Neste sumptuoso volume, de verdadeira edição de arte, se reúnem as aventuras de Dog Mendonça e Pizza boy, com um extra que os aficionados da banda desenhada irão apreciar ainda mais. Por ser inesperado, este extra, que se inspira numa lenda, que pode ser real na origem ou fictícia, o que interessa é que ocupa ainda hoje o imaginário da cultura chinesa, e remonta às aventuras de uma feroz pirata - mulher - que reinou pelos mares da China no século XV, tendo por base um conjunto de belos poemas, cujos versos, variando conforme o autor, mas todos louvando a coragem, o desaforo, a violência dos saques daquela misteriosa mulher.
A aventura começa com a vida de Lo Pan numa pequena aldeia de Cantão, junto ao rio das pérolas. É um menino cujo maior prazer é passear com a mãe na praia, brincar apanhando conchas e pedras redondas, e à tarde aprendendo velhos poemas, ou inventando outros que lhes ocorriam e nunca tinham sido ditos. Era uma vida de rotinas tranquilas, esta de Lo Pan com a sua mãe até lhe acontecer uma aventura extraordinária, que interrompe a sua infância feliz e o leva a um crescimento de verdade imprevisível.
A mãe, de nome Lu Shi, tinha um sonho nunca revelado, pois às mulheres ir o teatro ou de algum modo conviver com a música ou a dança ou o teatro eram actividades interditas. Mas ela guardava esse sonho, de um dia poder vir a ser actriz...sonho impossível de facto. Filha de mãe pobre, a mãe tinha-a vendido a um homem mais velho que tomaria conta dela, e do filho que tivessem.
Assim, Lu Shi o que fazia com o seu filho era brincar também, sonhar com os personagens das óperas conhecidas, repetindo os versos que uma vez ouvira, quando se disfarçou de rapaz e foi ver a Ópera de Pequim.
Nos mares do império Quing, o desta época em questão, navegavam os mais terríveis piratas, cujas aventuras corriam de boca em boca, com os assaltos os roubos, e a fama que adquiriam. O mais célebre era Zhen Pan, o marido de Lu Shi e pai do pequeno Lo Pan, dono de centenas de barcos.
Aos dez anos o pai leva-o na sua primeira viagem de barco, para que aprenda as artes do mar e da guerra. E certa outra viagem o pequeno assiste a algo de terrível, viu o pai decapitar um outro pirata, seu rival, pois queria ser o dono de todos os mares.
De regresso a casa o pequeno Lo Pan corre para os braços da mãe, e do seu carinho cheio de amor e conforto. Tinha sido para ele uma experiência terrível.
Também ele, como a mãe, tinha um segredo. De noite vestia as roupas de mulher que ela usava, pintava-se com a elegância que lhe conhecia, e depois cantava e dançava, enquanto o resto da casa dormia.
Mas um dia a mãe apanhou-o nessas brincadeiras, diante do espelho onde ele se imaginava como se fosse o palco de um grande teatro, e zangou-se com ele. O seu destino estava traçado, ele teria de ser um pirata, como o pai.
Contudo, o pequeno Lo Pan acabara de fazer uma descoberta : a beleza da Arte, e do Feminino (que Jung chamaria Anima, o feminino no Ser). Não conseguia entender por que razão algo que o fazia tão feliz podia ter algum mal.
A história sofre então uma reviravolta: o pai chega um dia antes do previsto, e apanha o miúdo vestido com as roupas da mãe, a cantar e a dançar em rodopio feliz. O pai perde a cabeça, e furioso zanga-se ao ponto de o expulsar de casa, renegando-o para sempre. Exclama que aquele não era o seu filho, e melhor ficaria na casa de uma célebre prostituta.
Ameaçado até pelos criados que o tinham visto crescer, sem que a mãe o possa ajudar, Lo Pan sai e estremece ao ouvir o bater com estrondo do portão da casa.
Foge pela noite fora, apavorado com medo dos bichos que a sua imaginação criava, até que chega a uma cidade, onde o veremos transformado de jovem rico em pedinte, a estender a mão para uma moeda ou algumas migalhas de comida.
Surge a dada altura diante de si uma mulher, que se debruça com voz suave para o ajudar: acorda, diz, chamo-me Mei Li e o seu olhar era cheio de compaixão. Lo Pan levantou-se e seguiu essa mulher, sem saber muito bem para onde. Ia começar uma nova etapa na sua vida, num barco enorme, de prostitutas que serviam com grande sucesso, clientes que ali vinham regularmente e de quem ele, nas suas vestes femininas, também serviria conforme pudesse.
Por muito estranho que de início lhe parecesse, acabou por se habituar e sentir feliz, entre elas todas. Já tinha perdido a esperança de alguma vez encontrar o caminho de volta a casa, e aceitou esta nova forma que o seu destino tomara.
O seu gosto pelo canto e pela música nunca diminuíra. e certa noite ouviu Mei Li a tocar e lembrou-se de cantar os versos da célebre canção que ele conhecia desde a sua infância, a da flor de Jasmim tão bela, tão bela e tão perfumada...Mei Li ficou espantada com tão grande dom assim revelado, e de novo a vida de Lo Pan iria levar uma volta. A beleza do seu canto tornara-se conhecida e vinham pessoas ouvi-lo cantar, juntando-se por ali à roda do barco.
Ele escolheu então o seu nome artístico :
MADAME CHEN - A MULHER DRAGÃO
Podia demorar-me aqui um pouco, para reflectir nesta escolha e no seu simbolismo: mulher-dragão, reunindo o feminino Yin e o masculino, Yang, a sombra e a luz, nesta história de alguém que busca sua identidade real, complementando contrários.
A aventura vai crescendo em acção e mistério, levando consigo o leitor.
A fama de Madame Chen chega aos ouvidos do Imperador, que chama Lo Pan ao seu palácio de Pequim. E ele/a ali fica com ele adoçando uma velhice que levava já o velho imperador para o fim dos seus dias.
O sucessor não ligava nada às artes e Lo Pan perdeu o seu lugar, saiu de Pequim, regressou à protecção de Mei Li. Não cabe num post um guião como o que Filipe Melo concebeu, base real para um filme que pode vir a ser extraordinário de acção e emoção. Basta agora dizer que numa das suas sessões, no meio de grande multidão reconhece um dos criados das su casa de infância, e força-o a levá - lo de volta até lá onde fica a saber que a mãe se suicidara com o desgosto da sua expulsão e o pai, por sua vez destroçado com a morte da mulher se retira para o mar, para os seus barcos, nunca mais sendo visto em terra.
A escrita de Filipe Melo, minuciosa, delicada e subtil, adensa a curiosidade e a emoção de quem lê, e seguimos, como quem segue uma aventura estranha que, sem que se diga, é na verdade uma história de iniciação, como num Bildungsroman - romance de formação ao modo de um Goethe, em Wilhelm Meister's Lehrjahre ou de um Fielding, por ex. em Tom Jones. E passo o célebre Dom Quixote...Há muito suporte cultural, também oriental, claro, de um imaginário antigo, aventuroso, mas contendo uma lição, ao modo do Taoísmo, ou da moral de Confúcio.
Apresso-me a não revelar tudo, o leitor deverá fazer também ele o seu percurso de iniciação pela leitura. Lo Pan usará a sua fortuna para comprar um barco, arranjar uma tripulação de assassinos de coração duro como o dele agora se tornara, feito pedra, e decide correr os mares e tornar-se tão conhecido pela ferocidade e riqueza dos saques como fora o seu pai. No seu barco serviam homens e mulheres desde que dispostos a todas as atrocidades.
E a aventura continua até ao encontro com o seu pai, que não aceita a rivalidade e tendo conseguido prendê-lo o decapita, de um só golpe, e lança corpo e cabeça ao mar.
A lenda reza que o dragão rei daqueles mares se toma de compaixão pelo jovem, opera o mágico milagre de reunir a cabeça ao corpo e lhe devolver a vida com uma condição....
E fico por aqui , o leitor terá de descobrir o que depois sucedeu.
Sem esquecer o que as ilustrações de Juan Cavia, no seu desenho ora mais carregado ora mais leve, acrescentam ao sabor das páginas com o prazer e o entendimento do que vamos lendo. A ilustração é uma arte especial, o criador tem de se fundir com o que ali está criado pela escrita, ampliando o sentido.
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