De José Tolentino Mendonça a obra poética reunida, num livro que é ele mesmo um objecto poético precioso: pela dimensão, pelo design e ilustração da capa, a partir de um quadro de Lourdes Castro, um livro como um missal, exclamou Teresa Horta ao pegar nele. Cabe na mão, apetece levá-lo connosco e foi o que fizemos.
Comecei pelo princípio e lá encontro a influência maior que todos nós sofremos: Herberto Helder.
E fui continuando.
Acompanho a palavra discreta que fala das ruas da infância, das janelas por onde o mundo entra, enquanto as senhoras ( ainda foi assim no meu tempo, em casa da minha avó ) continuam bordando.
O que se bordava, naquele tempo? O próprio tempo: a espera, se as jovens ao redor ainda não tinham namorado; a melancolia ou o aborrecimento se a vida já as estivesse a consumir, a elas, a essas mulheres das casas com janelas, mas de cortinas quase sempre corridas (o sol estragava os móveis, mas havia pior: a vida estragava as vidas).
Nalguma poesia de Tolentino é manhã, sim, como ele diz,mas já é tarde.
Terá Deus faltado ao compromisso, ao desejado encontro?
Olhar sobre a cidade
...
anda atravessar os velhos pórticos
e depois fica
sem saber em que tempo
estamos
ou se teremos ainda
que morrer
anda, é manhã sim
mas já é tarde
e tu sabes
A interrogação, em Tolentino, bate no centro do poema, no fundo escuro onde a palavra tem origem.
Como Paul Celan, o poeta pede que lhe digam, para que ele possa dizer a si mesmo o que está mais oculto e lhe é mais inacessível na razão das coisas, do simples existir:
O olhar descoberto
Diz-me
....
se há um sentido oculto
no rodar das estações
Diz-me se
toda a imagem é engano
ou filha enjeitada
do fogo
Diz-me se é certo
que o tempo é um único olhar
prolongado nos dias
se a vida é o avesso da vida
e se há morte
A caminho do fim do livro, não me admiro de encontrar Lourdes Castro, a rainha da Sombra, tal como (no fulgôr oposto) encontrei Herberto Helder ao começar a leitura.Não por serem ambos ilhéus, ambos rochedos da Ilha da Madeira, cada qual com a sua história de fuga e reencontro; mas por ambos terem projectado, nos anos sessenta e setenta de um Portugal obscuro, a luz das suas obras, o ranger das portas que empurravam, ou o clamor dos gritos que abafavam.
Numa entrevista recente Lourdes dizia à realizadora do filme: tudo nasce da sombra, não é assim? Mostrava a raiz da planta que já estava a crescer.
E Era assim.
O mesmo com Tolentino, a noite abre os seus olhos, escolheu ele para título da sua poesia reunida.
Lourdes Castro, Rua da Olaria
....
A minha arte é uma espécie de pacto:
não distingo as áreas selvagens das cultivadas
e elas não distinguem a minha sombra
da minha luz
Se não fosse que ao tornar-se moda se tornou para mim cada vez mais difícil falar de alquimia, esta seria a conclusão melhor para o meu comentário, como parece ter sido a melhor conclusão para a obra de Tolentino: o pacto (eu diria o caminhar pelo obscuro) levou à imagem suprema da conjunção alquímica de opostos: luz e sombra, depois de percorrido o que há em nós de selvagem e de cultivado.
Poética de palavra discreta, de passos só aparentemente pequenos, de silêncios que se (nos) aprofundam, este não é um livro para qualquer um.
Só para quem ame a poesia no seu estado mais depurado e sublime. Sabemos, com Celan, que
tudo é menos, do
que é
tudo é mais.
8 comments:
Interessante a abordagem que você fez.
Parabéns pelo blog ;-)
Vou segui-lo.
Abçs
http://www.200anosdepois.com.br
Gostei muito do que li.
Da poesia e sobre alquimia não sei nada mas julgo compreender o que quer comunicar.
O destino não se pode atravessar...
Infelizmente, acho a poesia de jtm um subproduto da poesia de joão miguel fernandes jorge...
Conheço bem e desde sempre, a poesia de J.M.F.J.
Concordo em dizer que ele é um dos nossos melhores poetas. Mas não é o único...
E o que dizer de J.M.M.?
Aprecio muito esse tema e seguirei seu blog. Está de parabéns. Você poderia linkar o meu também?
Parabens pelo blogue. O conteudo é muito atractivo.
Literatura e arte são duas temáticas das quais tenho imenso interesse.
Cumprimentos
silenciosquefalam.blogspot.com
Bom texto. Aprecio o que li.
brotoliterario.blogspot.com
Parabéns pelos post... Veja nosso conto sequencial... "O Professor Marginal"
http://lucasnascimento.jimdo.com/2011/07/25/saltimbanco/
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