música é um exercício de alma que não sabe que está a musicar" (p.7).
Como se fosse de um inconsciente colectivo ( e não reflexivo, individual) que de súbito todos os sons brotassem, organizando-se na perfeição de uma outra esfera, a da matemática da linguagem da Obra.
Mas estaria a desviar-me reflectindo sobre a música das esferas como Pitágoras a entendeu e deixou em herança, para uns e para outros. 

II
Num outro volume, editado também na mesma casa e neste mesmo ano, escolhe Isabel Allegro de Magalhães abordar os temas da Literatura e Identidades, num outro conjunto variado de ensaios em que sublinha questões de alteridade, de relação com o outro, aceite ou rejeitado (como na eterna questão dos Judeus na narrativa de Mário Cláudio, que escolhe para análise) contraste de nações e culturas, hoje de tanta actualidade, e finalmente um pequeno conjunto de notas de Homenagem a Maria de Lourdes Belchior, a Óscar Lopes, a Luciana Stegagno Picchio e Heitor Gomes Teixeira. Sábios, todos eles, com quem a nossa geração muito aprendeu, e a quem as homenagens, muito justas, surgiram, neste país igual a si mesmo, já demasiado tarde. Isabel corrige a distracção. Conheci bem todos os citados, e em especial, por isso refiro o facto, em Coimbra, o Heitor, já com a paixão do teatro, e fazendo sob a orientação de Paulo Quintela, no TEUC, um magnífico e portentoso Diabo vicentino.
A marca deste livro de Isabel é a de uma certa saudade: do que se foi, quando todos tínhamos a mesma ilusão de mudar e fazer crescer o país dos cravos, e do que se verifica agora, em que várias crises (evitáveis? anunciadas?) nos fazem temer o futuro, já não nosso, mas de filhos,  netos e amigos cujo percurso acompanhamos.
Dir-se -á : faz sentido um livro de saudade? Faz, neste caso, em que a saudade é algo mais do que lamento, é reflexão para memória, para a posteridade.
Um Professor nunca deixará de o ser, e a vida de Isabel Allegro de Magalhães, para além de ser activista de vários domínios, também o da fé que se actualize, tem essa marca de nobreza. Ensinou, e neste momento reflecte e dá a reflectir o que isso numa vida representa. É simples, se se entregou de alma e coração, como nela se vê, representa o melhor de nós mesmos, define o que fomos e o que somos, através do que fizemos e fazemos.
Saudemos pois agora estes livros que a trazem à nossa presença, para nos interpelar, antes que o país nos adormeça de vez.
  


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