Saturday, June 04, 2022
Vítor Gameiro Pais, o marco quilométrico 171
Raro dom, o deste poeta-contista, que alterna um género literário com outro, com a mesma subtileza, e nos contos uma verve sempre inesperada.
Passo da janela que dá para o sul, poema em que o tempo corre devagar, e o sul, sobretudo de noite "partilha a imensidão" por onde vagueiam cometas, os que de noite (a noite do entardecer da alma) abrem finalmente na casa mais uma memória (a que faltava). É sabido que as casas escondem, em desarrumo, as memórias que mais tarde irão arrumando devagar, quando o tempo permite.
Daqui para o conto onde um marco quilométrico - o 171 - marca a distância segura, que permite saber onde se está e o provável tempo de chegada ao ponto onde se quer chegar,netse caso a capital ( mas de que país? ) e já se antecipa com a certeza que o Marco permite,foi um salto, num imaginário irrequieto e que mal acaba uma texto já se pôs a caminho de outro.Chegar ao Marco 171 é um alívio, uma segurança, fica-se a saber o que faltava.Daí a 171 quilómetros se chegará de certeza. Mas aonde, e em quanto tempo? O narrador esqueceu que nada no tempo do que se julga seguro é de verdade seguro. A primeira reflexão é a de tentar saber o porquê de 171; número factual, medido e controlado? ou número se sentido místico, cujo segredo ainda ninguém sabe e torna o narrador ainda mais importante nas suas cogitações. 171: na Kabala seria um 9, e recordando os Lusíadas, um número de grande fertilidade,encontro e renovação dos prazeres amorosos.O número de Vénus, em espendôr, surgindo das ondas na sua concha primordial.Nos escritos homéricos o número 9 tem valor iniciático, ritual.Deméter percorre o mundo durante nove dias à procura de Proserpina, sua filha.As nove musas, nascem de Zeus, o deus supremo. Nove são os meses da gestação, e ligar a gestação ao nascimento, à criação, ao centro gerador de toda a vida existente, na terra como no céu é o mais natural.Resumo, com o Dicionário dos Símbolos da Robert Laffont, que o 9 é o número da plenitude.Passo por cima das entradas inúmeras que percorrem o símbolo nas várias civilizações, orientais, e outras. Regresso à soma da Shekina judaica. 171. Faltaria dizer, que o 7 e o 9 são os números de peso simbólico maior: o dia do descanso, em que Deus contempla a perfeição do que foi criado, e se compraz nela, e o penúltimo,que antecede o 10, o último,e fecha o ciclo que o ouroboros, a serpente que morde a própria cauda, e fecha desse modo o Uno e o Todo que o início dos outros tinham antecipado. O Uno e o Todo.Na Bíblia o número 7 está sempre ligado à universalidade. Há setenta povos na terra...e então não admira que o 171 do narrrador tenha alguma prosápia na sua afirmação...universal mais 1 - que especial o torna, a ele, apenas marco... até que chega a cegonha, inesperadamente.
Surge o inesperado, e o inesperado torna-se o centro de tudo.
Surge de súbito uma cegonha, vinda não se sabe de onde, e decide pousar, sem pedir licença, no marco tão forte do seu saber. Afinal sabia menos do que julgava..esta é a primeira lição: nunca sabemos, nem saberemos o que julgamos.
Um marco - algo de racional e importante: não é vago, como o dentro e o fora do destino. Num poema o destino nunca pode ser partilhado. Num marco, objecto fixo, enterrado, quem tropeça nele tropeça em algo seguro. E o número,neste caso 171, e que o narrador julgava ser o último antes da chegda,afinal não o era. Humilhação: algo que também faz parte da realidade da vida...estaremos perante um "conto de aprendisagem?" Como todos os contos são?
A cegonha é descrita como "pesada, incómoda,"grandes patas compridas,a cobrir parcialmente os números do marco". Este chama a atenção para o abuso, mas ela não parecia querer entender. O marco irrita-se:
"Ó cegonha, estás cega?Não vês que estás a tapar informação de extrema importância com essas patorras?...Apercebes-te do caos que podes estar a criar na orden naturl das coisas?"
A cegonha olhou então para ele e respondeu:
" E depois ? o marco seguinte há-de ser o 170 e logo esclarece os viajantes sobre a distância certa."
Esta revelação, de que havia outro marco, e que igualmente indicava a distância certa , de que o 171 julgva ser o único possuidor, abalou-o como um tremor de terra.Ele afinal não era o único. Mas pensando melhor, teria um companheiro, e seriam dois a dar indicações preciosas: recuperou o orgulho perdido.
Mas a cegonha tinha vindo para lhe destruir todas as ilusões. Falou dos inúmeros kilómetros e marcos que sobrevoava,e contou como só os que fossem capicua lhe interessavam. E eram inúmeros, davam-lhe aquele prazer de serem iguais lidos num sentido e no oposto...Voava e contava todo os dia, até que "pernoitava" no 99.Cá está o 9,a que fiz referência, com o seu corpo redondo, fértil, materno no marco em que pernoita, e quem sabe se é a soma de 171...Repouso, como no ouroboros que se fecha num círculo de eterna repetição da vida Mas fico por aqui, haveria demasiado a dizer e o conto não pode ser desvendado na sua totalidade. Essa parte cabe ao leitor.
A moral do conto é que a ilusão de ser único não passa de ilusão, desgosto que afundou o marco de tal modo que desapareceu terra dentro, e os viajantes entre o 172 e o 170 estranham essa falta, mas seguem adiante,outros indicarão o caminho que ainda irão percorrer.
Há moral neste conto?
Sim a da humildade com que se deve viver, aprendendo que grande é o mundo e múltiplo na sua variedade, e que haverá sempre um marco que nos guie, caso algum de repente nos falte.
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
No comments:
Post a Comment