Wednesday, December 14, 2016

Eugénio de Andrade por João de Mancelos

I
Eugénio de Andrade é um dos grandes poetas que podemos ler e reler, descobrindo de cada vez mais alguma emoção, mais uma imagem carregada de reflexos que nos levam para outras paragens, outras leituras, outros imaginários sedutores.
Estou a ler o ensaio de João de Mancelos, O MARULHAR DE VERSOS ANTIGOS (ed. Colibri, 2009) precisamente sobre a intertextualidade em Eugénio de Andrade. Obra de investigação em que o autor nos vai conduzindo para os vários caminho que Eugénio de Andrade também foi percorrendo (e tal como acontecia com Fernando Pessoa) eram fonte e matriz de inspiração.
Deste modo descobrimos uma espécie de geografia da alma: Walt Whitman, (oh Álvaro de Campos! ), John Keats, Wallace Stevens, Yeats, entre outros; o estudo de Mancelos é orientado sobretudo para os estudiosos da palavra literária, "em contexto", como acontece, não por acaso, com a escolha de "erva" na transição de Whitman para os poemas de Eugénio, ou da imagem antiga (celta) do "corpo verde", ou do "deus verde", do poema GREEN GOD. Um deus que é Pan, ou Orfeu, um deus da celebração do corpo , da natureza eterna, que surge na escolha de "fonte" ou "flauta" como palavras de referência, preferidas, na poesia de Eugénio.
Mas não vou fazer aqui um assomo de recensão crítica, tomo apenas nota do interesse deste conjunto de ensaios sobre um grande poeta, remetendo o leitor para a edição da Obra Completa de Eugénio de Andrade, de 2005.
Passam anos, e a obra aí está, para ser lida e estudada...
Green God
Trazia consigo a graça
das fontes quando anoitece.
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens quando desce.

Andava como quem passa
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos,
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar.

Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.

E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia
duma flauta que tocava.
(Andrade, 2005, 23)

Aqui temos Orfeu, deus verde, com sua dança, renascendo a cada passo, na melodia perfeita.
Mancelos salienta este aspecto arquetípico em muita da poesia de Eugénio de Andrade. Mas não é toda a obra poética, por mais simples, despida, ou cuidadosamente elaborada, produto de uma vivência de algum arquétipo que, súbito, se apossa da nossa alma?
Num seu livro de poesia, O TEU NOME INCENDIADO DE AZUL (ed. Colibri), João de Mancelos evoca a memória do pai, citando Khalil Gibran (1883-1931) na epígrafe:
"A simplicidade é o último degrau da sabedoria".
 O seu verso é despido, caminha para o silêncio, que dirá mais do que quaisquer palavras, no caminho que percorre.
Gosto muito de relembrar Paul Celan, sobretudo aos poetas: "menos é mais".
A sua poesia é quase sempre discursiva, se assim a posso chamar, atravessada por alguma imagem mais forte que, tal como acontece nos Haikai, nos prende então deixando-nos a meditar, como em "a dispersa esperança":

vem, adormece junto a mim, vela este sono manso,
e escuta a dispersa esperança sobrevoando meu peito
como um bando de gaivotas já sem rumo.
(p.13)

Ou ainda em "uma tenda neste deserto":

façamos uma tenda neste deserto de incerteza:
as estacas serão meus ossos quebrados,
a cobertura, a pele polida pela noite do amor.
(p.15)

"génese"
de escuridão em escuridão,
procuro o sobressalto luminoso
de um verso.
(p.34)

Este gosto por uma forma quase linear, sintética, torna a leitura do livro especialmente agradável: demoramos aqui e ali, ora entre poemas mais longos, ora simplesmente, sabiamente,  entre a condensação de versos.
Termino com o "epitáfio para um poeta":

semeaste estrelas e ceifaste a noite,
enganaste a morte e beijaste a eternidade,
uma sílaba azul de cada vez.
(p.65)

II

Já aqui tenho dito, a propósito de outros poetas que chamo da nova geração - nascidos em fins dos anos sessenta/setenta - escrevendo já com a cultura e os percursos pessoais que a Revolução de Abril lhes permitiu, e a circulação pela Europa ainda mais, que é esta nova geração que inova e renova o discurso poético que parecia fixado em Pessoa, ou liberto, mas não assimilado, por Herberto Helder. Sem que o prazer de ler outros, como o inspirado Eugénio de Andrade, lhes fosse alheio.
É o caso do percurso de João de Mancelos, cujo c.v. permite ver como se formou, como continuou, o que foi lendo e divulgando, nas matérias a que se dedica nas Universidades onde permanece, da Beira Interior e de Aveiro. Vejo que  Escrita Criativa assumiu para ele uma importância grande. É bom que assim seja, e que ele próprio não abandone o prazer de escrever, que estará a ensinar a outros.
Vem isto a propósito de outros seus livros, sempre em edição da Colibri:
UMA CANÇÃO NO VENTO (a poesia de Eugénio de Andrade, ensaio); e de O PÓ DA SOMBRA, poemas.
Anuncia o "como" da sua escrita : "poema a poema, passo a alma a ferro", mas não ilude que parte de um olhar atento: "os pequenos incidentes dos dias" (ars poetica, p.11).
Eis uma boa lição, para o começo : quem não olha não vê, e quem não vê como poderia escrever? Este olhar não é superficial, nem distraído, é um olhar atento às convulsões da alma.
Poemas longos, atravessados por alguma nostalgia, como a que se descobre nas referências de Rilke às emoções complexas do amor, dos amantes, suas razões e suas perdas.
Rilke aconselhava, nas cartas a um poeta, que de início não se escrevessem poemas de amor. Não teriam dimensão universal...mas o modo que Mancelos tem de "passar a ferro" essas primeiras pulsões retira-lhes o sentimentalismo fácil em que poderia cair, e despe o verso de ornamentos inúteis, deixando apenas as imagens mais fortes, condutoras. No seu caso a narrativa poética, pois muitas vezes é dela que se trata, já é em si, um bom exemplo a seguir:
"navegando de mastros amputados"
somos navios distantes,
a bordo
do desejo,

as memórias,
gaivotas de passagem
pelo mapa,

e a paixão,
o vento que restou
das suas asas.

assim os amantes:
navegando de mastros amputados
pela noite.
(p.23)

Este mar, que apenas se adivinha , pois nele vão os desejos dos navios distantes, é o mar de um inconsciente onde se guardam os pequenos (ou grandes) incidentes do dias...
E é por este mar que se descobrem pessoas, cidades, reflexos de mitos fundadores, no seguimento do livro. 
Em cada poema, uma viagem.
Neste caso deste poeta, com um retorno ao dizer que se tornou vital.





2 comments:

Henrique Chaudon said...

Sempre excelentes suas postagens, amiga Yvette! Um bom Ano Novo a vc.

Yvette Centeno said...

Obrigada, amigo, e Tudo de Bom para v. e os seus!