Thursday, May 18, 2017

As Rosas de Rilke

 Falar de rosas...

-->

Gosto de rosas.
Sonho com tantas coisas, mas que me lembre nunca sonhei com rosas, nem escrevi nada em que alguma rosa entrasse, a não ser nas célebres gravuras alquímicas de que me ocupei outrora.

Mas leio, leio rosas, neste ou naquele autor, geralmente são poetas, como Rilke ou Pessoa, e há sempre na imagem dessas rosas que leio uma essência mais forte, que as sustenta, lhes confere uma parte desafiadora de mistério.
Por um lado tão frágil ( ou será apenas na aparência? ) e por outro tão forte, tão centrada em si mesma.
Rosas de Verão, rosas de Inverno, rosas de todo o tempo. Será a sua forma redonda figuração do Tempo, como insinua Rilke?

Eram brancas, as rosas, antes da morte de Adónis, que as tingiu com o seu sangue.
Daí o vermelho-morte, daí o vermelho-vida...
A rosa sacrificial.
As pétalas que envolvem, os espinhos que ferem e que matam.

Vejo na rua dois velhos, com os seus sacos de compras.
Vão devagar, ela à frente com dois sacos, parecem mais pesados, ele atrás, só com um e arrastando os pés.
Levam o pão que ninguém lhes daria, como ninguém ajuda com os sacos...
Está sol, e o calor é benção para aqueles ossos ressequidos...
Vão de cabeça baixa, olhos fixos no passeio, por causa de algum buraco. Cair seria terrível, não poderiam levantar-se!
Mas falava eu de rosas.
As vermelhas de Rilke, as fechadas em si mesmas, como se fecham as vidas.
Num tratado de alquimia li: a rosa dá o mel às abelhas.
As abelhas seriam, no tratado, os alquimistas afanosos em busca do mel da vida, do ouro que não fenece...
Passa a vida à nossa frente, como os velhos ali, que estou a ver como passam, e sei que não é verdade. Não há ouro disponível.
Em que momento perdemos a razão, somos e seremos condenados?

Fernando Pessoa que, diante do rio, se interrogava sobre quem era e o que era ser-se rio e correr, e estar, como ele ali estava, a ver imóvel essa corrente de consciência e de vida, lera os poemas de Rilke.
E acreditara, se calhar, que a morte daquele poeta se devera à picada de uma rosa, que lentamente o matara.
Na verdade morreu de lenta leucemia, mas lenda é lenda.
É assim que Ricardo Reis, heterónimo de Pessoa, aristocrata no distanciamento de tudo o que fosse sentimento - amor ou vida - retoma o mito de Adónis para evocar o tempo, no poema de Lídia:

As rosas amo dos jardins de Adónis,
Essas volucres amo, Lídia, rosas,
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.
A luz para elas é eterna, porque
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
o seu curso visível.
Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente
Que há noite antes e após
O pouco que duramos

Sabedoria e recusa.
Adiante, noutro poema, dirá, como bom alquimista:
 "A obra cansa, o ouro não é nosso".
Podia ser o Mefisto de Goethe, autor que também leu, (como parece, pela sua biblioteca, ter lido sempre muito, ter lido tudo).
Pessoa sofre do cansaço de um universo que não consegue ou nem mesmo pretende decifrar, enquanto Rilke, em pura contemplação, se funde com o mistério da rosa: eterna redonda, e mesmo quando se abre permanecendo fechada, na sua perfeita circularidade de camadas e camadas de pétalas perfeitas.
Renúncia, é o que vamos lendo na poesia de Pessoa/ Ricardo Reis.
Excesso e abundância, nos poemas de Rilke:
Uma só rosa, é todas
as rosas (6)
Ou ainda:
Tenho uma tal consciência
do teu ser, rosa completa,
que o meu consentimento
te confunde
com o meu coração em festa.
(XI)

Não há festa no coração de Ricardo Reis, há bruma, há nevoeiro, e o apelo a Caronte a quem deseja depressa entregar o custo da passagem: nem se interessa tanto por chegar, apenas por esquecer, e para isso lhe serve o rio da memória, o Lethes...

Que posso ver na rosa que outros não tenham visto?
A beleza já foi por demais cantada.
A Unidade? A Multiplicidade, desdobramento de pétalas e pétalas?
O Efémero que o desfolhar logo prenuncia, como a vida, que passa tão depressa?

No coração da rosa, o olho do furacão.
O ninho em que se formam estrelas.
É de estrelas, não de rosas, que devemos falar...
Do rodopio que ilude, que tudo arrasta consigo, numa torrente de negro, com nome por designar.

Dizer apenas rosa não adianta nada:
a rose is a rose is a rose
is a rose...

Mas penso em Dante, na Divina Comédia; que Rilke e Pessoa leram, e que eu deveria ler (reler) no Canto XXXII, onde no centro está a rosa, que é a Virgem, e se fundem, no brilho, o sol e as outras tantas estrelas, como pétalas, derramando sobre a Amada o seu brilho perpétuo.  

Não duvido que Rilke tenha lido Dante, e através do seu percurso mais íntimo e secreto, caminhado para a doutrina que ali se esconde, entre as referências clássicas e as bíblicas, uma nova doutrina do Amor.
VITA NOVA foi a obra tardiamente descoberta no século XIX, de tal modo grande fora o impacto da Divina Comédia.
Como sublinha o tradutor francês Louis-Paul Guigues (ed. Gallimard, 1974) é com esta obra que a "introspecção surge na poesia": estamos a falar do ano em que Dante a começa, em finais do século XIII, uma época de grande misticismo, na Europa do norte (recordo Hildegarda de Bingen) como do sul, (a mística sufi de Ibn Arabi e outros). Mas é também a época das grandes questões e questionamentos teologais e tentativas de racionalização das respostas a dar. Dante não podia viver à margem de tais questões, e também ele procurou sentir e dizer, viver e explicar.
Vita Nova não pode apenas significar vida nova, sem mais, no sentido de alguma mudança de vida que tenha acontecido ou venha a ser desejada, esperando que aconteça.
Dante não usa o termo vita , mas etate : idade. Como leremos em Joaquim de Flora e seus seguidores, a Idade do Espírito Santo como tempo novo (no Liber Figurarum).
Na Vida Nova de Dante encontramos, no capítulo XXIII, a seguinte referência:
"dama compassiva e de idade nova".
Poderemos ler jovem? jovem de idade?
Beatriz no Canto XXX do Purgatório exclama, referindo--se ao poeta:
"Eis o que ele era na sua juventude".
Como quem já anuncia as grandes mudanças que hão-de vir e só o amor consente.
Primeiro pelo sofrimento, com a morte de Beatriz:
 "uma inteligência nova que o Amor
chorando lhe concede" (soneto XXV)

Percebe-se que, com Beatriz, e seu amor por ela, uma tranformação - uma Vida Nova terá em breve lugar. Beatriz virá do céu à terra revelar o milagre.
Dante escreve os primeiros sonetos cerca de1283, usando os mesmos modelos da poesia cortês da época. Seguindo esses modelos, que não inova, pois já na poesia Provençal a nobreza do amor colocava os amados acima da nobreza de título.
Dante sabe dissertar sobre o amor, como escreve o seu tradutor francês (p.11).
Por volta de 1170, André le Chapelain, autor de DE amore era lido em Florença e apreciado pelo seu "doce estilo". Doce estilo pelo sentimentalismo comovido, abundante em lágrimas e suspiros, que levará o coração do amante a identificar-se plenamente com a amada. É este o estilo que Dante transformará em dolce stil nuovo.
Mas o ambiente em que a sua escrita decorre é o conhecido ambiente "cortês" e "espiritual" da época.

Há um entrecruzar de referências que nos conduzem por  via do amor de Beatriz, aqui e na Divina Comédia, a outro conjunto de interrogações.
Beatriz é descrita com algo de NOVO, um milagre da Santa Trindade, uma revelação.Temos, no capítulo XII, as falas do AMOR:
É um capítulo carregado de solenidade: Beatriz recusou-lhe a salvação e Dante retira-se para um quarto e tem a visão de um jovem, de vestes muito brancas, que olha para ele, o chama e lhe sorri, dizendo: " Meu filho, chegou a hora de abandonar as nossas ficções".
Quem é este jovem?
Dante julga que é o Amor, que muda muitas vezes de aparência. Mas o jovem desata a chorar e declara:
"Eu sou como o centro do círculo a que se dirigem, equidistantes, todos os pontos da circunferência, mas tu não és assim".
Dante, perturbado, quer perceber melhor.
Mas recebe, como resposta: "não peças mais do que te pode ser útil".
Estranha resposta, que deixa a interrogação do que fazer:evitar excessos? Respeitar a distância?
Seguir-se-á  uma longa reflexão, sobre o amor e a relação do que ama com o objecto do amor: terreal, celestial? Operando como, nessa viagem mística, guiado por Beatriz, tão enorme mudança?
A ponderação da Geometria, de uma possivel Quadratura do Círculo, não terá deixado o poeta indiferente, pois há uma Geometria da Alma, no espaço cósmico que culminará no Paraíso, em que a doutrina do Centro, as rosas e a Rosa Suprema no coração do centro, adquirem, por muito que não se queira, simbolismo especial. São conjecturas, quem sabe, mas têm algum sentido.
Um ponto que é o centro cuja luz irradia com tanta intensidade, - era revelação suprema. Do Templarismo da época? O símbolo do centro, do coração como era lido enquanto fonte de vida e luz suprema, era um dos símbolos dos Templários.
Nas Ordens iniciáticas, como as do Santo-Graal, fazia-se coincidir o punctum mundi com o coração de Cristo e  daí, como refere Louis-Paul Guigues (p.19) a veneração posterior do Sagrado-Coração de Jesus. Nas palavras de Cristo: "O meu Pai e Eu somos Um".

Voltando à situação de Dante, perante o Jovem de luz: ele diz-lhe que é o ponto centro do mundo, mas Dante ainda não é nada e está longe de se ter unido a ele.

Não falemos mais, a partir daqui, de amor cortês, mas sim e apenas de via mística para uma União com o Divino de que Beatriz será a mediadora.
A dado momento Dante faz a identificação de Beatriz, luz de vida, com Cristo, luz de renovação.
Beatriz já dissera que estava no coração da GRANDE ROSA, quando lhe lembra que ele andava ainda perdido nos assuntos do mundo...
O que aqui se faz é um apelo à vida contemplativa, retiro que se abre ao desejo de união mística com um Sobrenatural que os afazeres (ainda que de paixão) na vida normal não permitiriam. Fechando de novo com uma citação de Louis-Paul, Dante ascende à mutação de uma VITA NOVA para uma Vista nova, no deslumbramento da rosa, do centro, do coração do Paraíso que se lhe abre e pode finalmente contemplar.


II


Em Le Roman de la Rose encontramos asúmula das práticas místicas e simbólicas do amor cortês, na França do século XIII.
Guillaume de Lorris (c.1230) e Jean de Meung (c.1275) são os autores, descrevendo em sucessivas alegorias o percurso aventuroso de um cavaleiro que é conduzido em sonhos a um Jardim paradisíaco e aí se deixa enebriar pelo perfume dos roseirais e de uma rosa em especial. Guillaume começa, escrevendo entre 1225 e 1230, e Jean continua e termina, entre 1269 e 1278. A este último se deve a amplificação do sentido das alegorias a uma reflexão mais profunda sobre a Natureza e a Condição Humana (aperfeiçoamento constante para atingir uma Plenitude de que a Rosa vermelha será o arquétipo central).
Por ela, por não desistir de colher esse precioso botão, será o coração do herói perfurado pelas flechas que Amor, ciumento, lhe crava no coração, até que obtém da sua parte uma jura de fidelidade eterna.
Considerado a par da Divina Comédia de Dante, numa Paris que no século seguinte já é centro de doutrinas e disputas teologoais, filosóficas, científicas e literárias - chama-se a Paris rosa mundi - rosa do mundo, com tudo o que isso implica de beleza, de certeza, de paixão, o Romance da Rosa adquire um estatuto que ainda no século XVII persiste entre os estudiosos, apesar de Boileau e Descartes introduzirem um pensamento novo, no tocante à filosofia e à escrita (ce que l'on conçoit bien s'ennonce clairement, regra que colide frontalmente com o exercício prazenteiro de uma narrativa mítica e simbólica, por vezes obscura, como na meia-luz dos sonhos).
Lorris e Meung antecipam Freud e Jung, ou alguns dos românticos alemães, ao valorizar a mensagem contida nos sonhos, de que dizem que, se não é logo entendida, mais tarde se verifica quão verdadeira se torna.
Muito do simbolismo do Romance pode ser colocado a par dos mistérios antigos, como o do Burro de Ouro, que Marie-Louise von Franz tão bem nos descreveu.
 Nesta obra de Apuleio, do século II da era cristã, acompanhamos as vicissitudes de um herói, Lucius, que uma vez iniciado nos ritos de Isis será redimido da sua forma de Burro ( com que foi castigado por tentar práticas de magia). É num sonho que a rainha dos céus (Isis) lhe aparece e lhe diz que terá de comer uma coroa de rosas que no dia seguinte, num determinado cortejo ritual, lhe será oferecida. Assim acontece, e ei-lo feito sacerdote de Isis e Osiris, para sua redenção.
Temos ainda de nos lembrar que os século XIV e XV são na Europa os expoentes das Novelas de Cavalaria, e que as normas do "Serviço" à Dama são as mesmas, ou quase sempre, as que se foram buscar ao Romance da Rosa e aos seus códigos de virtude e moral.
Temos em Dante o exemplo de Beatriz dizendo ao amado que se afaste, pois não está ainda devidamente "purificado". Só mesmo diante da Rosa Centro do mundo e termo da viagem, poderão unir-se. Não um ao outro, mas ambos a ela, na Rosa que contemplam.

Recordo aqui que já existiam na França do século XII, como até em Portugal, nos cancioneiros primitivos, obras como Le Coeur Mangé, dos séc. XII e XIII, contendo narrativas de tom erótico e cortêz, em que o olhar duro e directo sobre os costumes (bons e maus) da sociedade são apresentados em textos de lendas, fantasias, mistérios e monstruosidades que projectam, como diz Claude Gaignebet no seu prefácio (ver edição em francês moderno por Danielle Régnier-Bohler, Stock+plus,1979), o imaginário sexual e amoroso do tempo.
Mas tal não impediu que outros autores se esmerassem na sublimação dos seus desejos e emoções.
Temos pois a Rosa, temos o Coração, - a Alma, na verdade, termo que ainda não utilizei, a Psique e as suas pulsões mais fundas: o desejo de ser, o desejo de ser-para-o-outro (para poder ser para si mesmo) como justificação plena e matriz da existência.
Quando li pela primeira vez o Romance da Rosa, há muitos anos, achei-o confuso e difícil de entender. Nem me lembro se cheguei ou não fim, o que me teria feito perder um dos momentos mais significativos, no tocante ao conhecimento dos processos e dos símbolos alquímicos, pelos quais eu já me interessava.
Na verdade este Romance é uma obra complexa, estruturada em vários níveis e tem de ser lida de um modo que os separe e distinga, para que se entendam em cada momento.
A lógica da narração não é a da coerência, da evidência, nos processos usados. A lógica é a do sonho, que funciona por acumulação inesperada de situações, conforme cada qual vai surgindo.Uma vez aceite este princípio, poderemos, na nossa leitura, entender melhor e desfiar os acontecimentos. Num primeiro nível temos uma espécie de iniciação(daí que o autor se demore na existência e descrição da importância do seu sonho); a revelação que o sonho iniciático permite é da descoberta de um jardim paradisíaco, onde flores, pássaros, animais vários recriam um ambiente de quase lirismo pastoril. A diferença, em relação ao que poderia ser mera descrição, como tantas, é que o autor entretece, pelo meio, um conjunto de alegorias, de vícios e virtudes, com os nomes adequados a cada uma dessas personagens que se tornam intervenientes e construtoras da trama da narrativa. Desse modo define um código de comportamento que é o do cavaleiro cortês.
E segue a aventura, e seguem as peripécias, sem que ele perca de vista o supremo objecto do seu amor e da sua Quête, a rosa perfeita vislumbrada no jardim.
Temos pois, num primeiro nível de leitura, a importância do (desregramento) da lógica do sonho, imperativa a seu modo e profética na sua consequência, imediata ou tardia.
Temos, de seguida, a apresentação, pela via alegórica das normas e procedimentos de códigos de conduta de uma aristocracia cavalheiresca.
E sempre a perseguição dessa rosa imutável e cada vez mais distante. No capítulo XIV, já da autoria de Jean de Meung, fala-se então da alquimia, como arte da transmutação.
Descreve-se a Fénix, a ave que renasce das próprias cinzas, como exemplo da perenidade das espécies, de que a NATUREZA se ocupa, na su forja da Vida; referem-se o enxofre e o mercúrio - para o trabalho dos metais (a sua transmutação); no capítulo XV transita-se para a visão do cosmos, que é, como a de Dante, o cosmos ptolomaico, mas com outra inovação trazida ao pensamento: a do livre-arbítrio, que na astrologia podia ser contrariado, contrariando a doutrina cristã.
A questão ou os vários questionamentos de doutrinas teológicas ou filosóficas abundam, fornecendo mais um último nível de leitura e reflexão.
É sempre, nestes últimos capítulos, a Natureza que expõe o seu pensamento, introduz lendas e mitos, considerações sobre os diferentes estratos sociais e suas obrigações (como no capítulo XVII) -distinguindo nobreza de nascimento e nobreza de coração, ou no cap. XVIII a descrição da Fonte de Vida (sabemos que é, na Arte da alquimia, a fonte do Saber Supremo).
A caminho do sucesso final, Vénus reaparece, o Amor, a chama da Natureza, que a alimenta e perpetua, permitirá que o Amante lutador e fidelíssimo colha então a sua Rosa. Nasce o dia e o narrador desperta do seu sonho.
Veja-se: o Romance começa com a narrativa de um sonho, por Guillaume de Lorris, aos seus vinte anos, e que ele se "obriga" a contar, por imposição do AMOR:
 "c'est Amour qui m'en prie et me l'ordonne. Et si quelqu'un me demande comment je veux que ce récit soit intitulé, je répondrai que c'est le Roman de la Rose qui renferme tout l'Art d'amour". 
E o mesmo Romance termina pela mão de Jean de Meung quando, colhida a rosa da maturidade que se adquiriu (j'eus la rose vermeille) o dia nasce e o herói acorda, “Iluminado”.
                                           III

A rosa foi a flôr mais escolhida para símbolo de todas as deusas do Amor, desde a Isis egípcia à Afrodite grega  ou à Vénus romana, chegando à Virgem Maria, que o cristianismo celebra.
Mesmo na Índia encontramos um mandala em forma de rosácea cósmica, simbolizando a perfeição do cosmos, sua origem primordial e divina.
A deusa Lakshmi, da tradição hindú, deusa do amor, nasceu de uma rosa.
A rosa é símbolo do amor, pois vemos que as deusas, como Afrodite, ou Vénus, nascem da espuma do mar, as águas da criação primordial, que tomam nesse momento a forma  de uma rosa branca formada pela espuma que se espalha sobre as areias.
Nos cultos antigos, é no mês de Maio que se colocam rosas, brancas ou vermelhas, nos túmulos que se visitam.
E na tradição cristã, os primeiros rosários, dedicados à Virgem Maria, eram feitos com pétalas de rosas.
A palavra rosarium, latina, significa roseiral.
Podemos encontrar, ao longo dos séculos, todo um conjunto de obras, na arte, na literatura, na mística e na alquimia em que a imagem da rosa adquire significado especial, simbólico, transcendente, indicando pureza, perfeição, acabamento espiritual.
Seriam inúmeros os exemplos a escolher, desde os tempos mais antigos até aos dias de hoje.
Mas este será o momento de falar de Rilke, das suas rosas, da perfeição que na verdade será causa da sua morte, que ele tanto desejou sublimada e diferente (como a morte do Camareiro Brigge, nos célebres Cadernos de Malte Laurids Brigge,publicados em 1912).
Rainer-Maria Rilke é descrito pelos seus biógrafos como sendo alguém de extrema sensibilidade, a poesia sempre à flôr da pele, uma delicadeza genuína que se revelava em cada gesto, em cada pormenor do seu relacionamento com os outros. Dão um exemplo que o define como sendo também generoso e atento a quem menos se espera ( e na verdade evoca a Paris dos pobres, dos despojados de tudo e que ele também descreve nos Cadernos, como se nesta espécie de diário da alma já a substância do que viria a ser a sua vida se tivesse fixado para sempre).
Está o poeta, acompanhado por uma amiga, a passear nos jardins do Luxemburgo e vê uma mendiga já habitual naquele espaço, de quem se aproxima, curva-se diante dela, respeitosamente e coloca no seu colo uma rosa que trazia na mão. A cena é descrita pela amiga numa carta a Edmond Rostand: " a velha ergueu para Rainer Maria as verónicas dos seus olhos (verónicas tão azuis e frescas nas pálpebras vermelhas e remelosas) num gesto tão rápido e tão adequado a tudo, agarrou na mão de Rilke, beijou-a e afastou-se em passos miúdos e gastos e não mendigou mais nesse dia". Outro amigo refere, do seu tempo na Suiça, a sua "excessiva, arcaica, boa educação...perante a louca da aldeia, a mulher que reza o terço, a criança que leva o gado a beber, tudo deliciosamente educado e distante, simples e misterioso..."As descrições são, desde o traçado da sua juventude até à estadia de apropriação de uma outra realidade em Paris todas do mesmo género. Ele era, diz Gide, "para com tudo e todos, de uma perfeita naturalidade", não havia afectação, neste seu comportamento, algo desfasado, e Paul Valéry, tão diferente dele, reconhece também: " os seus olhos, tão belos, viam o que eu não conseguia ver".
Por outras palavras, ele já era, naquela altura, o "poeta do invisível".

Y.K.Centeno
Lisboa, 2017

Aos leitores: o livro com as traduções está já à venda no createspace da amazon.




1 comment:

Henrique Chaudon said...

Obrigado por esse texto. Grande abraço.