Wednesday, December 17, 2014

Mandorla


Mandorla

Como se pode ler na Enciclopédia Britânica a palavra deriva do italiano "amêndoa" e na iconografia cristã representa uma auréola de luz rodeando a figura sagrada, que será Cristo Redentor nos primeiros exemplos conhecidos, dos séculos V e VI,  ou será a Virgem Maria no momento da Ascensão, já mais tardiamente na Idade-Média ocidental.
Mas na realidade podemos dizer que se trata de uma figuração simbólica mais complexa, surge na arte budista como em alguns códices de alquimistas reputados, ou ainda nas iluminuras de uma Santa, visonária e cientista, muito avançada para o seu tempo, o século XII: refiro-me a Santa Hildegarda de Bingen. As suas iluminuras são mandorlas, espaços de meditaãção, como serão os Mandalas desenhados por Jung em dado momento da sua vida e apelando também eles a um espaço de transformação interior.
Esta amêndoa, que resulta do cruzamento de dois círculos (sendo o círculo o emblema da perfeição máxima, como o define Nicolau de Cusa, (e outros, muito antes dele) afirmando que Cristo " é o centro e a circunferência da natureza intelectual e, porque o intelecto abraça todas as coisas, está para lá de tudo. Sendo que " na medida em que subiu (no caso das almas racionais e santas) para lá de todos os céus, entendemos que Cristo subiu para lá de todo o lugar e de todo o tempo, para lá de tudo o que pode ser dito, à mansão incorruptível, para assim constituir a consumação de todas as coisas. E uma vez que é Deus, é tudo em todas as coisas. " ( Da Douta Ignorância ed. Fundação Gulbenkian, cap.8,232,pág.163). Nicolau de Cusa tem certamente na memória as mandorlas das Igrejas cristãs ortodoxas, bizantinas, belas e com Cristos estilizados no interior, irradiando o seu mistério de luminosa humanização. Pois esse é um mistério: que Deus se humanize, permaneça entre nós, lembrando que teve de nascer de barriga de mulher, e ascender aos Céus para com ele erguer a humanidade pecadora do Velho Testamento.
Podemos ver na Mandorla o Mandala, que os budista tibetanos constroem, uma vez por ano, para meditação do tempo e dos tempos que virão, pela inspiração do Dalai-Lama, o seu guia máximo. Depois é destruído, permanecendo na memória individual e no imaginário colectivo.Mas como podemos ler em Nicolau de Cusa, a matriz remonta a Pitágoras, ao número primordial sobre o qual assenta a criação divina e o seu entendimento, remonta a Platão, e até a Hermes Trismegisto, considerado o pai fundador da alquimia, no antigo Egipto.
Será por esta via que se faz a tranmissão judaico-cristã,  que leva um poeta judeu, como Paul Celan, ao seu poema, à sua interpelação carregada de perplexidade, a um afundamento do ser divino e da sua ausência que tanto nos comove.
Nicolau de Cusa, ao ciatr Hermes Trismegisto mostra que conhece, como Humanista e filósofo do Renascimento, a célebre Tábua de Esmeralda, onde se afirma que tudo é Um, e que essa unidade é transversal ao Criador e a todos os seres criados do universo.
Julius Ruska serve-se da versão latina da Tábua, (Tabula Smaragdina) numerando os versículos, o que permite aos estudiosos fazer comparações entre as variantes existente.
Vou usar aqui uma versão árabe de Julius Ruska, em tradução francesa, pertencente ao Livre du secret de la création (Didier Kahn , Les Belles Lettres,1995 ):
I.
É verdade, verdade, indiscutível, certo, autêntico. 
II. 
Eis, o mais alto vem do mais baixo, e o mais baixo do mais alto; uma obra de milagres por meio de uma coisa única.
III. 
Como todas as coisas nasceram desta matéria por um processo único.
(var. Como a sua obra é maravilhosa! Ele é o princípio do mundo e aquele que o governa!)
IV.
O seu pai é o sol, a sua mãe a lua; o vento transportou-o no seu ventre, a terra alimentou-o
V.
Ele é o pai dos encantamentos,vigia os milagres, é perfeito na força; desperta as luzes.
VI.
Um fogo que se transforma em terra...
VII.
Retira a terra do fogo,o subtil do grosseiro, com prudência e arte.
VIII a.
Ele sobe da terra ao céu e agarra as luzes do alto, e depois volta a descer à terra.
VIIIb.
E nele reside a força do mais alto e do mais baixo.
VIIIc.
Tu te tornarás assim o dono do mais alto e do mais baixo.
VIIId.
Pois contigo está a luz das luzes, e as trevas fugirão à tua frente.
 IX.
Com a força das forças ultrapassarás todas as coisas subtis, e penetrarás em todas as coisas grosseiras.
X.
De acordo com a origem do grande mundo 
XI.
(a obra é originada e é essa a minha glória).
XII.
Assim fui chamado Hermes triplo em sabedoria.
( Didier Kahn,pgs.9-12)
Transcrevi a totalidade desta versão de Ruska, por ser em geral a mais lida e citada pelos alquimistas medievais.
Mas a mensagem a reter, para o nosso caso, é a da unidade de Todo e do Uno, e de como (pelo milagre da transformação que se opera na obra) toda a matéria espessa se transmuta em matéria subtil, sendo que terra e fogo, como elementos primordiais participam da origem do universo e de todo o ser criado. 
Em Alexandria, no Egipto, conviviam sábios gregos, persas, judeus, cristãos, árabes e alquimistas, e nesse longínquo tempo, dos sécs. II-III, em simultâneo se buscavam o conhecimento e os segredos da alma, a par dos segredos da química e do ouro. Cada qual bebendo nas suas fontes e memórias de saber, procurando na letra e no espírito dos textos a melhor revelação.

O caso de Celan, que também conhecia os textos e as doutrinas alquímicas, até por via dos seus amigos surrealistas, leva-me ainda assim a procurar no Antigo Testamento uma das possíveis fontes para a Mandorla que no seu poema contém um Rei de silêncio, emudecido, absorto na contemplação de um Nada que se tornou absoluto.
E que ele interpela, que ele interroga, sem sucesso.
Eis o poema:
Mandorla
Na amêndoa - o que está na amêndoa?
O Nada. Está o Nada na amêndoa.
Aí está e está.

No Nada - quem está aí? O Rei.
Aí está o Rei, o Rei.

Madeixa de Judeu, és imortal.

E os teus olhos- para onde estão voltados os teus olhos?
Os teus olhos estão voltados para a amêndoa. 
Os teus olhos, para o Nada estão voltados.

Para o Rei.
Assim estão e estão.

Madeixa de homem, és imortal.
Amêndoa vazia, azul real.

(in J.Barrento e Y.K.Centeno, Sete Rosas Mais Tarde, ed.Cotovia, pgs.111.113)

Que Mandorla, que amêndoa é esta, que tem no centro um Nada e um Rei - sendo que o Nada é o Criador Supremo, irradiando a distância e o silêncio que o determinam em relação ao homem que criou, e o Rei o que devia ser (mas será, terá sido?) a sua suprema humanização, numa linha que vai desde David, o Rei, até Jesus, o finalmente divino humanizado?
Na tradição bíblica, a amendoeira e a amêndoa desempenham um papel importante. São os raminhos de amendoeira que permitem a Jacob fazer o encantamento dos cordeiros que nascem pretos e dos cabritos manchados, para aumentar o seu rebanho, que nascera do de Labão, seu sogro, que apenas queria cordeiros brancos e cabritos de pele lisa. É também um presente de amêndoas, as melhores do país, que Jacob leva ao regente do Egipto (que é o seu filho José). Quando o cajado de Aarão floresce no santuário do deserto, confirmando assim a escolha divina do seu destino como sacerdote, as flores que nascem são amêndoas. E para terminar com esta simbologia tão própria da amêndoa no Antigo Testamento: o profeta Jeremias faz um trocadilho com a palavra amêndoeira em hebraico, que significa também o Vigilante, o Guardião, o que fica de vigília, pois as suas flores são as primeiras que surgem a anunciar a Primavera. Tal como os cabelos brancos do envelhecimento, as flores da amendoeira " anunciam que o homem se dirige para a casa da sua eternidade" (André-Marie Gerard,Dictionnaire de la Bible, ed. Robert Laffont). 

É doloroso este poema de Celan, pois a Revelação que a ele foi dado contemplar é a de um Rei centrado em si mesmo, ausente, que desviou o olhar em vez de dar atenção ao mundo e aos seres que criou e no caminho para a Casa da sua Eternidade descobre que está vazia.








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