Sunday, September 23, 2018

Monstruosidades, de José Viale Moutinho

O Titulo tem de ser lido na indicação completa (mais discreta)  de que os contos serão todos do tempo do infortúnio.
Reencontro aqui, com o José Viale Moutinho e as ilustrações /Separadores, ferozes, de pinceladas de cunho expressionista, de Alberto Péssimo ( para que não fiquem dúvidas) de  uma prosa directa, sem ambiguidades mas trazendo a sua parte de sombra, de memória, evocação cruel das traições e hipocrisias de um mundo que vem de longe, mas afinal continua a existir, sob outras formas.
Portugal não mudará nunca? São 139 contos, que não poderei ler aqui, o blog tem os seus limites. Mas fica a chamada de atenção  para uma prosa curta, exímia na descrição de ambientes que não são citadinos, e nascem do ruralismo primitivo que ainda é o nosso, feito de muita sombra e pouca luz, muita violência e pouco amor, ainda que por todo o lado se veja, se oiça, se chore, a necessidade de um amor que nunca existiu, e muito menos no tempo, que foi longo, do infortúnio.
O infortúnio, nesta prosa de fronteira, entre fuga e esperança traída, era simplesmente o de estar vivo, e desejar mais um tempo concedido...
Comecei pelo primeiro conto,
A ALDEIA DAS POBRES COBRAS.
Aldeia em que havia uma ribeira "triste" onde apareciam cobras, que as crianças apedrejavam, para neutralizar os seu perigo. Também eu sou desse tempo, em que se dizia, no campo, que as cobras vinham de noite, ou comer as crianças, ou chupar o leite das mães que tinham dado à luz. Um clima carregado de feitiços e armadilhas, mas que neste conto serve bem a causa de um Patriarca, que embora vigiado tinha conseguido por trás da sua taberna manter fechada a todos uma arrecadação misteriosa: ouviam-se estranhos ruídos, mas ali ninguém entrava. Dizia-se que reparava uma lambretta,  ou que queria construir uma máquina para fazer frio no verão e calor no inverno, espécie de frigorífico-lareira...tudo imaginação. Aos guardas da patrulha que por ali o iam visitando explicava: é uma obstinação no encontrar de uma embocadura...
A natureza está sempre presente na narrativa que o autor desenvolve, como quem anuncia que morte e vida ali se encontrariam sempre, mas esperando mais pela vida do que pelo seu contrário.
Não quero estragar o prazer de ir descobrindo o que ali foi acontecendo, mas a evocação do possível é cruel: ou fugir, ou morrer, enforcando-se na oliveira onde já pais e avós se tinham enforcado.
Prosas curtas, cada qual um episódio que nos arrasta para tempos difíceis, covas comuns, resquícios de corpos ofendidos na sua humana dignidade, e o confronto com um passado afinal ainda tão próximo, de que se devia ter fugido, pois nunca devia ter acontecido.
Ler um conto por dia, na Escola, ou em casa, seria ao mesmo tempo uma lição de História, abarcando Portugal e Espanha, a vizinha difícil, mas sobretudo de um exercício de escrita exemplar, seco e imaginativo e doloroso ao mesmo tempo, para quem como nós pode ainda recordar, mas sobretudo transportando o que é lição de vida, para todos, e tem muito a ver com a absoluta necessidade de uma saída, a tal embocadura do seu conto inicial.
Chegando ao fim, impossível não falar do conto do Demónio: "Negócios com o Demónio". Porque em menos de uma página e meia, num exercício de ainda mais inesperada contenção, o autor expõe o trato que fez, a aposta tradicional da venda da alma ao demónio em troca de algum favor, neste caso ajudá-lo a fugir a uma perseguição feroz, feita de armas e cães, por todas as razões e mais algumas, políticas, crimes comuns e coisas que tais. A paisagem é de novo rural, fronteiriça, e desembocando num abismo. Aqui a simbologia é clara, um homem que é perseguido não vê outra salvação. Estamos perante um exercício de cultura goetheana: Deus e Mefisto, no Prólogo no Céu, apostando um contra o outro qual deles ganhará a alma de Fausto, o herói destemido, que sempre avança e procura...Goethe salvará o seu herói das garras do demónio, figura popular já no seu tempo um pouco gasta, por ser mais valorizada a Ética, a Moral, do que a crença religiosa. E de facto no final da tragédia Fausto redime-se com um exercício de entrega generosa ao trabalho da terra, à ideia de que a dignidade humana do serviço ao bem comum e da partilha a tudo se sobrepõem. A sua alma será levada aos céus, onde contemplará a Mãe sublime. Até aqui tudo respeita o conceito de que existe uma alma, em que se crê, homem, deus e demónio e como tal pode ser negociada.
Mas eis que o nosso autor de súbito esvazia o conceito, e desse modo nos surpreende com o negócio que faz...Sim, ele aceita a ajuda que lhe vai sendo dada pelo demónio. Está já perto do abismo onde podem os guardas e os cães agarrá-lo brutalmente...e eis que exclama: o que ele (demónio) me pede é a minha alma? e gargalha com a ideia, peregrina, pois não acredita na alma..." Apenas queria algo em que eu não acreditava que existisse: A minha alma. Ora, estão a perceber: a minha alma, Ah Ah Ah. Pois que se quedasse com ela..." (p.139). Os perseguidores não serão bem sucedidos, o narrador vê o Demónio sentado numa pedra, mão erguida a fazer parar a turbamulta, e fica a pensar no valor que o Senhor do Enxofre atribuía à sua alma.
"-E o que é a alma? Interrogava-me eu, olhando de soslaio o Demónio" (p.140).
Pode haver forma mais extraordinária de abrir de novo a discussão, que se julga ultrapassada, pura crendice popular, do que é a alma? Existe? E se existe o que é ? E se não existe porque tem tanta força ainda no nosso imaginário, a ponto de puxar mais uma vez a discussão?
Nas últimas quatro linhas do seu conto, José Viale Moutinho, com a sua arte ímpar, lança o grande desafio do Ser que é afinal uma questão de ter ou não ter a consciência (nunca segura) de que se pode ter alma e na alma não acreditar...



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