Monday, February 09, 2009

Antonio Brasileiro


Henrique Chaudon, poeta amigo, deu-me a conhecer este poeta: Antonio Brasileiro. 
Da sua Antologia Poética escolhi alguns textos que podem ajudar a ver/ler o seu percurso e a sua evolução  no caminhar da escrita.
Esta antologia cobre os anos 1968-1996, talvez esteja na hora de ver outra, igualmente interessante e completa.
Acompanhamos mal, entre nós e por culpa nossa, o percurso dos poetas brasileiros. Já foi Henrique Chaudon quem antes me "apresentou" à poesia de Jayro, poeta tão camoniano e ao mesmo tempo tão moderno que a sua leitura me comoveu profundamente. Tem a nossa melancolia, e penso como é possível, a não ser porque a linguagem poética não tem fronteiras e a dimensão universal de um poeta se afirma em todo o lado, por uma cultura interiorizada pelo estudo, pela leitura, pelo saber, enfim, pelo gosto de ler e de escrever. 
Em Jayro, sem perda da originalidade própria, do seu cunho pessoalíssimo, reencontro Camões, e algo como que da melancolia do fado, que a voz de Amália espalhou por todo o mundo. 
E o mesmo me acontece agora, com a poesia não menos expressiva e bela, de Antonio Brasileiro.
Da selecção mais recente, 1988-1996, escolhi Cantar da Amiga, que nos traz tanto da nossa lírica medieval à memória:

Um pouco de mim está em teu olhar, amiga.
Bem sabes que é assim.
Gosto de pensar que sabes que é assim:
em teu olhar reflecte-se o que sou,
o que em mim te quer perdidamente.

Um pouco de mim é teu olhar, amiga.
É mesmo tudo assim, pouco sabemos
desses imensos rios em nosso peito.
Pouco sabemos, quase nada mesmo,
dos rios que escuros correm em nosso peito.

O discurso poético aborda discretamente o escuro da alma, "os escuros rios que correm em nosso peito". Não é preciso dizer mais, sobre a saudade, a inquietação que unirá sempre amigo e amiga, e que já Dom Dinis, na lírica da amigo nos fizera antever. 

Cálice
A vida não tem roteiros,
só velas que nos acenam
 do mar.

Escuta, amiga,
o desfiar das horas:
elas te dirão é tua
é tua a vida.

Toma-a (como se toma
 um cálice de rosas)
na mão.

Ah, esta elegância, as rosas na mão, como as rosas na fronte coroada de um Ricardo Reis, ou as rosas da Rilke, cuja picada, reza a história, o haveriam de matar. 
Em Soneto do Amor Profano encontramos então de verdade o eco de Camões, mas não é por isso que o poema é tão belo. A sua beleza provém de um eco mais profundo, da lucidez que se quer distanciada, do poeta:" eis que, perdidamente já pressinto/ e quanto e quanto- que em amor, perdidos / todos os lances, não há como obtê-lo / de outro modo que não por sacrifícios / e eis que este, pois, gratuita dádiva, / me chega às mãos de um modo tão profano,/ que quase certo estou de que, se o tenho, / já não o tenho por justo e dadivoso, / mas por amor que é fruto só de engano.../E não me engana um amor quando enganoso".
 
Continuando nesta viagem, Tudo o que Somos é a manifestação, ou o lamento, do pouco que somos, do "apenas":
....
Viver é um sonho,
não esqueçamos.

Viver é a sombra,
o assombro, o apenas.

/ tão frágeis somos !
Frágeis e imensos.

Sinto-me tocada tocada pelos ecos de Camões e Pessoa, considerando ser uma honra estas memórias que outros conservem da nossa tradição poética. Fazendo jus ao que o poeta nos diz, noutro poema: " Debruço-me sobre poemas/ para os engravidar de eus" (Sobre as Pedras do Caminho).
Caminhando ao contrário, como esta antologia foi organizada, vemos na década de sessenta a produção de uma poética surrealista, de que saliento o Estudo 91 :

Os deuses estão sentados e cochicham.
O olho verde da cadela dorme.
E vela.

(E chove; e um cogumelo
cresce sobre mim.)

Minha mãe, cadê minha égua?

(E meu cavalo era a égua
e o general se molhou na chuva imensa.)

Os deuses riem
e suas bundas fofas estremecem.
E o olho da cadela é verde como um sapo.

Eu penso logo nas minhas próprias leituras e paixões desse tempo, os felizes anos sessenta, carregados de esperança e ilusões:Boris Vian, Jacques Prévert, Chagall, Michaux, e tantos outros, para quem o livre imaginário da arte poderia ser a marca de uma liberdade maior, que chegaria.

Estudo 204
Vejo o vento que sopra nas árvores
e estou aqui.
Há uma sensação de paz antiga
no vento que sopra nas árvores.

(Vou plantar esperanças no quintal
e decidir o que farei com a vida -
com esta e com a outra.)

Estou aqui e o mundo está aqui.
Olho as folhas movendo-se nas árvores
e alguma coisa silenciando no coração.

Com António Brasileiro vamos aos clássicos, vamos aos modernos e aos modernistas...viajamos pelas palavras dentro, recuperando as nossas próprias memórias. Goethe, Caeiro, em poemas sobejamente conhecidos, e agora Antonio Brasileiro, conversando com eles enquanto conversa consigo mesmo, comnosco, e decide de sua vida: esta, magnífica, de poeta. Quanto à outra... os deuses de bundas fofas lhe perdoarão qualquer impertinência ! 






 

5 comments:

Henrique Chaudon said...

Amiga Yvette:
Vou repassar esta postagem ao Jayro, imediatamente.
Grande abraço.

ma grande folle de soeur said...

Conheci o seu blogue através do David Rodrigues, (haikuportugal), tenho vindo até aqui regularmente com prazer.. Um abraço.

Felipe said...

Se me permite um comentário de um desconhecido:

1) Achei que o poema "Cantar de amiga" lembra parcialmente os cantares trovadorescos e a poesia camoniana; nas cantigas medievais noto menos do que se convencionou chamar 'Romantismo' e mais formas poéticas convencionais compartilhadas pela tradição.

2) O poema "Cálice" é deveras atado ao Romantismo para ser comparado com Camões

3) Achei pertinente a comparação com Pessoa no que concerne ao poema "Tudo o que somos", pela tendência do poeta português em cunhar uma poética que desse conta do 'mundo'e ao mesmo tempo da fragilidade do indivíduo

4) E, para finalizar, achei fantástico o discurso que você construiu em torno do poeta Antonio Brasileiro, gradativamente legitimando-o como à altura dos grandes autores do passado

Ass.: Felipe

(Se quiser visitar meu blog www.felipebio.blogspot.com : onde dou vazão aos escuros rios que correm em meu peito)

Karla said...

Muito obrigada por me fazer conhecer Antonio Brasileiro!!São essas descobertas que me fazem acreditar no valor de um blog...
Um abraço!!

Yvette Centeno said...

Karla,
Se gosta de poesia procure o blog de Henrique Chaudon, poeta, é ele que me vai orientando nestas leituras.