Sunday, September 30, 2018

Ainda João Paulo Esteves da Silva, Casca de Noz


Casca de noz

Não acabei o que estive a comentar deste livro, e este poema, quase a fechar, dá continuação à linha de pensamento que eu seguia, guiada pelo autor.
Que ele, em aparente relato quotidiano, como em poema anterior, quando "vai comendo um bife para se acalmar" nos transpõe para uma outra dimensão, do pensar, do criar, do escrever (como Pamuk refere no romance da rapariga dos cabelos vermelhos). Eis o poema:
antes do começo, relembro
os passos apagados
os mundos desfeitos

antes de qualquer gesto
vejo um campo de narcisos
num areal sem margens

fico onde a maré revira
no mais tácito dos lugares 
entre o seco e o molhado

entre o liso e o encrespado
tenho ali o ouvido e a boca
de lá falo, e agradeço

O espaço intermédio em que diz permanecer é o espaço mesmo de onde pode, depois de tanta dissolução verificada reconstruir um mundo, o seu, que nos oferece e que nós devemos agradecer, como ele faz, meditando. Ele agradece, como já fizera em poema anterior. O seu agradecimento está neste Verbo expresso, na vida aceite, pequena casca de noz, vogando como navio.
Este é um poema que podemos, ou devemos, ler para o ampliar, com o que está em TÂMARAS, de 2016:
Fui ao jardim das nogueiras, 
dei uns passos, poucos, além do portão,
enchi os bolsos com as nozes que havia,
mordi, numa euforia suspeita
(um ar alucinado, disseram),
alegria enorme, sem razão,
uma felicidade prematura.
Adeus, não posso ficar, pertenço
ao país de areia e muros onde o mar rebenta
onde as línguas todas do mundo
se misturam, balbucio suavíssimo.
Voei sobre o mediterrâneo
atravessei a Espanha numa correria
cheguei a Lisboa ao romper da manhã
já não sabia se tinha sonhado
aquela nozes todas nos meus bolsos.

De um velho país mítico, antigo, trouxe as nozes que ainda guarda nos bolsos, o espaço da memória. E num país actual, numa esfera não menos mítica, espécie de terra do meio, recupera da noz primordial, de casca aberta (como as romãs de outros poemas) o seu navio da alma, o que lhe permite o canto, a voz, a fala.




No comments: