Wednesday, January 16, 2019

Paulo da Costa Domingos, NARRATIVA


Da carta de Vitor Silva Tavares ao autor:
"Caro Paulo, 
Disseste-me que o teu livro não é aquilo a que se pode chamar 'um livro de memórias'. Em rigor  em rigor, acho que é e não é. Não é, por certo, um livro 'jornalístico'(o autor vai ali ao calendário da sua vida e dá notícia) mas é sim senhor, quanto a mim, um mergulho visceral - entenda-se, visceralmente poético, logo interventivo-naquele magma de impressões redivivas, experiências e encontros determinantes, obsessões e tramas que musculam mais que uma vocação - aliás afirmada - um sentido de e para a vida (plena). Encaixa o que tem de encaixar, rejeita o que afinal não passou de acidentes de percurso, necessários embora".
A Narrativa, de Paulo da Costa Domingos, publicada em 2016 com a chancela das edições ALAMBIQUE, chega-me agora às mãos e fico em estado de choque.
Desde que li, outrora, Lautréamont, que nada me surpreendeu tanto, pelo ímpeto, pela intensidade do que Vítor Silva Tavares chamou de vida redivivida,  frenética na evocação recuperada que interpela mas não atropela, prosa de mão corrida a acumular o que foram autores, o que foram leituras, o que foram no tempo do seu crescimento e afirmação intelectual os marcos mais importantes. Cortados pela vida? Claro, só quem não vive e convive com a poesia ignora que a vida está sempre ali, a vida nos corta ao meio, os poetas são os sobreviventes de inúmeras fugas e percursos ínvios, mas digeridos e aceites como aquilo que são e fazem de nós o que somos.
Li, pois, de um fôlego, e espantei-me: pela originalidade de uma narrativa que expõe, e se impõe. Regressei ao tempo que era de Vítor, que era de Paulo, e que foi o meu. Um tempo que, se por um lado se dava ao ambiente usual deste país, dele se afastava, em segredo, profundamente.
Até ao citar Asger Jorn, o pintor da Internacional Situacionista, de quem falo em AMORES SECRETOS, fundador do movimento Cobra, o figurativo expressionista, como ele se auto-intitulava, tropeço, pela mão de Paulo Costa Domingos, no meu próprio passado. E contudo não nos conhecíamos ainda, ele já no oculto meio editorial dos poetas preferidos, eu longe, em França, a minha pátria primeira, na cultura que me formou.
De longe, como descubro agora, íamos coincidindo.
A Narrativa tem, como no Ulisses de Joyce, um vocabulário muito próprio, de marca surrealista no seu deslizar só aparentemente automático, onírico, mas ao mesmo tempo muito trabalhado, carregando leituras e culturas oriundas de outras esferas, ainda não divulgadas em Portugal, o país dos esconsos caminhos, dos muitos sonhos perdidos.
Viajamos com Paulo por outros países, outras linguagens, vamos com ele à descoberta do que ele decide só agora contar. Talvez porque a morte de AL BERTO nos tenha ferido a todos e ao evocar a sua presença feita de tanta ausência (quem o lê, hoje em dia? ) sintamos o desejo de falar, de dizer, de afirmar que há um avesso na vida, e dele, sem saber, todos nos fomos alimentando, enquanto à vista parecia que se morria à fome. Alguns morriam mesmo. Outros resistiam.
Esta Narrativa é um gesto de resistência.
Nascido em 1953, Paulo, mais novo do que eu tantos anos, pela sua mão me faz agora recuperar algumas das minhas memórias antigas.
Espanta-me, como Henri Michaux me espantava, em Paris, tinha eu 15 anos. Ou mais tarde Jean Genet, com Notre Dame des Fleurs resguardado por Prévert. Ou Violette Leduc - a prosa do maior sofrimento, na maior entrega. 
Narrativa é uma obra que se impõe ler, pelo menos aos que ainda estão vivos, da minha geração. Lá dentro navegamos, chegamos ao bom porto que nos ajudou a viver, dentro e fora de nós.
E quanto aos mais novos - esses, ao ler, aprenderão tudo o que lhes falta:
a dimensão da vida, da cultura, da expressão numa linguagem directa, limpa de inúteis excrecências, que vai à raiz das coisas, das situações evocadas, ao núcleo duro onde se forma a palavra poética. Poesia não é lamechice nem sentimento pingão,  a palavra poética é dura, é resiliência, é discurso veloz despido de fingimentos. Tudo é verdade, na palavra poética, mesmo a pura invenção.
Paulo da Costa Domingos não desiste.
Conhece o livro de há muito: no chumbo das antigas tipografias, na arte da concepção e do design inspirado, no bom papel com boa letra, legível até para os olhos mais cansados. 
Que mais posso dizer?
Que vou reler a sua Narrativa, uma e outra vez, que ele dividiu em anos, estando agora em 1996 e segs. E anunciando uma continuação.
Não sabe, pois nunca falei disso, que eu também escolhi como forma de resistência o continuar a escrever. E a ler, por isso aguardo a sua continuação:
"Ah, sem o magnetismo da Arte todo o real ficaria mudo, e somente passado...A clareza procurou-me e quis habitar comigo. O propósito alçava--se à palavra. Evoluí...Aqui cheguei; sou. E vós, que mais novos sois do que eu, constituís o meu passado. Espero, não demoreis demasiado a chegar até mim". (p.113). 
Eu cheguei, no termo da minha idade.
Outros, os jovens, deverão fazer o mesmo.








1 comment:

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