Friday, June 07, 2024

Sérgio Ninguém, I do insomnia

 Este é um livro de poemas de edição de autor, cujo título se eu tivesse de traduzir me faria pensar: fazedor de insónias, como o escultor na pedra vai esculpindo as suas formas, que podem ser poemas, que podem ser insónias, nascidos, os poemas, de tais pedras, como os poemas que o autor escreveu em PEDRA I e PEDRA II ?

Sérgio oculta-se, não se revela a não ser para o fundo secreto de si mesmo onde como numa caverna arquetípica ( de Platão?) esperasse a última revelação.

A insónia não é para ele doença nem sofrimento, é um estado que lhe é natural e propício à criação. Não precisa de a provocar, ela está nele como a pedra na pedreira de mármore que irá ser trabalhada, oportunamente.

Ora em textos de reflexão mais longa, ora em poemas de influência Haikai, anuncia ao que vem. Não vem entreter ninguém, nem a si mesmo nalgum transe nocturno carregado de sonhos coloridos, ou mesmo só reduzidos a cores e seus significados, que se esbatem mal acorda e o deixam com a travessia do vazio da insónia, motivo central do que o leva a escrever. 

Mas esse seu conceito de vazio tem muito que se lhe diga e devemos ponderar, antes de seguir em frente nos poemas. É o Vazio do Tao, o Todo inalcansável, que antes de se materializar na Criação pairava sobre as águas que nos descreve O Génesis. Obriga-nos o poeta, nuns versos que parecem fáceis, ou simples, a uma meditação inesperada. Foi o fazer e desfazer da Insónia que permitiu a palavra do poema, e é o Vazio do Tao que nos permite o entendimento do Todo que nos é revelado.

  Cita Blake para nos ajudar a ver que é quando o nosso cérebro está lavado de tudo que se abrem as portas da percepção e revelam o infinito. Aqui está o exercício do Vazio que permite o infinito que é o Todo.

Sérgio é um poeta de grande cultura, assimilada, e a que a Insónia alarga espaços e tempos. Difícil? Não é razão para lhe fugir, antes pelo contrário.

Nasce talvez do estado de espírito que Jung e os alquimistas que estudou chama de nigredo, o primeiro dos momentos com que se inicia o caminho da iniciação: a alma ao negro. Travessia que pode levar ao suicídio, como numa depressão não cuidada, ao abandono, ao desalento da energia do pensar e do viver. É preciso atravessar, chegar ao colorido da cauda pavonis, a cauda do pavão, de penas  brilhantes que iluminam o que parecia treva e prenúncio de morte. Está ali o poema:

I am a wreck-

a little blue here

a little yellow over there

and in green I dream.

(p.52)

Desta fase, em que se atravessa o negro, nascerá a rubedo (a obra ao vermelho) que já permite sentir que a iluminação é alcansável, e será a "obra ao branco",  (albedo) na sua fase final.

A obra tem capítulos em que Sérgio não escapa ao severo olhar sobre o mundo em que vivemos, cruel, ávido de poder, por meio de matanças e guerras e que ele inclui na selecção que faz. Dói-lhe a dôr dos outros, como lhe dói a sua.

Mas a sua alma está possuída não do presente sofrido, inevitável, mas da pulsão que o verso mais contido e só esse lhe permite: o Haiku, que vai reunindo no conjunto dos Haikai  com que nos encaminha para o fim da obra.

Foi feita a travessia, o Vazio do Tao preencheu a alma que ambicionava o Todo, enquanto se refugiava no fazer e no viver duma insónia que agora nos é oferecida, a nós os dos olhos abertos, como no Mutus Liber: occulatus abis. Partes de olhos abertos.

Obrigada Sérgio, por esta tarde oferecida...






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