Monday, June 10, 2013

Evocando H.H.

Na folha de rosto de OFÍCIO CANTANTE (1953-1963) edição da antiga Portugália Editora, que acarinhava os jovens da época, tanto como os consagrados, encontro e deixo para deleite dos leitores, um poema que não pretende ser mais do que isso: escrito ali, à mão, em letra generosa bem desenhada, quase contida, de tinta permanente, para ser lido antes de se começar o livro propriamente dito.
É um sinal, para os amigos, mais do que para os admiradores futuros... amigos há poucos, admiradores há e haverá sempre tantos...
Passo a transcrever:
Mexo a boca, mexo os dedos, mexo
a ideia da experiência.
Não mexo no arrependimento
pois que o corpo é interno e externo
do seu corpo.
Não tenho inocência, mas o dom
de toda uma inocência.
E lentidão ou harmonia.
Poesia sem perdão ou esquecimento.
Idade de poesia.
(Herberto Helder)
Não se esconde aqui o ser e não ser de um Fernando Pessoa, na plena consciência do que se é não é: " o corpo é interno e externo do seu corpo".Podia este verso ser remetido para o de Pessoa, em frente ao rio, e que Eduardo Lourenço tanto nos deu a ler, quando voltou a Portugal em 1974-1975, para um Seminário da Universidade Nova: " o que é ser rio e correr / o que é está-lo eu a ver"...(in ALÉM_DEUS). Aqui se reflectia sobre a questão do despertar da consciência de si, através da contemplação do mundo (era o rio, mas podia ser "o outro", o outro nele, o do permanente que se revelava do lado de lá das coisas e dos seres, e do eu em si mesmo.
Mas é mais interessante e mais verdadeiro, neste caso deste poema de H.H. ir recuperar a epígrafe de HENRI MICHAUX que ele escolhe, não por acaso.
Quem lia Michaux, naquele tempo? Ninguém, a não ser ele, H.H., por força das suas viagens, de onde trazia leitura e inspiração modificadora da sua relação com a experiência poética, eu, por força da minha cultura, devida em grande parte à via familiar em Paris, numa família onde a edição de PAROLES, de Prévert foi a iniciadora de um novo e duradouro culto da sua obra, pela qual me apaixonei, como pela de Henri Michaux, que me orientou para os estudos do hermetismo e da alquimia, através de um seu amigo. Eram assim os criadores: generosos, distribuindo a alegria e a energia do seu saber e experiência criadora. Eis a epígrafe, que dirá muito sobre este poema de H.H. :
Je ne peux pas me reposer, ma vie est une
insomnie, je ne travaille pas, je ne dors pas, 
je fais de l'insomnie, tantôt mon âme est de-
bout sur mon corps couché, tantôt mon âme 
couchée sur mon corps debout, mais jamais 
il n'y a sommeil pour moi, ma colonne verté-
brale a sa veilleuse, impossible de l'éteindre.
Ne serait-ce pas la prudence qui me tient 
éveillé, car cherchant, cherchant, et cherchant,
c'est dans tout indifféremment que j'ai chance
de trouver ce que je cherche puisque ce que 
je cherche je ne le sais pas.
(Henri Michaux)
Neste anos, de 50 a 60 e um pouco mais - eu, pelo meu lado, seguindo o conselho de Michaux, estudei durante anos a fio os documentos herméticos e alquímicos, procurando, sem saber bem o quê, tal como eles, um fio revelador.
Mas eram eles, Michaux e Helder que na sua obra iam desfiando os fios do saber: Helder na firme ideia de que o corpo é interior e exterior e dessas duas realidades se devia dar testemunho, e Michaux, o insomníaco, buscando na pintura as formas que lhe assombravam as noites e os dias.
A COLHER NA BOCA, de H.H. editada na antiga Ática em 1961 faz a primeira recolha desta poesia do corpo, retomada em OFÍCIO CANTANTE:
 por aqui corre o sangue, um sangue feminino:
Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
o seu arbusto de sangue. Com ela 
encanterei a noite.
....
Cantar? Longamente cantar.
Uma mulher com quem beber e morrer.
....
Em cada mulher existe uma morte silenciosa.
( O AMOR EM VISITA)

Este prazer, esta busca constante do Feminino em Herberto Helder não se encontra em Michaux. Helder procura um corpo e alma gémeos do seu, que o alimentem, como nos antigos ritos da Deusa-Mãe. Ritos de que se pode morrer.
Michaux já estava do outro lado do Ser , masculino ou feminino, só muito no fim da vida se descobre (no Espólio) aquele jardim parisiense, oriental, onde cultivou uma paz que não vinha do corpo, talvez nem sequer da alma, mas de uma comum entrega e desistência da vida. Uma entrega perfeita...










5 comments:

Rita Roquette de Vasconcellos said...

Quando leio Yvette Centeno penso: - um dia quando for grande gostava de escrever assim...já sou grande e ainda estou a tentar!
obrigada
um grande abraço

Yvette Centeno said...

Querida Rita,
Já escreves assim e eu é que sinto que são as pessoas como tu, de grande sensibilidade e cultura que podem entender poetas ou artistas como Herberto Helder ou Henri Michaux...É para ti que escrevem ou desenham ou pintam...
Agradeço que me leias, sinto que valeu a pena este impulso!

ana said...

A citação de Fernando Pessoa -
" o que é ser rio e correr / o que é está-lo eu a ver"...(in ALÉM_DEUS)- foi a que escolhi para o meu blogue.
Em 1975 era pequena. A dimensão que lhe dei não foi tão profunda como a que descreve mas estava próxima.
O poema de Herberto Helder é belo.
Agradeço esta partilha que tomo sem pedir licença para a beber.

... o corpo externo e interno ou a ideia do corpo?
Boa tarde!

ana said...

Fiz uma referência à beleza que aqui encontrei. Está neste link. Espero que não se importe desta partilha.
http://sonhar1000.blogspot.pt/2013/06/herberto-helder-atraves-de-yvette.html
Cumprimentos.

Yvette Centeno said...

Cara Ana,
É um privilégio ser lida e ser útil, a quem ama a poesia, a literatura, a arte...obrigada, irei ler o seu blog.
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