Friday, January 06, 2017

Ler os Clássicos pela mão de Fernanda Lapa

Fernanda Lapa, fundadora e encenadora da Escola de Mulheres, no Clube Estefânia, abre o ano 2017 no seu palco habitual, mas transformado para a representação de As Fúrias (ou de como o Pai venceu a Mãe) a partir de As Euménides, de Ésquilo.
Uma encenação despojada, acção decorrendo entre o palco  ao fundo da sala (a esfera dos deuses, Apolo e Atena) e o centro da sala propriamente dito, preparado para as Fúrias ( as Erínias) com os lugares do público distribuídos à roda.
O gosto pelos clássicos surge de há anos, com As Bacantes, de Eurípides, e nunca se perdeu pela dimensão que Fernanda encontra na universalidade e actualidade dos temas.
Se em As Bacantes se opunham dois modelos civilizacionais, o da Razão, ou da Racionalidade grega na cidade ordenada, e o da memória de um culto primitivo, fundador, da natureza-mãe pela intervenção de Diónisos, agora nesta produção, o grande tema é o da justiça: podem os deuses perdoar o crime do matricídio, cometido por Orestes e deixá-lo sem castigo, fazendo dele não um exemplo (pelo castigo) mas um modelo de herói a quem o crime (ordenado por Apolo) sendo vingança pelo outro crime de Clitmenestra (que mata Agamémnon no seu banho) tem de ser perdoado?
Surge Atena, a deusa da Justiça, a quem são apresentados argumentos (uma Grécia democrática, antiga, sublinhe-se a ironia de Fernanda) a favor e contra o perdão do crime. Subtil, e ainda mais irónica é a ideia da encenadora: distribui pelo público dois cartões, um azul e outro vermelho-rosa: na altura de se fazer uma votação (viva a Democracia) as Erínias colocam no chão, diante das filas de cadeiras, dois enormes vasos de latão, as urnas para os votos,  onde cada um irá depositar o seu voto, para contagem final: o cartão azul absolve, o rosado condena. Os votos serão contados.
Quando as Erínias viram as urnas ao contrário, reparei que embora do lado da nossa fila houvesse maioria de condenações, havia, ainda assim alguns perdões azuis, para o crime de matricídio (na Grécia antiga o mais execrado de todos). O mesmo do lado oposto das filas. De qualquer modo a decisão estava tomada , não caberia ao voto democrático...Apolo e Atena absolvem Orestes do seu crime, as Erínias, estranhas figuras nascidas das entranhas do mundo subterrâneo das pulsões primitivas mais selvagens, serão finalmente domadas pelo poder de uma justiça masculina, que abastardou o Feminino Eterno, pela mão de Atena. Deusa que ao dizer que não nasceu de ventre feminino, mas da cabeça de Zeus-pai, não tem lugar, no seu posto, para qualquer emoção que a leve a condenar Orestes pelo seu matricídio. Justiça que não é cega, mas  fria (a cabeça, não o coração...).
Além de nos fazer pensar num tema que aprofunda, o espectáculo merece ainda ser louvado pela capacidade que tem a encenadora de fazer muito com pouco: o despojamento leva a que reinvente o espaço, as luzes, os figurinos e as máscaras por trás das quais o discurso é vigoroso, articulado, enquanto uns corpos se arrastam na impotência da revolta e da fúria, e outros, na arrogância vencedora, esboçam os gestos mais cautelosos e perfeitos.
Perfeitos a concepção da encenadora (com o artifício das cadeiras de rodas, libertação violenta de início, humilhação fatal no fim) e o trabalho dos actores.
Imperfeita a Justiça que governa o mundo em que vivemos...outrora como agora.
Agradeçamos o gesto final do copo de tinto oferecido, saudação a Diónisos-Baco, feita por nós - o público - com todos eles, os criadores, como quem diz: esperem, estamos aqui, vamos voltar de certeza...

















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