Sunday, November 27, 2016

Rui Rocha A ORIENTE DO SILÊNCIO

De Rui Rocha, de ascendência luso-chinesa, vive em Macau há 33  anos, e é actualmente Director do Dpt. de Língua Portuguesa e Cultura dos Países de Língua Portuguesa da Universidade da Cidade de Macau.
Já estive também eu em Macau, já tinha lido a inspirada, fluente, lírica de Camilo Pessanha, mas levava comigo, desde os anos sessenta, a poesia de Lao Tsé, nascido, julga-se em 570 A.C. ( e cuja influência perdura até hoje), muita leitura Zen, e antes mesmo dessa os segredos da mística tibetana, em variadas obras e sobretudo no Livro Tibetano dos Mortos, que me marcou profundamente. Tenho várias estantes cheias de obras que todas são o suporte de uma cultura, de uma civilização e de um pensamento que só não pude aprofundar porque saber a língua, desenhar os caracteres é algo que se aprende logo a partir da pequena idade e eu nessa altura já tinha vinte anos, a caminho de ser Germanista, outras via bem diferente. Tudo o que li, foi em tradução, inglesa ou francesa, ou alemã. O mesmo me aconteceu com a literatura japonesa. Em Rui Rocha, neste seu livro de poemas encontro ambas as tradições, da meditação chinesa, ou dos Haikai do Japão. Ele escolhe Bashô, como mentor, eu lia Issa e outros. Meditava sobre a beleza dos caracteres, em livros de arte, em que também o poeta Henri Michaux se inspirou, em muitas das suas obras. O fascínio era o da imagem, pictórica, e da ideia ou conceito que em si mesma encerrava. O grande prazer (e a grande lição) que se retira da espiritualidade chinesa, neste caso, é o da relação com um cosmos que nos inclui, a partir de uma entrega feita de simplicidade e despojamento, perante os factos da vida: pessoal, social ou até mesmo política. Em todos eles a relação com o cosmos está presente. E o mistério, que é o caminho do TAO, reside apenas e só nesse entendimento, interior, profundo. Como frequentemente acontece nos textos iniciáticos, é logo ao princípio que a revelação é dada. Assim vemos no poema 1 do Tao Te King (trad. francesa, Wilhelm-Perrot), que recupero:

Uma via que pode ser traçada, não é a Via eterna, o Tao. Um nome que pode ser pronunciado, não é o Nome eterno. Sem nome, está na origem do céu e da terra. Com um nome, é a Mãe dos dez mil seres ( a totalidade das criaturas). Assim, um Não-desejo eterno representa a sua essência, e por meio de um Desejo eterno manifesta um limite. Estes dois estados coexistem inseparáveis, e apenas diferem no nome. Pensamentos conjuntos: mistério! o Mistério dos mistérios! é a Porta de todas as essências.

Por que me ocorre esta evocação ao ler Rui Rocha? Precisamente porque um livro que carrega um sentido nos conduz a outros sentidos, de outros livros. Em cada verso um arquétipo, uma imagem simbólica que atrai e nos faz meditar. Também no ciclo que Rui dedica a Wang Wei ( 699-759) o primeiro poema é feito da memória de uma China ancestral:

reclinada no teu ouvido
murmura uma china antiga
com um mandato do céu por cumprir
nas dinásticas sucessões amantes.
os impérios dos tons e da escrita
governam os súbditos afectos
em éditos gravados a tinta
pelos escribas sentidos da alma.
(p.11)


Já aqui se encontram reunidos os estados que se definem, um sem nome, ilimitado, o da China ancestral com um mandato do céu, e um outro nomeado, desenhando o limite (da criatura humana) que grava a tinta os sentido da alma. Será adiante, em "a noite dos dias" que a pulsão amorosa e saudosa, ao mesmo tempo, transmitida na condensação frequente da forma do Haiku, nos leva depois aos "contos da lua vaga" (p.49 e segs.). Aqui, de novo uma evocação do que li, outrora, por sugestão de um amigo escritor, muito conhecido em Madrid, Julián Ríos: Os Contos de Genji, de Lady Murasaki (trad. ingl. Arthur Waley). Não sabia - quando é que alguma vez alguém poderá saber tudo?- enfronhada como estava à época nos escritos herméticos da Arca de Pessoa, que tinha havido esta mulher, talvez a primeira mulher romancista do mundo, nascida em 998 da nossa era, mantendo regularmente um diário, a rotina dos dias, desde os anos 1007 até 1010. O Conto de Genji, um dos contos da série, foi lido em voz alta ao Imperador do Japão, em 1008, e Lady Murasaki permaneceu na corte até 1025, pelo menos. Marcante, mesmo na trdução que leio, é esta asserção: conto apenas o que me foi dito, como me foi dito. Numa narrativa ao mesmo tempo delicada, e directa, sem os floreados que estão em voga hoje em dia... No capítulo dos "contos da lua vaga", de Rui Rocha, logo na epígrafe de Myoe (1173-1232) assoma a melancolia da referência ao Inverno (como é norma dos Hakai, alusão imagética às estações do ano, à divisão do dia e da noite, sublimando estados de alma): "passeando no inverno pelo bosque / faz-me companhia a lua. / que importa o vento cortante/ e a neve gelada?" Dado o tom, podemos continuar a leitura, que já sabemos terá de ser feita de meditação, e não apenas de folhear rápido das páginas. Retomam-se imagens como a da lua, e a noite írá encher-se de presenças, de ausências, de perfumes de criaturas amadas. Por aqui também passam silêncios, como neste Haiku, um entre tantos outros que poderia citar):

escuto o teu silêncio
a entardecer o dia.
apenas a luz da lua
me dá conta de ti.
(p.53)

Ou, mais condensado:

na sombra do vento
despe-se a lua
na noite tardia e branda
(p.63)


Não farei a fácil identificação da lua ou da noite, o elemento Yin, com a mulher, que tantas vezes surge atrás como presença/ausência desejada, ou evocada. O leitor fará, tranquilo, a leitura da obra. Há, para além da dimensão pessoal, própria de toda a poesia - o que é o poeta senão um amontoado expresso mais ou menos subtilmente de saudade de si mesmo, através do encontro e da descoberta do outro? - uma dimensão mística, oriental (dando o título à obra) que agora me levaria para outros estudos, da alquimia chinesa, em que a relação homem-mundo-universo de contemplação perpétua, me afogaria no capítulo que o autor chamou de "o canto do mar" (p.73). Para epígrafe escolheu, a meu ver muito adequadamente, pois só no ocidente nos afogamos de vez, A.E. Housman (1859-1936), poeta inglês:

Aqui no chão de areia
Entre o mar e a terra
Que ireis construir ou escrever
Contra a queda da noite?


Pragmático sabe o inglês que quer se ergam as vozes, quer permaneçam em silêncio, nada se pode fazer contra a queda da noite: nigredo, noite da alma, de onde só por meio de alguma palavra mágica se poderá erguer um novo sol num novo dia. Mas a palavra, como escreveu Pessoa, no seu poema Rosa-Cruz, é chave que não se dá e o Mestre esconde e cala. Mantendo sempre o seu estilo, fiel ao gosto de um oriente subtil, muda para o elemento "mar", a "água" a deriva que antes tinha sido dos opostos noite e dia, ou da mudança das estações, no ciclo natural. Esta água é a de um Rimbaud, nela se afogam turbulentas pulsões, ou de um Álvaro de Campos, em que todo o mar é, também ele, sítio de perdição. As epígrafes seguintes são de Alberto Caeiro, e a fechar, de Herberto Helder. Nada de mais oposto. A falsa placidez meditativa de um e o alvoroço do outro: Herberto ao afirmar que deseja dizer como tudo é outra coisa remete-nos para a sabedoria antiga, que nos lembra que tudo é, sempre foi e será...a mesma coisa.

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