Num dia de chuva, recebo de mão amiga um livro de capa azul, imagem de praia com ondas a rebentar junto a um farol que se ergue num rochedo.
Duas pessoas, uma de pé, frente ao mar, outra, mais jovem, sentada nos calhaus da praia, completam o quadro.
Serão já elas evocações do que vem no título? Frederico a que está de pé, Luísa ou a sua figuração, a que está sentada?
O que se espera dum livro?Eu gosto desde logo de reparar no papel, na letra, no cuidado gráfico, e depois abro ao acaso, antes de começar a ler.
Tem o seu quê de diário, de roteiro de emoções, ainda que ficcionadas.
Temos de início um homem, será Frederico, discutindo com o mar.
É um pescador que andou ao atum, a prosa minuciosa, detalhada, da autora, situa-nos de imediato num Algarve antigo, que ela refere como dos anos 50, e em que reconheço muito do que eu mesma cheguei a conhecer, na Tavira da minha avó Rosa, dos meus tios, do meu pai.
Um Algarve de mar batido quando se saía da barra de Tavira, a emoção da pesca do atum, as armações, a actividade das fábricas de conservas.
A autora nasceu em Vila-Real de Santo António por onde, quando eu era criança também passei , e tal como ela descreve fiz a viagem que se impunha de ir comer gelados a Ayamonte.
Algarve antigo que revejo na minúcia realista da sua prosa, dos seus personagens atravessados uns nos outros, não se ficando a saber muito bem o que ficou, para lá da evocação, duma saudade, ou mesmo de alguma perda sofrida, e que nesta evocação se exprime.
O homem que discutia ou não com o mar, também de seguida vai ao pinhal buscar pinhas, e a imagem que eu recupero para mim é a do pinhal de Monte-Gordo, onde íamos procurar camaleões...
Mas se eu devaneio, ao ler, a autora não se perde no fio da sua prosa, de grande pendor poético, sem perder o realismo do detalhe a que nos prende.
Frederico é um homem já velho, ou envelhecido pelas labutas da vida. Vamos segui-lo páginas adiante, depois de uma passagem em que se evoca um amor perdido, e um conjunto de reflexões que se atravessam na narrativa de modo a desconstruir o "género" que poderíamos julgar ser como de novela ou como um conto mais longo.
Mas será sem dúvida de novela, ou melhor, de novelo em que a alma se desfia devagar através das personagens criadas.
Frederico já anda por ali, que outros virão ainda, além da "Lália" já gritada numa voz de grande saudade?
Se a prosa da autora é realista, como já disse, minuciosa, detalhada, e de fôlego poético, a estrutura desta ficção já não pode ser definida em modo de branco e negro. A liberdade da mão fez do livro um livro post-modernista, em que a escrita segue movimentos imprevisíveis, da narração ampliada à reflexão filosofante em que a autora se vai dando a conhecer, por leituras que indica, por respostas que dá a várias interrogações, como notas diarísticas à margem do que foi o projecto aparentemente desenhado.
Em muitas das páginas em que a autora descreveu quotidianos de infância naquele Algarve antigo eu fui parando, e pude com ela rever o meu Algarve antigo - eram o mesmo. Mas só o pude rever porque a qualidade da prosa, tão feita de renda nas evocações escolhidas, se transformava de repente num grande esboço, num quadro vivo e real de uma memória já fantasma.
Afirma por vezes a autora "que vai vestir-se de inocência": mas não é inocente a mão que por ali anda, evocando, desconstruindo, recuperando até falas do quotidiano, de permeio com uma citação de Agustina ou outros pensadores de grande erudição, para que o leitor ora se perca ora se reencontre, porque a autora já deu a entender que não se rala com o que lhe possa acontecer. É ela, a autora, a absoluta tecelã dos fios da narrativa. Por ela, podemos enredar-nos à vontade. Decidiu cultivar o fragmento, como Novalis, outrora...
Cada um na sua vida, no seu atrapalhamento, ou numa claridade reinventada ali, e que não existiu nunca ou existiu mesmo e perdeu-se, como o Algarve antigo se perdeu de si mesmo.
Vale a pena ler?
Agustina certamente diria que sim.
E eu digo o mesmo.
No dia de chuva em que o recebi, este livro foi o meu companheiro, e gostei de saber que o livro queria ser só isso (o que é imenso) um companheiro, em dado momento da vida.
Sunday, May 29, 2016
Tuesday, May 17, 2016
Centenário do nascimento de Vergílio Ferreira.
Releio a Conta-Corrente, revivo aquele passado que também foi meu.
Deixo aqui a memória. Tanto se fala de cidadania, e essa consciência de que fizera falta, nos anos da Ditadura, e depois da Revolução, e ainda agora continua a não existir plenamente, leva-me a colocar aqui, para quem deseje ler, o que escrevi para outros espaços.
Em sua boa memória.
Vergílio Ferreira: 1916-2016
O progressismo é a
grande carreira. E é uma carreira fácil. Cita-se Marx.Assinam-se protestos.
Escrevem-se artigos em louvor de escritores "porreiros"...
Um
dos últimos livros que Helder Godinho, responsável pelo espólio de Vergílio
Ferreira, publicou, tem por título ESCREVER.
Vergílio Ferreira viveu para escrever: uma vez por ano,
nesses encontros do Pen, era a notícia que me dava, estava a escrever, ou mais
um romance, ou sobretudo, o que fazia morrer de curiosidade os intelectuais do tempo,
mais um volume do Diário, a tal conta-corrente, ao sabor dos dias, mas com
muita regularidade, apesar de tudo. Todos corriam a comprar, a ver se eram
citados e de que modo... Além das aulas, a escrita era a sua vida.
Foi este poema, sobretudo com esta estrofe e esta afirmação
tão dolorosa, porque o poeta quer é escrever, é essa a razão mais funda do seu
viver, e sente que está a perder o desejo, o impulso, a força, o
"querer", que me fez retornar à obra de Vergílio Ferreira, ou melhor,
a esta sua escrita diarística, ora de alegria, realizada, ao acabar um romance,
ora de desalento, quando a ideia para outro não chegava mais rápido, obedecendo
ao impulso tão forte do desejo.
Eis como definiu a originalidade:
Na escrita de Vergílio Ferreira também se encontra a questão
do sagrado - algo que Sartre e Simone abominariam - mas que torna a obra do
nosso autor mais profunda, mais interpelante, pois crescemos todos, num país
católico, com os ensinamentos da Bíblia sagrada.
Por muito que me seduzisse a ideia de contar tudo aquilo que
também vi, aquilo em que participei, aquilo que recusei e formou a decisão que
até hoje mantive de ficar longe da política de corredores baixinhos ainda que
de muitas portas que se abrissem, prefiro caminhar agora com o nosso centenário
autor para o mês de Dezembro e mais uma actividade de que ele, apesar de desejar
o contrário, não prescindia: por amizade, ou dever de presença, de que depois
fazia troça:
Antes tinha dito de si que não era "um homem público ou
seja, aquele que se completa no outro e no outro de si. Completo-me de de mim,
tanto quanto isso é possível. Ainda hoje me incomoda ver o meu nome nos
jornais.A perda da posse de mim.Como os antigos não gostavam de tirar retratos
porque receavam perder a alma. Para outros, a posse de si está em reunirem-se à
parte pública de si. Sem essa parte pública é que se sentem divididos. Como no
mito platónico do amor" (p.382).
Tantos, de que ele fala, são esses da necessidade da
existência pública, julgando que estarão mais vivos assim, sempere disponíveis,
interferindo, do que escolhendo dedicar-se à sua obra.
Com Fernando Namora (que foi amigo do meu pai, ainda em
Coimbra) Vergílio Ferreira discorria sobre o sentido da vida, e da arte, e do
balanço da geração que era a deles: sem renegar heranças, renovadores, ainda
assim, fecundos, nos temas, nas forma de narrativa...
Não me engano se disser que agora, em 2016, passado cem anos
sobre o nascimento de um grande escritor - se vive em Portugal uma igual, mais
pequena (porque em Portugal tudo é sempre mais pequeno, mas não menos nocivo)
instituição, ou tentativa de instituição
de pequenos comités filtrantes, de tiranetes da ignorância, algo que advém de
uma péssima formação literária, filosófica, cultural, que Vergílio Ferreira, se
fosse ainda vivo, muito combateria numa sua próxima Conta-Corrente.
Felizmente, com a imensidão de um povo resiliente atrás de
Mário Soares, a Democracia começou.
Releio a Conta-Corrente, revivo aquele passado que também foi meu.
Deixo aqui a memória. Tanto se fala de cidadania, e essa consciência de que fizera falta, nos anos da Ditadura, e depois da Revolução, e ainda agora continua a não existir plenamente, leva-me a colocar aqui, para quem deseje ler, o que escrevi para outros espaços.
Em sua boa memória.
Vergílio Ferreira: 1916-2016
Uma carreira faz-se
não com o que se é, mas com o que se exibe ser-se. Da superfície para baixo
todos os lodos são permitidos. Ó país do tamanho de um papel higiénico! O teu
lugar não é na História ou na Geografia. O teu lugar é no lugar do papel
higiénico. Meu Deus. E eu que não quero lá estar. Mas estou. E essa diferença é
que me trama. Porque toda a diferença é um estigma " (in Conta-Corrente 1
).
Devia
ser obra de referência nos cursos agora tão à moda, de Escrita Criativa.
Tive
o gosto de conhecer pessoalmente este autor, nos antigos jantares do Pen Club,
numa ou noutra tasquinha da baixa, ao Chiado, e regra geral éramos dos
primeiros a chegar - vício da pontualidae, que ambos partilhávamos.
Chegava
um pouco depois Sophia de Mello Breyner, que escolhia uma cadeira à frente dele
- isto é para me provocar, dizia-me ele, ela sabe que eu não lhe falo, desde
aquela célebre viagem ao Brasil "em que sequei no lóbi do hotel, à sua
espera, quase uma hora. Julgava-se mais importante..".Vergílio no melhor,
aqui, do seu azedume, que eu na realidade, muito mais nova, não conseguia levar
a sério e nem por isso deixei de gostar deste escritor filosofante e austero,
de língua afiada nos seus diários. Fomos
ambos publicados, a dada altura, na mesma Portugália Editora por um comum
amigo, felizmente ainda activo, o José da Cruz Santos!Aqui fica já um abraço de
gratidão.
Quanto
aos encontros do Pen, com aquela insistência nos atrasos da Sophia, mas sempre
sentados perto um do outro eu achava que serviam de aperitivo para alguma
conversa, já a caminho da usual intriga literária, sempre de alguma má língua,
ou não fôssemos portugueses...(à roda de uma mesa, com outros, todos os
portugueses são linguareiros, ainda que depois se despeçam com grandes abraços
de até breves).
Eu ria. Escolhiam-se os pratos, as
sobremesas... Aquela era uma antiga zanga, destas que existem, de estimação, e
não mais do isso. Por exemplo a Sophia comentava do então já muito à moda mas
ainda jovem estruturalista Eduardo Prado Coelho, que "ele lia mais do que
entendia". Gargalhada na mesa, David Mourão-Ferreria esboçava um sorriso,
era colega do pai na Faculdade, o Prof. Jacinto Prado Coelho, mas quando ele
chegava, com ou sem o pai, já o riso tinha terminado. O pai era um Mestre, na
Faculdade de Letras e eu ainda lhe devo,
com gratidão, que fosse publicado na Ática o meu romance As Palavras Que Pena (1972).
E quanto ao Eduardo, ele era quem trazia de França as últimas novidade, leituras,
filmes, de tudo um pouco, do muito que faltava em Portugal. E por ele gostar da
Marguerite Duras, que eu idolatrava, nunca me juntei às críticas mais ferozes,
embora soubesse que ele não era apreciador do que eu pudesse pensar ou
escrever. Talvez porque eu vivia grande parte da minha vida em França, na Paris
sonhada, em casa da minha tia Guenia Richez, irmã mais velha da minha mãe, mas
que fora a primeira a editar Paroles,
de Prévert, logo a seguir à guerra, andando com montinhos da edição, de livraria
em livraria...
Em
sua casa conheci escritores, pintores, realizadores - eu estava a par "ao
vivo" do que se fazia, mas de facto era o Eduardo quem nos jantares, ou na
Faculdade, discutia as "novidades". Eu era, nessa altura, muito mais
discreta do que me sinto hoje...chegado, quem sabe, o tempo da saudade?
Devo recordar, a propósito dos ditos de
Vergílio, ou de Sophia, que se havia riso, no fundo não era maldade, era o
olhar dos "Crescidos" sobre os jovens que despontavam e já
"mandavam bocas".
Vergílio
Ferreira era idolatrado por todos os que
tinham sido seus alunos, no Liceu Camões. Um deles, Ben Almeida Faria,
entregara aos olhos de Vergílio o seu primeiro romance, Rumor Branco, e que era na verdade de uma escrita fundadora, ao
modo joyceano, e para o qual o amigo professor escreveu o prefácio que muito
ajudaria à divulgação e reconhecimento desta primeira obra. Li Rumor Branco, como li de seguida A Paixão,
que considerei ainda mais importante no contexto do que seria a inovação
literária em Portugal. Eu também tinha conhecido Almeida Faria como aluno, e
ainda hoje entendo que um professor é assim: reconhece e apoia o mérito de quem
com ele conviveu, muito ou pouco tempo, a vida é mesmo assim -ora une, como
aconteceu com Vergílio, ora separa - mas esse laço de admiração e estima ficará
para sempre.
Encontramos
na Conta-Corrente, a referência a
esse momento do encontro de ambos e à reflexão perante o que considerou a marca
tão segura da originalidade do novíssimo autor.
Como
encontramos muitas referências a Helder Godinho, discípulo e admirador de
sempre, e penso que ainda hoje o bom Anjo guardador do seu espólio.
Vergílio teria compreendido muito bem a exclamação de
Alberto Pimenta no seu mais recente livro de poemas: de novo falo, a meia voz..(2016) quando exclama:
O querer
foi a primeira coisa
a esmorecer em mim
(in Não Chega,p.79)
Não é querer a toda a força, de forma arbitrária, é obedecer
ao impulso profundo que leva o escritor a querer, a pegar na caneta, no lápis
ou no papel, a meio da noite, se acorda, ou a qualquer outra hora, para
escrever o seu dizer, a voz que mais alto ou a meia voz, se manifesta urgente.
A espaços, ou melhor, a tempos: é no tempo que a escrita se
inscreve, bem sabia Heidegger que o Ser não se diz, mas que no Tempo tudo se
manifesta, na existência se vai tomando forma...
Escrever é pois um imperativo, da vida, da alma, que presa
às circunstâncias se debate, interpela, exprime o que lhe vai por dentro.
Alguém disse que um grande artista (aplica-se a um grande
escritor) precisa de ter um ego incomensurável, e a consciência dele.
Ou a Obra não acontece, não será duradoura, (por contínua)
pensamentos e sentimentos se dispersarão com coisas várias dos outros, do
quotidiano de que o artista, com letra grande, não soube ou não conseguiu
afastar-se, reservando para si todos os momentos vividos.
A sua entrega à existência terá de ser total, terá de ser
absoluta, para que a sua grandeza se afirme e se confirme. Num Grande nunca o
egoísmo será alguma vez censurado.
Ocorre-me o caso de Wagner, mais do que grande, Enorme, -
como foi tido no seu tempo, e ainda hoje: ler os Diários da devotadíssima Cosima, mesmo sem se ser feminista, faz
doer o coração.
Que entrega tão completa, que abdicação de si mesma perante
o outro que, sendo genial, (como Wagner egoistamente se considera) de todos à
sua volta absorve tudo o que pode, entende que tudo lhe é naturalmente devido,
(incluindo vénias e fortunas, se tal fôr necessário).
A Luís da Baviera, sem nunca se entregar, deixou que o jovem
o idolatrasse como a um deus.
Mas será um compositor diferente de um escritor, na entrega
à sua obra?
Valem a sua vida e a sua obra, mais do que vidas e obras
alheias?
Vergílio Ferreira foi sem dúvida o grande escritor do seu
tempo: foi o que ultrapassou um neo-realismo meio serôdio, para pensar e
escrever uma outra forma de entender a existência, assumindo, sem o reconhecer
claramente o nome com que Jean-Paul Sartre já baptizara o novo movimento: Existencialismo.
Mas havia de facto diferenças entre ele, o seu entendimento
do mundo, e o superlativo Ego de Sartre, alimentado pela companheira de uma
vida, Simone de Beauvoir.
Há na sua escrita uma definição primeira, que exprime logo a
essência e o sentido do desdobramento que exige:
"Escrever é ter a companhia do outro de nós que
escreve".
Leu bem, e certamente ensinou outros, a ler Fernando Pessoa,
cuja consciência do eu e do outro formatou toda uma geração de escritores.
Não se trata apenas de ter "a companhia do outro de
nós", o alter-ego que se apossa da mente e da mão que escreve.
Trata-se, seguindo Pessoa, e não o velho Sartre, de ter a
consciência disso, num outro patamar que é já de super-ego, e não apenas de um
ego que se diz ser enorme.
No seu tempo, e no meio que frequentava, Vergílio Ferreira
foi certamente uma voz original. Desabrida, por vezes, o que é bom, fazia-se
ouvir melhor mesmo quando se fechava num mais longo e retirado silêncio. Mas
apercebemo-nos de que ele, fechado nesse silêncio, não se sentia feliz. Morria
aos poucos por "não conseguir sentir". Tinha a ideia, ou tinha mesmo
os projecto meio desenvolvido, mas a escrita não progredia, não chegava ao fim
com a rapidez ou a intensidade desejada na descrição das acções, dos
sentimentos, das personagens.
" Todo o escritor que é original é diferente. Mas nem
todo o que é diferente é original. A originalidade vem de dentro para fora. A
diferença é ao contrário. A diferença vê-se, a originalidade sente-se. Assim,
uma é fácil, a outra é difícil".
Também ele afirmava que " ser inteligente é ser
desgraçado", como se retomasse o poema da Ceifeira, de Pessoa: ela era
feliz porque era simples, para não dizer mesmo simplória, na sua ignorância de
não saber, não pensar, algo que só os inteligentes fazem, e com isso sofrem
pela vida fora...
Nesta Conta-Corrente
1, de 1969 a1976, vemos que Vergílio Ferreira em cada novo aniversário, e em
cada Novo Ano, sofria com a questão do envelhecer, e do que a velhice, além da
morte, podia trazer consigo. Assim o vemos nos seus cinquenta anos (como seria
diferente hoje, a sua reacção) e assim o encontro agora, por exemplo, aos
sessenta):
" O romance está em crise. A arte está em crise. A
cultura está em crise.Por força dos meus sessenta anos, estou em crise. O meu
país está em crise. Como posso pensar ainda em escrever romance?" (p.354)
Mas escrever era sua vida verdadeira, entre as aulas, os
exames, e a dada altura as convulsões de um Revolução que tantos tinha
desejado, e ele também. A sua casa é centro de rodopio, de um Eduardo Lourenço
a um Fernando Namora, a um João Palma-Ferreira, etc.
Mas Vergílio, o escritor-pensador, pressente que é na
palavra que reside o mistério. É no dizer:
" O mais profundo duma palavra é o que há nela de
sagrado. Deus tê-la-á dessacralizado quando com ela criou o mundo. Mas nós
sacralizamo-la de novo quando o recriamos com ela."
E de que modo?
Escrevendo...
"Vive a vida o mais intensamente que puderes. Escreve
essa intensidade o mais calmamente que puderes. E ela será ainda mais intensa
no absoluto do imaginário de quem te lê".
Entenda-se este "calmamente" como sendo a
lentidão, a revisão, toda a demora que se se torne necessária para a depuração
do que seja excessivo no texto. O excesso não é alimento, é desperdício de
alma...
A pressa sempre foi má conselheira, e o mesmo se aplica à
escrita.
Encontramos na Conta-Corrente
( que leio agora desde o ano de 1969 e seguintes ) um pouco de tudo o que
acontece no país cultural e literário, e sob a sua capa a manifestação dos que
se opunham, mais ou menos visivelmente ao regime salazarista. Havia casas,
havia cafés, havia círculos para tais encontros, em que se discutia a mudança
desejada, naquele tempo muito vivido ainda no sentido do comunismo soviético.
Os anos que vão de 1973 a 1976 são excepcionalmente
interessantes para um leitor que queira de facto, pela leitura, assistir aos
desenvolvimentos que marcaram, para sempre (?) este Portugal em que agora
vivemos.
Os amigos de que Vergílio fala, muitos eram também nossos
amigos, e a agitação dos dias, ou das noites, que lhe levavam a casa eram os
mesmos que nos traziam aqui, a nossa casa, pois nós já vivíamos nesta casa de
hoje nesse tempo, perto da primeira versão da UNL, na Av. da República, e da
própria casa de um desses bons amigos, o João Palma Ferreira. Este é dos mais
citados, na Conta-Corrente, em
matéria de catástrofes que os tempos escondiam: revolução, povo na rua com os
comunistas a tomarem conta de tudo, uns ainda soviéticos, outros já maoístas -
todos com a tropa à frente, e Portugal, a pátria sem destino, esperando por um
desígnio que Mário Soares, pacatão, ainda não definia opondo-se com maior
clareza.
Acabou no entanto por fazê-lo....Explicava a Vergílio, o
impaciente: "a Democracia dá trabalho...para sossego existe a
Ditadura".
" 10-Dezembro (sexta). Ontem lá fui ao lançamento do
livro da Natália. Muita gente. E implícito nisso, o aplauso à coragem da
Natália no combate ao totalitarismo. Mulher de armas, versão actualizada e
intelectual da padeira de Aljubarrota contra o invasor estrangeiro. Li hoje o
livro lançado. Rasgo, ardor, firmeza, tudo subtilizado em bela invençãopoética.
Estive pouco tempo na reunião, porque tinha um jantar marcado (...)Mas no breve
encontro vi muita gente. É ocasião de a gente se ver nesta dispersão citadina:
os cocktails e os enterros"
(p.383).
Mesmo assim Vergílio não se furta a um ou outro convite,
jornal, televisão, nem sequer à publicação de este Diário em conta-corrente, de
meditação sobre a sua escrita e a dos outros, alguns apanhando forte, como ele
se queixa de ter apanhado sempre de "cliques" como as do Papa Gaspar
Simões e alguns cujo nome evitarei citar aqui, porque a adjectivação vergiliana
é talvez excessiva. Poupo alguma memórias...
Cito, do ano de 1972:
" Esteve aí o Namora, há dias. Como de costume, e
insensivelmente, caímos ambos no balanço da nossa geração como quem dá por
encerrada a vida. E é isso no fundo o que nos domina: a enviesada certeza de
que isto já não é connosco. Estamos
fora do jogo, gastámo-nos. E cálido,
um apelo à desistência, um gosto de acabar. Não ler, não escrever, gastar o
resto de ideias e estupidificarmo-nos. A parte negativa. Mas a morte há-de ser
a negação maior. Se a gozássemos em vida? Ser sem arte, abandonarmo-nos ao abandono,
à pura passividade? Namora, em todo o caso, parece tranquilo quanto ao dstino
da nossa geração. Que a nossa geração foi "fecunda". Que os jovens,
só surriada. O que até talvez seja verdade..." (p. 128).
E termino, porque me parece de grande actualidade, neste
momento em que vários Partidos se uniram para mandar, fingindo que não sendo
Governo não têm contas a dar a um povo que saiu de uma Ditadura para quase
entrar noutra, quase sem saber, de uma Europa sem valores e que muito convém
àqueles que agora retomam a palavra perdida em nome já ninguém sabe de quê!
Vergílio, regressa, a
tua voz faz falta!
"Vencer o imediatismo da pressão política. Voltar ao
romance. Ser eu" (p.201).
E quanto a nós, ainda herdeiros e vivos: regressemos também
ao que desejámos ser, erguendo uma voz mais clara: por outras palavras que são
as de Vergílio Ferreira, lucidíssimo:
" Cortar com o berreiro público. Voltar à marginalidade
das minhas (nossas...)
coisas"(p.192).
Agora, em data de centenário a celebrar, o que diria o
escritor que nos liceus não é lido, ou se é, é a partir de páginas extraídas ao
acaso, sem antes nem depois, que nem alunos nem professores poderão entender?
Seria duro, como nos comentários que fez ao nosso medíocre meio literário,
quando em França saiu a tradução de Alegria
Breve, pela mão de René Bamdé, cujo pseudónimo liteário, Robert Quemserat,
já brincava com a questão do quem será ? E foi escândalo! Quem será este, que
se atreve - ainda que por desfastio ( esteve preso no Porto e fez várias traduções
de alguns que considerou interessantes e marcantes pela novidade dos temas e da
prosa) que vem agora com esta Alegria
Breve?
Eis o que nos conta Vergílio Ferreira, e que alguns (ainda
vivos, como eu ou o Ben Almeida Faria recordaremos com um sorriso, pois é pura verdade o que Vergílio conta, e
aconteceu connosco, tão mais jovens -
mas agora a idade perdoa tudo! ):
"...A tradução é entre nós uma grande credencial. Eis
porque todos afanosamente a procuram. Junto da Gallimard, ao que me dizem, há
um comité português de leitura (...)
que só deixa passar os elementos credenciados. Daí o frenesim por eu ter
escapado às malhas. Bons deuses, lá escapei, aliás por um golpe de sorte.
Bamdé, preso, entreteve-se a traduzir-me na cadeia. Deste modo saltei a barreira
portuguesa e passei logo à francesa. E aí o livro teve o visto" (p.29).
Eu tivera também a sorte de saltar a barreira, pela mão de
Bamdé, com Pas Seulement la Haine, em
1968. Mas já os meus sketches de teatro, que depois da revolução de Abril
publiquei com o título de Teatro Aberto,
na Ática, não tiveram igual sorte.
Madame Benmussa, que dirigia a colecção de teatro juvenil,
comunicou-me, certa vez quando eu estava ainda em Paris, (os originais do
teatro estavam em português) que esse tal comité os tinha chumbado. Para eles
(quem seriam? ainda hoje não sei) já bastava que tivesse saído um romance sem
eles darem por isso...
Se ele, na verdade, ao sentir-se envelhecer, apenas com os
seus sessenta anos ( o que é isso para nós, os de setenta ou mesmo oitenta ou
mais anos) sofria quase em cada página por uma secura de alma que o impedia de
chegar à ideia ou ao projecto, ainda que incipiente, de um novo romance que o
absorvesse por completo - porque o mundo à sua volta mudara, perdera valores,
se tinha fragmentado e um mal constante o atormentava, o que diria ele de ainda
mais severo do que por exemplo este desabafo, sobre aquilo em que a sua Escola
se tornara?
" No liceu, a balbúrdia. Trelaxamento total nos
costumes. Fornica-se e defeca-se ao ar livre. Miúdas contratam a fornicação a X
a bandeirada. No meu liceu as 'capitoas' andam desorientadas. Mas toda a gente
'progressista' o anda (excepto talvez os comunas)
: a vida não vem nos livros de propaganda" (p.223).
Vergílio admirava-se que alguém como um Eduardo Lourenço
pudesse afirmar, lá por casa, que o imperialismo soviético podia ser uma
solução, como o Império de Roma tinha sido outrora, com a ordem no mundo....e
Vergílio perplexo interrogava-se: o comunismo trouxe a fome à Rússia, aos
países que dominou, a China fez o mesmo, de que servirá a fome e como se
alimentarão estes nossos comunistas da utopia de agora?
Nunca escondeu, nem dos piores nem dos melhores amigos que
não era e não seria nunca comunista. Desafiado por vezes para algum cargo, pelo
PS, também teve a coragem de recusar, pois escolhera um caminho que não
permitia distracção, nem cedências a pequenas ou a grandes vaidades, o da
Escrita:
" Por favor. Já disse. Não me chateiem mais com isso.
No tempo do fascismo os escritores escreviam, porque tinham sossego e podiam
dizer mal. Hoje vivem em alarme com medo do outro totalitarismo e não podem
dizer mal nem bem. Tudo isto acabará, se a democracia enfim começar"
(p.380).
Veremos agora, com a Europa dos grandes e dos pequenos se o
sonho não se desfaz!
Thursday, May 05, 2016
Alberto Pimenta, NÃO CHEGA
Difícil é parar de ler estes poemas.
Circulam no ondear da capa, que Alberto Pimenta concebeu para o seu ilustrador. Rodam, na roda da vida, do seu falar a meia voz.
Reli este, poderia ser outro, para colocar aqui.
Ele diz não chega, Neste título (p.79) e não chega mesmo, porque todos precisamos de mais, de muito mais, pela sua mão, pelo seu génio, que o transporta e o traz até nós.
Humildes, lemos. Numa altura da vida em que outros se atabalhoam na corrida ao sucesso, eis este poeta aqui perto de nós, falando.
É imperioso escutar.
NÃO CHEGA
Nuvens espessas,
parecem pesadas como chumbo.
O vento empurra-as
para cá.
Haverá
quem ainda saiba
e possa desviá-las?
E queira?
- Mas tu próprio queres?
O querer
foi a primeira coisa
a esmorecer em mim.
-Então
por que escreves?
Não adianta.
-Não adianta o quê?
-Não adianta
tentar perceber.
....
Pelo meio o poeta fractura o caminho, filosofante, da interrogação, do tentar perceber.
"o querer que esmoreceu" nele é o mesmo antigo impulso, de uma energia tão especial, que tínhamos outrora e com o tempo se foi perdendo, como se foi perdendo de alguma forma no país, no momento que vivemos.
E o poeta então decide brincar connosco: é uma questão de ritmo, melhor dizendo de arritimia, conta os "arithmos" (p.80) o pulsar de tantas inquietações: das que fazem viver e das que fazem morrer...numa mesma paixão, a de ser, viver, intensamente escrever. Escrever é resistir.
Por ser tão longo o meu convívio com os poemas de Alberto Pimenta sem nunca ter a pretensão de os poder analisar, fazer a recensão crítica dos sábios, logo ao primeiro verso, e entre os versos, me identifico e revivo o que ele esteja vivendo. Serei boa leitora, porque tão fiel, serei sem dúvida uma péssima crítica: não procuro no que escreve o requintado estilo, vou directa ao pulsar de um coração que ali está a bater, vou procurar a voz que fala baixo, e quando fôr preciso também gritará, as dores múltiplas nossas, e do mundo.
O desvio que se segue, ao puxar para o verso o um, a unidade, e o dois, que também pode ser um ou não ser nada - pois o poema agora já segue a duas vozes, vem confirmar que a matemática só por si não chega, e fica justificado, com ironia, o título dado ao poema.
Poetas não são contabilistas, e os números da alma não se contam somando ou diminuindo, todo o contar restringe, assim esmorece o "querer", o impulso inicial, a alma do poeta exige ampliação...um ar que ainda se respire livremente.
Circulam no ondear da capa, que Alberto Pimenta concebeu para o seu ilustrador. Rodam, na roda da vida, do seu falar a meia voz.
Reli este, poderia ser outro, para colocar aqui.
Ele diz não chega, Neste título (p.79) e não chega mesmo, porque todos precisamos de mais, de muito mais, pela sua mão, pelo seu génio, que o transporta e o traz até nós.
Humildes, lemos. Numa altura da vida em que outros se atabalhoam na corrida ao sucesso, eis este poeta aqui perto de nós, falando.
É imperioso escutar.
NÃO CHEGA
Nuvens espessas,
parecem pesadas como chumbo.
O vento empurra-as
para cá.
Haverá
quem ainda saiba
e possa desviá-las?
E queira?
- Mas tu próprio queres?
O querer
foi a primeira coisa
a esmorecer em mim.
-Então
por que escreves?
Não adianta.
-Não adianta o quê?
-Não adianta
tentar perceber.
....
Pelo meio o poeta fractura o caminho, filosofante, da interrogação, do tentar perceber.
"o querer que esmoreceu" nele é o mesmo antigo impulso, de uma energia tão especial, que tínhamos outrora e com o tempo se foi perdendo, como se foi perdendo de alguma forma no país, no momento que vivemos.
E o poeta então decide brincar connosco: é uma questão de ritmo, melhor dizendo de arritimia, conta os "arithmos" (p.80) o pulsar de tantas inquietações: das que fazem viver e das que fazem morrer...numa mesma paixão, a de ser, viver, intensamente escrever. Escrever é resistir.
Por ser tão longo o meu convívio com os poemas de Alberto Pimenta sem nunca ter a pretensão de os poder analisar, fazer a recensão crítica dos sábios, logo ao primeiro verso, e entre os versos, me identifico e revivo o que ele esteja vivendo. Serei boa leitora, porque tão fiel, serei sem dúvida uma péssima crítica: não procuro no que escreve o requintado estilo, vou directa ao pulsar de um coração que ali está a bater, vou procurar a voz que fala baixo, e quando fôr preciso também gritará, as dores múltiplas nossas, e do mundo.
O desvio que se segue, ao puxar para o verso o um, a unidade, e o dois, que também pode ser um ou não ser nada - pois o poema agora já segue a duas vozes, vem confirmar que a matemática só por si não chega, e fica justificado, com ironia, o título dado ao poema.
Poetas não são contabilistas, e os números da alma não se contam somando ou diminuindo, todo o contar restringe, assim esmorece o "querer", o impulso inicial, a alma do poeta exige ampliação...um ar que ainda se respire livremente.
Tuesday, May 03, 2016
Alberto Pimenta, fala de novo a meia-voz....
O que há de tão necessário, de tão vital, nas palavras ditas, para se entender que, ainda que a meia-voz, o dizer das palavras é sempre redenção ? E sempre afirmação de resistência em conformidade ou não com o decurso da vida?
Para quem as articula, diz ou escreve, para quem as ouve, ou lê e pode, ao repetir, sentir que vive e a sua vida, ainda que breve, é uma vida plena? Entre os poetas há os que morrem cedo, há os que morrem tarde, há os que nunca morrem...
Empobrecemos, se nos faltam as palavras, definhamos até que o mundo à nossa volta perca sentido de vez.
A um poeta, subtrair a palavra é como tirar-lhe o pão, a água, fazê-lo morrer à míngua.
E aqui temos o poeta das palavras, ora gritadas ora ditas a meia-voz, num discurso todo ele de interpelação, de espanto ou interrogação, ALBERTO PIMENTA, o resistente, o que nunca deixou que a voz lhe fosse abafada, com um novo livro:
NOVE FABULO, o MEA VOX. DE NOVO FALO, A MEIA VOZ.
ed. pianola 12, 2016
E já à venda.
São mais de uma centena de páginas de longos poemas, ao mesmo tempo subtis e tão certeiros, nos motivos que escolhem, e que à nossa e às novas geração tanto têm a dizer. Em primeiro lugar que a sabedoria cabe toda num verso, como cabe num grito, num tropeção, num último esforço que se faça.
A poesia é esforço e é desforço.
Da vida que passa, num tempo que não cessa, o tempo, esse grande interlocutor (oculto, mas sempre a formar-se e deformar-nos, o tempo que não se cala, e que vemos passar).
ANTELOGIUM
Em ti vejo o tempo
continuamente formar-se
e em mim
vejo-o passar.
Quando me dás do teu tempo
dás-me um pouco de mim:
o meu detém-se
....
Como forma
que o tempo ainda forma
e dá forma ao tempo
conheço-te a ti agora
no declínio da minha vida.
Não sei que forças
te trouxeram até mim,
onde vês
o que em ti continua a nascer
em mim morrer
sem esperança.
....
Segue o poema, numa tão explícita declaração de amor, um amor feito de tempo, o tempo que se dá ao outro, que dele viverá, enquanto os deuses assim o consentirem... que só resta ao leitor continuar a ler, em voz baixa, com respeito, pois que todos nós passaremos por esse anunciado tempo que chegará :"
Como sempre,
tudo chegará
na ocasião de chegar.
Sem dúvida
tudo chegará:
o tempo
que em ti há-de continuar
a formar-se,
que em mim
irrevogavelmente,
está a acabar.
(p.10)
A lentidão do discurso, respirando entre uma e outra linha, pode ser de algum cansaço, mas resulta também da reflexão que o tempo fez amadurecer, como acontece ao fruto que na poesia de Goethe amadurece, essa é a reflexão que a todos nós alimenta:
do pulsar da vida, que no tempo dado por outros ao poeta lhe é dado e também a nós é dado, pelo poema, aqui nesta meia voz que tudo desperta, nos sentidos, e no desejo de um corpo e de uma alma de momentos maiores.
Falei em delicada e comovente declaração de amor: a alguém que deu do seu tempo, e é feito de tempo o amor aceite e concedido.
Mas há sempre mais do que um primeiro movimento, na poesia de Alberto Pimenta.
Leio desde sempre as suas obras, recordo, das que vi, as suas performances de revolta e humor subtil, tão erudito que por vezes agride, acertando em cheio na nossa silenciosa cobardia, na nossa ignorância também, que vem de longe.
Nesta obra temos de tudo, como num balanço de vida: foi longa, foi boa nos excessos e nas delicadezas, e assim continuará, pois a voz deste poeta não emudece a menos que o amordacem, e esse tempo passou. Contudo, é do tempo que ele deseja falar. Um tempo que move e se move no universo, como em PERCEBO, onde lemos claramente " digo que o tempo foge, / mas está sempre presente:
esse é o resumo"(p.11)
O tempo move-se, é por certo ele que curva o universo e a nossa vida, que desejaríamos perene, é ele o tempo da fuga :
"'move-se através do universo,
nenhum mortal o vê, mas ele vê-os a todos.'"
É de um hino órfico." (p.12)
De Alberto Pimenta como não evocar a sua enorme cultura, a sua erudição, parte da sua substância mais secreta, mais íntima, e que nos devolve ao mistério que a ele o alimenta, como eterno estudioso que é do universo, do homem, e do ser eterno no tempo?
Leu Heidegger, como leu os clássicos.
Devorador de sapiências alheias distribui, generoso, a sua, que é feita de carne e osso, a apetência de vida que nunca renegou. Desejo não é pecado...
Em MISTERIOSO o discurso poético vai embalado numa irreverência quase surrealista, Dali não passa neste poema por acaso, de mistura com ovos que estão a ser chocados, e com o livro de Bataille que partilha o mesmo lugar na estante e cuja referência lhe provoca" uma levíssima e gostosa erecção/ como há muito não sentia" (p.21).
O corpo vive, onde vive a palavra, onde vive a memória, do passado e do presente , que são barreiras do tempo.
De cada poema faz Alberto Pimenta matéria de reflexão: olhar o mundo, dialogar pelo meio com o alter-ego de CARTOON, ou com a crise do desemprego, em QUEM? numa voz que se declara irónica, e até mesmo cruel, se lhe surge a suspeita de algum destino imposto.
Em ESPELHO NOSSO? todos, ou pelo menos, muitos de nós, da mesma geração, em fase terminal, ainda que vivos sabemos bem que nos querem de preferência mortos, ou pelo menos mal enterrados - como na conhecida anedota - todos, dizia eu, nos podemos ver ao espelho e não reconhecer o rosto que nos é devolvido:
"olho para o espelho / e sai de lá a cara doutro..."(p.33)
Alberto exprime o que o tempo nos fez: eu vejo de manhã ao espelho, com espanto, a cara da minha mãe, por vezes da minha avó. Não me dá medo,ao contrário do que ele diz, evocando uma cena de Ovídio, nas Metamorfoses, e o espelho de água de Narciso...Porque ele, poeta, transforma no seu verso a realidade crua que na mulher, mais simples, é desgosto de velha a ver-se envelhecer.
Com uma pacatez de riso quase sardónico, salta no verso do espelho para a polícia: é a polícia que mete medo, não o reflexo do espelho:
"O medo que isso faz
já o conheço portanto:
não vem do espelho,
vem da polícia". (p.34)
E de novo desconstrói o poema dialogando com um outro que ajuda a aprofundar a questão.
E a questão é bem simples, como no espelho de Alice, é uma questão de tempo, o tempo dentro do espelho, o tempo da natureza, quando já tudo se fez tarde!
Não cabe neste modesto espaço de um post tudo o que haveria a dizer, e não tenho essa pretensão.
Pelas páginas deste livro passam filósofos, compositores, momentos grandes, momentos de quotidianos só na aparência menores (há que reler mais vezes) mas desejo terminar deixando ao leitor uma outra faceta ( obra-prima) deste poeta bem amado, em FOLIA.
A Canção Ébria, de Nietzsche que ele oferece na sua tradução, como prenda de algum aniversário de que se terá esquecido:
Ó homem! Pensa!
Que diz a meia-noite imensa?
Eu dormia, dormia...
Despertei dum sonho que me tinha suspenso:
O mundo é profundo,
Mais que o dia pensa.
A sua dôr é imensa...
O prazer...mais que a dôr ainda.
Diz a Dôr: desaparece!
Mas o prazer quer eternidade...
...Quer funda, funda, eternidade.
(p.72)
Alberto Pimenta, com Nietzsche, nunca falou tão alto!
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