As Parcas
São as deusas que não vemos.
Todos os dias cortam um fio
delicado como um cabelo
que não volta a crescer
e quando cortam o último
já não há nada a fazer.
15 de Setembro, 2025
As Parcas
São as deusas que não vemos.
Todos os dias cortam um fio
delicado como um cabelo
que não volta a crescer
e quando cortam o último
já não há nada a fazer.
15 de Setembro, 2025
Dois livros que me chegam no mesmo dia, um o oposto do outro:
José Luís Ferreira, A Noite Respira-me por Dentro
Sérgio Ninguém, atrofia perene
Conheço a poesia de ambos, alguma coisa já escrevi por aqui, ambos amam a literatura e em especial a poesia que demoram a escrever, sem pressa, porque a palavra poética merece ser procurada com uma lentidão amorosa que a honre no momento da escrita.
Jung teria aqui matéria e substância para a sua reflexão sobre o que são, na alquimia, a conjunção dos opostos e de que modo se manifestam na psique, progredindo ou regredindo (ou mesmo por vezes afundando-se num caos de matéria feita de negro).
José Luís Ferreira, nos versos do seu livro, oferece um Cântico de paixão e amor intensos e genuínos a que deseja dar voz, não os deixando retidos na noite da sua alma. Ama e diz que ama, e é essa respiração do amor e da voz que o proclama que nos remete para algo de perene, sublime e nos envolve, pessoa amada e leitores que ali revivem algo do Cântico dos Cânticos que a lenda atribui a Salomão.
Um amor entregue, desprotegido, que corre para uma felicidade aguardada. Mas não se perde no caminho, sublima-se no seu avanço, no seu apelo, numa fidelidade que não sofre alteração ao longo de uma vida que ali é expressa com tanta intensidade que espanta. Poesia moderna, mas não de imitação fácil, tem voz própria e sentimento que a salva da escuridão onde poderia ter ficado retida, perdida.
Luís vive bem e de modo completo esse amor declarado.Tinha chegado o momento - era retribuição, sem dúvida, porque ao darmos receberemos em troca mais do que demos. Não se trata de interesse, de troca sem sentido, trata-se de uma Conjunção que em breve terá lugar, se não o teve já.
Bem diferente é o livro de Sérgio.
Carrega um peso que será quase maior do que a morte - numa nigredo de que não parece querer sair, sabendo embora que esta é apenas uma fase inicial do seu processo alquímico da transformação. Mas terá de encontrar a força de a atravessar, passar para o outro lado do rio da alma, que nos livros anteriores, Pedra e Pedra 2, podemos ler e admirar no seu domínio de uma escrita profundamente original.
Sérgio regressou à escrita filosófica e poética, e ainda bem. Contraria pela palavra a amargura que sente com o mundo à sua volta:
Vives (n)uma apatia neurasténica sem fim,
seria necessário catalizar a energia de muitos
para que te pudesses movimentar.
Tal como um calhau sem vontade,
volumoso e inerte,
só o pensamento corre
íngreme
ao comprido.
Esta é a sua pedra de Sisifo, que ele terá ainda de levar as vezes que for necessário até chegar ao fim do seu caminho, que adiante o espera, no meio das Pedras já vividas.
A alegria do primeiro livro, de José Luís Ferreira, expande os sentidos, alarga a alma, Jung diria que o poeta vive uma amplificatio fase do percurso alquímico a caminho de uma sublimação consumada.
Escolhi reunir aqui o livro do Sérgio Ninguém, cujo regresso me deixa tão feliz, por voltar à poesia, chegar junto com o outro, o que foi uma sincronia e não um mero acaso. Não há acasos nestas coisas da alma quando é visível o seu contraponto, uma em fase de ampliação e outra de amachucamento e redução. Duas fases de um mesmo caminho que será percorrido em fases diferentes mas que se complementam, como a via alquímica da psique desde sempre nos ensina.
Quem não atravessa a nigredo não vem a saber por completo o que o seu inconsciente guarda, e espera que seja revelado.
Sérgio está a sair de uma depressão, de um desalento consigo e com o mundo que a luz deAurora de José lhe virá revelar. Jung na sua autobiografia passou pelo mesmo. Sigamos as suas lições.
Depois da filha, a mãe.
A mesma marca, de criatividade que obriga ao pensamento. Numa, pintora, a origem da imagem; noutra, filósofa, a origem da palavra.
O título é sedutor: palavras aladas. Surgem com asas ou é o pensamento fundador que as faz voar, com asas que lhe são colocadas?
São aladas porque fluem entre as duas pessoas que ali se encontram no mesmo espaço, partilhando interrogações e respostas ao modo de uma entrevista-conversa em que parcialmente se afloram questões quase de biografia, não romanceadas mas igualmente sugestivas do que poderia facilmente ser também romanceado no imaginário da pessoa entrevistada. Sempre que falamos alguma coisa vai nas palavras que voam, saídas do ninho, do conforto do nosso pensamento mais secreto e silencioso.
É tão mais fácil o silêncio do que o esforço da palavra: onde está, onde se esconde e é preciso buscá-la.
A entrevistadora tem cultura e preparação para fazer as perguntas, ora da Vida, ora da Obra, um percurso já vasto que podemos acompanhar desde Platão, o preferido, passando por muitos outros criadores, desde os caçadores que desenharam o seu mundo nas cavernas pré-históricas, até aos mais revolucionários modernistas. É vasta a cultura que nesta entrevista nos convoca para a filosofia, sim, mas muito para o pensamento literário e artístico, tanto quanto o musical.
Maria Filomena Molder ao mesmo tempo seduz e intriga. Leu tanto? Leu tudo? A mim não me causa espanto, também eu comecei a ler em criança, também eu me interessei desde cedo pela arte e cultura, e no Liceu devo ter sido a única que leu toda a obra de Platão sem achar que era um aborrecimento, tendo de ler apenas o Fédon.
Adiante vou de novo encontrar em Maria Filomena o meu mais profundo e inspirado criador : Goethe, sobre cujo Fausto alquímico me doutorei.
Afinidades, que me fazem ler Filomena Molder com redobrado prazer que não escondo. O que ela vai referindo nas respostas que dá a Cristina Robalo, sua entrevistadora, numa conversa que tem um nível de preparação já muito raro, levam-me de volta ao meu tempode estudo e investigação, que durou anos. Assim quando surge Goethe, e a citação que Filomena fez de Dichtung und Wahrheit, já deve estar traduzida esta obra que ele já avançado em idade foi ditando ao seu secretário, lembrei-me de como me foi útil, quando a li, a lista dos seus autores herméticos, alquímicos, teosóficos (Boehme o de maior peso, com De Natura Rerum, ou o tão lido posteriormente Aurora Consurgens) que vinham confirmar o que eu ia escrevendo e poucos naquele meu tempo achavam que era importante e carregava sentido de transformação. A cultura que Goethe adquiriu era-lhe levada - ele estava doente em casa - e uma sua amiga pietista levava-lhe esses tratados de sábios de outra sabedoria, espiritualista, cultivada desde o século XVII nos colégios de piedade espalhados por contraponto ao racionalismo cartesiano em pequenas comunidades que se dedicavam à leitura e à meditação de textos místicos que depois iam formando uma cultura própria, de bastante influência, como se pode ver em Goethe. Era Susana de Klettenberg, essa amiga fiel.
Para um criador que buscava o Princípio, a Origem no caso dos estudos científicos a Ur-pflanze, a primeira de todas as plantas de que as outras iriam evoluindo, os antigos tratados foram leitura preciosa. Porque neles, a transformação, como tema central, era a METAMORFOSE e tudo na procura alquímica se prendia com a metamorfose : da matéria em espírito, da pedra informe em ouro puro, a mutação sublime.
Sou de um tempo em que não havia grandes apoios, mas grandes dúvidas sobre o trabalho de investigação das mulheres que deviam era ter ficado em casa, a tomar conta de marido e filhos. O tempo de Filomena já foi mais favorável, mas isso em nada diminui a sua inteligência, amor da arte e da cultura e a descoberta do enorme prazer da palavra, que recolhia na rede do seu pensamento, se lhe passasse à frente.
Recuperando o Hino à Memória, Mnemosyne, que Heidegger cita nas suas últimas lições (depois de perdoado e reintegrado na sua Universidade), Maria Filomena neste belo texto contraria o que o filósofo alemão dizia nos primeiros versos: que éramos sinais que tinham perdido o sentido. Ela devolve o sentido aos sinais que lhe são dados a ver.
Não é para qualquer um...
Foi uma exposição, agora é um belíssimo catálogo-livro.
Paramos em cada página, meditando sobre a imagem que nos é oferecida. Sombras e formas, um fundo negro de que se destacam, recortadas da luz macia que o negro emana e quase pede que o toquem, que o acariciem, que lhe abracem a forma.
Uma estrela não cai, não se deixa cair, só assim por acaso. Vem acrescentar matéria e luz à sombra que ali por ela esperava. Temos de compreender. O que estava a faltar na alma do criador? O gesto do princípio, porque tudo tem um princípio? Ou depois desse gesto primordial o seu oposto, o apagamento que se esboça nas sombras? E que vai demorar até que adquira uma outra claridade, que permitirá às formas, ainda que deformadas, a materialidade indispensável?
Assim ficamos, entre espírito, o brilho antigo do cosmos, e matéria, a que nos é dada de um modo tão subtil e discreto que mal se deixa adivinhar.
O céu tem os seus guardas, Aldebaran é um deles. Nem a todos os que desejam é permitida a passagem. Mas a mão do criador, tantas vezes implacável, pode fazer e desfazer os segredos e os caminhos. Aldebaran na verdade nunca será a estrela derrotada, tem companheiras que se juntam a ela, a estrela guardiã, e a seguram no momento da Queda.
Surge então de repente, no meio da noite escura, como nos contos de fadas, uma luz que tem voz e canta. No canto esboçam-se formas, que vão adquirindo vida. E ergue-se então e para sempre quem tenha caído por terra.
Com quem falarei hoje
sem nenhum livro para ler?
É com os livros que falo
tenho muito para dizer
e há tanto tempo que calo...
Com quem falaria hoje
se fosse um dia qualquer?
Um dos fiéis mais antigo,
ou um recente, mandado por um amigo?
só leio escrita escorreita
palavras nuas, directas
sem servir espaços vazios
que o poeta quer encher...
Enche os espaços vazios
são os que tem na cabeça
de frases soltas perdidas
ouvidas aqui e além
e ele não consegue juntar
a mão não ajuda aqui
e a cabeça ainda menos
é uma cabeça careca
de boneco de brincar
o meu castigo é enorme
de não ter com quem falar
A PAZ de GAZA
- Minha mãe, não vais ao pão?
- Por ti iria a correr mas se morro no caminho
quem to dará a comer?
- Algum soldado da Paz me dará o pão com sangue
antes de te ver morrer...
- E se o soldado é da Guerra e fica para o comer?
- O sangue tem morte dentro, a tua, com o teu sangue,
que eu um dia vingarei...
8 de Agosto, 2025
O COVEIRO
Não é velho
como se julgaria
é um jovem escanzelado
preso numa terra funda
como se já enterrado.
Mas vive ainda
tem uma pá na mão
e escava
escava
o que sabe ser
a sua cova futura
de antemão antecipada
enquanto se aguenta de pé
cumpre a missão que lhe deram:
escava, enquanto fizeres assim
não mataremos o irmão
que vamos incinerar
negando as ordens do deus
que seja deitado em terra,
ou nunca chegara ao céu
que o mantinha esperançado.
E ele então já exausto, dão-lhe água suja
a beber, escava e escava de novo
olha a cova já aberta
tem a forma do meu corpo, diz,
filmem bem o que nos fazem
deus os castigará
esta cova é a do mundo
viverão filhos e netos
neste paraíso imundo
5 de Agosto, 2025