Saturday, March 22, 2025

Tempos

 TEMPOS

O que faria agora nesta idade

se voltasse a amar apaixonada

como acontecia aos vinte anos?

Certamente não faria nada

pois já tanta coisa tinha feito

outrora e o tempo agora tinha de ser

outro e a vida vivida impõe

os seus limites e é isso que está certo...

pediria só talvez estar mais perto

um pouco mais chegada sentindo mais a pele

o seu calor e talvez a mão que se dá

 num último gesto ainda com amor 

à espera de ir ficando ali ao lado...





Thursday, March 20, 2025

 A OBEDIENTE

Era obediente.

Diziam são horas vamos deitar.

E ela levantava-se da cadeira

onde estava sentada e ia para a cama.

Quando a sua Cuidadora

na cama ao lado dormia a sono solto

 ela saía do quarto

e descalça começava os seus longos

passeios pela casa, antiga,

de muitos corredores

que davam seguimento

à casa, aos quartos, às varandas

e a deixavam a ela finalmente respirar

sem que ninguém fosse atrás.

Parava na cozinha, comia qualquer coisa

e hesitava em ficar mais um pouco

já sem fome ou voltar. Não adormecia

antes das seis da manhã

esse horário por qualquer razão

era agora a rotina. Seria por ela ter nascido

muito perto dessa hora? Não sabia dizer

e depressa esquecia o que estava a pensar.

Dava mais umas voltas, procurava a chave de casa

 com que a tinham fechado, não fosse para a rua

 perder-se, cair ou magoar-se, voltava para a cama,

a Cuidadora dormindo sem acordar.

Ainda pensava: julgam que não encontro a chave

mas encontro, um dia abrirei esta porta fechada

irei pela rua fora, irei pela rua fora até onde o caminho

me levar.

19 de Março, 2025

 

 

Thursday, March 13, 2025

A NOSSA LíNGUA

 A Nossa Língua

 Já foi directa

de narrativa simples e cuidada

com o velho Fernão Lopes,

já foi acutilante com Vieira

já foi a nossa Pátria com Pessoa

hoje é uma língua empobrecida

vocabulário muito reduzido

que não transporta por completo

a possível ideia, se é que existe,

língua envergonhada, e de tal modo

hesitante e deformada que melhor ficara

escondida no seu canto, alquebrada,

 de tanto mau-trato sofrido

faltam-lhe muitas palavras,

e as que sobram disseram,

mas já não dizem nada.

 

13 de Março, 2025

Wednesday, March 12, 2025

 Para o Rui Zink

(pequena canção de embalar)

São muitos e têm fome.

Vão à caça para comer.

Trazem muitos corações

já cortados ao meio

prontos a cozinhar

na fogueira que os espera

mulheres sentadas à roda

entoam cantos alegres

corações são para todos

por isso já estão partidos

ninguém ali terá fome

nem medo para lutar

por uma metade maior

as metades são iguais

na cerimónia descrita,

 já de há muito ultrapassado

o tempo dos canibais...

Uma velhinha ainda embala

ao colo um dos seus netinhos

"papã papão vai-te embora

não comas o meu menino "

Yvette Centeno

12 de Março, 2025

 

 

 

Sunday, March 09, 2025

Bob WILSON e Fernando PESSOA SINCE I'VE BEEN ME

 Vejo logo na folha do programa o nome de Maria de Medeiros. Alegro-me, para logo depois, quando o espectáculo começa e à medida que avança, lamentar que Wilson não tenha procurado mais a sua inteligência, cultura pessoana e sensibilidade artística, para o ajudar na construção desta peça que fica ente a definição do vaudeville francês, do cabaret alemão, ainda da Berlin expressionista, e o que não chega a acontecer  mas podia, os quadros soltos da revista à portuguesa. Cada momento definido por uma grande explosão ( alusão à guerra que corre, ou que ocorreu,  no tempo do Modernismo?) Não interessa responder.

Wilson está nesta obra para lá das definições. Quando muito podíamos dizer é uma apresentação post-post modernista, servida pelo nome de um dos nossos maiores poetas, a seguir a Camões.

Então Pessoa: para nos localizar, mas como não terá continuação no pensamento nem na reflexão que implica, uma citação em inglês atribuída ao poeta na hora da morte, ou perto disso: uma frase de leit-motiv:

I know not what tomorrow will bring, que se encontra num dos papelinhos soltos da Arca.

Pois o amanhã de Pessoa foi sempre - terá sido sempre - uma surpresa, trazida pela boca do heterónimo Mestre Alberto Caeiro (o mais Pessoa de todos, talvez) Ricardo Reis, Álvaro de Campos, com a célebre frase recuperada aqui de que todas as cartas de amor são ridículas, depois de uma rápida alusão à Ophelinha por meio de uma carta erguida ao alto no rosto de um actor e finalmente  Bernardo Soares, o genial autor  do LIVRO do DESASSOSSEGO, conceito-chave que muito pedia desenvolvimento (no pensamento e na obra de cariz hermético e filosófico) e de que existe uma excelente tradução inglesa, que podia ter sido mais usada, em vez do que ali vai acontecendo,  a escolha aleatória de frases soltas do google que ilustram não o Autor, mas a experiência  estética e sempre colorida do Encenador, na sua mão livre de segundo criador naquele contexto.

Sim, sabemos que é isso o post - modernismo. Não há uma escolha necessária nem uma apresentação de continuidade e coerência obrigatórias, que imponham outra forma de leitura. As formas serão livres, como aqui se vê com Bob Wilson, e desligadas se tal apetecer, do conteúdo previsto, ou mesmo quase imposto pelo primeiro criador, neste caso Pessoa.

O título da peça já nos dá um sinal - "since I've been me " - desde que fui eu.

Melhor seria adiantar logo (mas sou eu, mais racionalista e menos post-moderna) desde que deixei de ser. 

Porque é isso que acontece: com o passar do tempo, e a evolução dos modelos de criação e análise (o século de Pessoa é feito de um resto ainda do século 19 e de um assumido modernista século 20 ), divergem muito do actual século 21 em que estamos e já a caminho do 22, com a IA.

Quanto mais se lê e relê a obra de Pessoa mais se descobre e mais apetece falar sobre ela, que é toda pensamento e não literatura para compêndios escolares. Pensamento agilizado por leituras de clássicos, os gregos até aos renascentistas - veja-se o que nos diz sobre um Shakespeare Rosacruz, por filósofos herméticos, como um Thomas Vaughan alquimista, irmão do outro Vaughan, poeta - e sobre as origens da Maçonaria até ao seu sonho de definir um sistema que ergueria um novo Templo de sabedoria. A relação com Vieira e a História do Futuro, tudo leituras para a sua formação e pensamento e para o nosso, é claro, ajudando a compreender melhor o que ele foi e será, nunca deixando de ser, afinal o que é. Um criador absoluto? Um iniciador pouco reconhecido, a não ser pelo Mago Crowley, que o visitou em Lisboa, deixando outro conceito fundador, o da AURORA CONSURGENS, com origem num antigo tratado atribuído a São Tomás de Aquino no seu leito de morte. A Golden Dawn constituiu-se como Ordem alquímico-mágica secreta, a que os filiados nela viriam a obter, pelo conhecimento das várias obras de Crowley, um estatuto mental superior. Enfim.

A peça não deixa de merecer ser vista e apreciada, quando se gosta, como eu, de Bob Wilson e seu imaginário libérrimo (como ele diz numa entrevista sobre Einstein on the Beach com que começa a carreira num teatro de Brooklyn, reparem não está lá nenhum Einstein...), um título é só uma frase, não obriga a nada, e Bob Wilson não se sente de facto obrigado a nada a não ser à sua imaginação criadora que algum outro de repente libertou. 


  


 


 

Wednesday, March 05, 2025

 ENTRE AMIGOS

à Isabel Almasqué, à Cristina Gonçalves,

à Minnie Freudenthal e ao Manuel do Rosário

e last, but not least, ao Tozé Barros Veloso

 Se eu fosse chocolate derretia

com o calor carinhoso de tanto amigo

à minha volta na sala de janelas luminosas:

Um piano de cauda e pintura nas paredes

libertando a emoção...

escorria pela mesa abaixo

se um amigo não corresse

trazendo um prato, uma chávena

e ainda uma colher

para me recolher
antes de chegar ao chão.

Assim me punham na mesa,

ficando na chávena à espera

da minha forma primeira.

É isso que amigos fazem:

protegem a forma uns dos outros

com os gestos mais naturais

por vezes nunca esperados

um coração derretido de amizade

verdadeira.


5 de Março, 2025

 


Friday, February 28, 2025

 AS PALAVRAS

Antigamente eram muitas

e eu podia brincar com elas

como as crianças brincam:

frio, frio, morno, quente!

Estão aqui.

E agarrava a palavra escondida

e ou gritava para os outros saberem

ou escrevia.

 Parecia tão fácil a brincadeira.

Agora nem escondo, nem procuro,

aprendi com o tempo

que não é da palavra que se trata

mas desse estranho sentimento

que não larga enquanto o sentido

não se encontra.

O sentido, escondido na palavra

que se embrulha na boca

e que o tempo desgasta

até que se torna impossível

de dizer.

Brincadeiras antigas já passadas

não ajudam ao sentido que permanece

oculto, inacessível, dentro das bocas

fechadas.

É o tempo que as fecha

é o tempo impiedoso

que devagar obriga a um total silêncio,

já se acabou há muito a hora de brincar