Comecei, numa nota breve, umas consideração no facebook sobre a difícil (para mim) arte do conto. Temos muitos e excelentes exemplos no oriente, no ocidente, na antiguidade, na modernidade.
A mim o que me seduz é a capacidade, o engenho, de condensar o muito de uma narrativa no pouco de uma expressão que sem perder profundidade e sentido ali nos é exposta, para dar a ler e pensar.
Definido pelos estudiosos como género literário autónomo, - entre a novela e o romance - e apesar de hoje a liberdade, mesmo libertária, que o Modernismo, o Surrealismo e o Experimentalismo tenham introduzido - a arte do conto para mim encerra algo que me falta ( e a outros como eu), o esforço de uma concisão que apesar de tudo é inspirada, que não foi procurada à força e por se desejar entrar nessa onda abominável, mas que impera entre os ignorantes: a redução de um vocabulário literário, ou mesmo coloquial, que notamos hoje em dia entre nós, cada vez mais, e não deve ser confundida com a subtil capacidade de dizer contidamente, de condensar o que podia mas não vai ser ampliado (isso seria tão mais fácil), qualidade que de resto até na prosa, na ficção aprecio igualmente. Dizer o dito e ficar por aí é forma de perfeição.
Ocorre-me isto por ter lido, do Eduardo Pitta, escritor cuja prosa aprecio desde que a descobri, pelo que tem de conhecimento justo e alargado da nossa língua, não é pela sua mão, realista, camiliana, ajustada aos seus temas sem floreados ditos de "encher" que a nossa língua, tão rica, se vai empobrecer.
É vasta a sua obra, e pouco teria a acrescentar enquanto comentário literário, ao que já foi apontado na marginália literária desta reedição da obra.
O que pretendo é aprofundar, se fôr capaz, a arte do conto, neste pequeno grande livro PERSONA.
O autor lhes chama "contos morais", mas o facto de formarem uma trilogia, aponta para uma evolução que foi concebida no sentido de haver aí algo de comum, e que ao leitor não deverá escapar. São cada um uma fase da formação ou do crescimento, físico, emocional, intelectual que se deu em diferentes espaços (o que pode ter a sua relevância: mais livres uns, menos, outros). Moçambique e África do Sul, nos anos 60, e o último, PESADELO ( título já é sinal), entre 1971 e 1973.
Aqui se revisita o passado. Mas não para fazer ou refazer memorialismo, antes muito simplesmente para o situar, o entender.
Volto (será da idade? será da experiência de vida? ) ao meu amado Hoelderlin: "somos um sinal, sem sentido (...) e quase perdemos a língua na distância". Estes são versos da segunda versão de Mnemosyne (há uma bela tradução da poesia completa, de Paulo Quintela) a grande reflexão que Heidegger aproveita para pensar o pensamento e a memória, em O que é Pensar, o conjunto dos últimos seminários que deu em Heidelberg, depois de perdoado pela adesão ao nazismo.
Parece que me afasto do tema central da arte do conto, nesta obra de Eduardo Pitta, mas não. Desejo aproximar-me do sentido de que os contos são procura e manifestação e em especial dessa secreta e misteriosa língua que quase se perde na distância. Esta é a língua de que Eduardo não se perde, simbólica, profundamente enraizada no seu inconsciente (ele é a distância, e a ele devemos estar atentos, para estar vivos). Afonso é o fio narrativo que passa de um para outro conto, mas do qual o autor não deseja mais do que isso. O autor distingue os momento de per si, cada qual com sua forma e sentido, e é do sentido e da língua na distância de que não pode perder-se, que na verdade se ocupa. Quando já no fim da obra, depois de tantos momentos e peripécias variadas, ficamos com uma espécie de grande tela de um tecido social, de que em Portugal continental pouco se saberia, ou dele pouco se falaria, e que o autor aqui nos deixa com todos os pormenores, dos mais ínfimos, incluindo até os menus das jantaradas ou das recepções mais formais, citando e isso até nos é agradável, leituras como os Cem Anos de Solidão, ou a cultura que impelia alguns outros, fora dali, a ir ver o eterno Ionesco - nada, mas nada escapava ao escrutínio do jovem Afonso, alter ego - Persona - do nosso autor. As descrições são detalhadas, o olhar é devorador, bem como certas experiências e situações de carácter sexual que em Portugal naquele tempo nunca a censura teria permitido, o 25 de Abril demoraria um pouco mais a chegar, até o linguajar da tropa, na tropa era como era, mas não surgiria sob a forma de prosa de escritor - ler entre nós Cardoso Pires já era quase milagre.
Eduardo vem de longe, é outro (boa escolha o título de Persona) escolhe os caminhos das verdades cruéis, não fica atrás dos franceses que leu, como o Marquês de Sade ou outros da escola inglesa, entre nós menos conhecidos. (O inglês aprendia-se mais tarde...). Mas porquê definir como conto algo que já o célebre Tom Jones, de Henry Fielding, no século XVIII tinha libertado de qualquer definição que fosse um empecilho? Ou Rabelais, ainda antes, ou a magnífica história de Apuleio, o Burro de Ouro? E a sua simbologia?
Precisamente porque nestas narrativas de Eduardo a precisão, a concisão, o cuidado com a língua é de tal ordem, que é nesse exercício que nos devemos prender e aprender, apesar de toda a narrativa que nos envolve também em mundos reais, de outrora e menos conhecidos.
Se no romance ou na novela predomina o enredo, no conto predomina a língua. E não vou repetir Hoelderlin.
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