Monday, October 26, 2009

O PARAISO

Uma discussão recente em torno da Bíblia (Antigo Testamento) com algum impacto mediático mas inútil do ponto de vista de um verdadeiro esclarecimento - levou-me a procurar na minha biblioteca um livro que aqui recomendo.
É de agradável leitura, e é principalmente o livro de um conhecedor cujos argumentos são fundamentados e não fruto de um capricho momentâneo.
Refiro-me à obra de Jean Delumeau, UNE HISTOIRE DU PARADIS, ed. Fayard, 1992, de que talvez haja tradução portuguesa.
O autor começa por citar Marjorie Reeves, a grande estudiosa de Joachim de Flora, cujo pensamento marcou, desde a Idade Média, muitos dos sonhos de utopia de que se alimentou o ocidente. Cita-a para dizer isso mesmo "os sonhos dos homens constituem uma parte da sua história e explicam muitos dos seus actos". Continuando com um poeta que é do nosso tempo e será de todos os tempos, Henri Michaux ( já me ocupei dele nos meus blogs) o autor cita-o para dizer que "não somos um século de paraísos". O que o leva precisamente à questão que é nuclear no seu livro: estudar a história e testemunho dos nossos antepassados, para reconstituir na medida do possível o que terá sido o sonho dessa felicidade eterna prometida e tão depressa perdida.
Delumeau mantém-se no círculo do ocidente, fazendo dos séculos XIV-XVIII o seu território cronológico privilegiado. Mas começa, como não podia deixar de ser, pelas grandes tradições que vão de Moisés a Homero e a São Tomás de Aquino.
Não me quero alongar, o que proponho é esta leitura e a humildade de quem aborda os grandes temas civilizacionais que ainda hoje condicionam o nosso imaginário, na literatura como na arte, e os nossos comportamentos.
A imagem que escolhi representa, extraída de um missal do século XV, o Paraíso Terreal de que Adão e Eva são expulsos pelo Anjo. Do mesmo século temos um Livro de Horas (de Rouen) representando Adão e Eva no Paraíso Terreal. E várias outras representações poderiam ser escolhidas, sempre descrevendo um paraíso terreal, materializado com o primeiro par, com os animais primeiros da mesma criação,etc.
Assim se constitui de algum modo a imagem de um espaço ideal que terá existido e que talvez um dia possa vir a ser redescoberto. Espaço caracterizado por uma abundância feliz, de todos os pontos de vista, materiais e espirituais. Primeiro mito fundador.
Com a expulsão outro mito irá ser constituído: opondo-se a uma eternidade primeira, uma efemeridade, uma mortalidade garantida também de vários pontos de vista, materiais e espirituais. Todos os bens, a começar pelo bem da vida, se tornaram perecíveis. Assim se define a realidade da condição humana, agora mais distante da divindade criadora.
O Jardim terá de ser cuidado, a horta semeada e regada, os animais guardados, o corpo da mulher poderá dar à luz o seu primeiro par: dois filhos, cada um a seu modo servindo o deus seu protector. Porque este deus não está longe, observa e acompanha.
Um dos filhos, pastor cuidadoso, figura o tempo de uma civilização agrária, que pede sacrifícios animais, neste caso, mas noutros serão mesmo sacrifícios humanos; o outro filho é fratricida, ou melhor, evoca ainda o tempo do sacrifício humano que garante mais prosperidade, e ao fugir de um crime que aquele deus já parece abominar, transforma-se no primeiro fundador de cidades.
Surge assim a cidade como espaço de oposição ao campo, e muito em especial aqui ao paraíso terreal ( que tinha sido um Jardim).
Na cidade a humanidade evolui, cresce, socializa-se, e o comportamento dos homens passa a ser avaliado por uma dimensão ética antes menos sublinhada. Antes o grande valor era a obediência, agora será a consciência moral.
A cidade deve ser uma cidade justa, como diz Platão, criando na REPÚBLICA a primeira grande utopia social.
Para um leitor moderno, a CIDADE E AS SERRAS, de Eça de Queiroz, poderá ser uma releitura também ela carregada de sentido, como estas que fazemos da Bíblia. O que encontramos em Eça é a visão pessoal, moderna, laicizada, dos mitos da nossa memória colectiva.

5 comments:

king lenda said...

http://verdadesdanossaterra.blogspot.com/

Henrique Chaudon said...

Amiga Yvette:
Que bom que está de volta!
Abraço do Henrique.

Sir G said...

My Dear Y
i, too, want to say the same; and also that i have found "city and mountains" in english and plan to read it, along with everything else by eca (about 15 of his books have been englished) when i return in the spring: there is a beautiful cafe in front of my house, in the park just next to where your friend used to live, with deep shade of tropical trees and views of mar de prato which is perfect for reading and thinking, and that is where i will be reading him in april
G

Yvette Centeno said...
This comment has been removed by the author.
Yvette Centeno said...

Dear G.
You will love the book, the city is Paris, and the mountains are those around his wife's family farm, in the beautiful Douro!