Friday, March 17, 2023

JOSÉ LUÍS FERREIRA, ELE AINDA NÃO SABE QUE MORREU, 2022

 É um título algo enigmático. Quem é esse que não sabe que morreu? Um velho com Alzheimer? Um avô, um pai ou um amigo? Estamos todos tão velhos, e tão à vista de quem nos olha...

O volume, de contos, breves, de leitura rápida, mas não simples, faz-me pensar que os autores que não estão debaixo do chapéu de chuva das grandes editoras têm de fazer pela vida, pois desejam ser lidos, e assim vão aparecendo ora em editoras ditas pequenas  - mas que são as que sobrevivem, contra tudo e contra todos e nelas se refugia a outra literatura, quantas vezes melhor, mais livre e arrojada - e nela se encontra um outro prazer de ler em vez dos temas recorrentes da moda...

A editora de Luís chama-se cinco livros. E é no Porto que está localizada. Curioso como no Norte o desnorte parece ser menor, a actividade resistente é maior, em comparação com Lisboa. Circula-se mais entre amigos? Ou é só um acaso?

José Luís Ferreira tem, aos 60 anos, já vários livros publicados. Este é um bom momento da vida, em que o prazer, ou a necessidade de comunicar pela palavra ainda não se perdeu. Agora, que se vive mais tempo, Jung chamaria aos 60 anos, como antes chamava aos 40-50, o meio da vida, o tempo da maturidade, do equilíbrio da Anima, do reconhecimento das pulsões do inconsciente revelados de forma indirecta em símbolos e arquétipos que podem ser recolhidos nos sonhos.  A arte da Alma (Anima) é próxima da arte da jardinagem. Mas não vou falar aqui de alquimia, são tantos os seus jardins, o espaço que o post me permite não chegaria.

Falarei então do José Luís, do seu volume de contos. Recebi, mas não acusei logo a recepção, o livro tinha sumido da minha vista. Um cavalo (da alma?) trouxe-o de volta. Há uns dias o autor interpelava-me via facebook, onde vou cada vez menos, estou a ver muito mal e as gralhas não podem ser corrigidas, um irritante, diria alguém que manda em nós todos. Diga-me só se recebeu o livro. Como quem diz, não quero que leia, mas diga se recebeu. Ora bem, recebi, e estou a ler.

Leio e escrevo devagar, tanto quando se trata de mim como quando se trata de algum outro. Não escrevo sobre o que não li...defeito meu. 

Mas estou a ler, e ocorrem-me autores como Lautréamont, os Cânticos de Maldoror, pela intensidade de uma prosa poética que se situa no limar de ambos os géneros: é um livro solto, de contos, alguns breves - o que é arte difícil e de elogiar - outros com uma ou duas páginas mais. Interessante é que não sendo poesia a linguagem está carregada de imagens, como se fosse. E esse aparentemente simples facto muda tudo no género conto que nos é apresentado. Temos de reler, para saborear uma linguagem que não se espera, nesta narrativa. José Luís surpreende, essa surpresa que prende obriga à releitura, a um novo pensamento, uma nova abordagem da sua originalidade. 

As palavras que escolheu para a contracapa, onde se descreve a relação com o que não sabe que morreu, adquirem especial peso no final, com a frase sobre os caminhos que "nunca percorreu, a utopia e o abraço". Utopia e abraço. Visão e sentimento.

Muitos do contos são poemas de amor, na verdade, ainda que em prosa intensa. E em todos uma reflexão filosofante, sobre a circunstância do ser e do amar. Amar não chega, a consciência de uma permanente finitude entre desejos não deixa que o amor se torne numa experiência única, irrepetível. É a condição humana a que nem o poeta, ou narrador mais inspirado, poderá fugir: "estranha é a eternidade, a proximidade da emoção" (p.36).

Se retomarmos a frase citada na contracapa, a utopia e o abraço, torna-se claro que estamos perante o desejo (o corpo) e a realização (a alma), seja na vida real ou na sonhada, e de todos os modos pela palavra perseguida e carregada de sentido, um pouco no seguimento de um Herberto Helder, nos seus Passos em Volta.

"Eu sei, raros são os sonhos e os lugares profundos" (p.44).  Sem dúvida, daí a dificuldade de dizer, primeiro de modo quase displicente, indefinindo os géneros literários seguidos, prosa? poesia? depois intensificando a expressão do desejo que já não se oculta, se manifesta, se afirma e se declara ostensivamente.

Sem índice que ajude, acaba o livro, mas fica aberto ao folhear de acaso do leitor. 





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