Friday, June 20, 2025

Christian Bobin, editado pela ed. BARCO BÊBADO, trad. de Teresa Noronha.

 O título é O MURMÚRIO.

Seduz logo à primeira, pois que pode dizer de novo esse murmúrio que nos prenda, nos atraia para uma leitura seguida, e há muito tempo desejada, quando sentimos que os nossos dias pedem mais alimento?

Esta obra de Bobin dá-nos esse alimento: primeiro conduz-nos por um SOKOLOV magistral, pianista que também eu prefiro, quando aparece no Mezzo fico horas a ouvir, depois segue levemente por Chopin, ou uma alusão a Bach, o sempre inspirado Mestre, e pelo meio do que diz da música murmura palavras carregadas de sentido, e percebemos que era delas que estávamos a precisar para dar conteúdo às horas que estavam, sem esperança, aborrecidas, à nossa frente num dia que se adivinhava vazio, como tantos outros.

Bobin veio preencher esse vazio, quando eu menos esperava. Acontecem-me de vez em quando estas surpresas felizes. Não consigo ler obras que sejam lamechas, ou simplesmente bacocas, achando que isso é humor, obras em que tudo acaba bem ou acaba mal e a mim não dizem nada. Acabo às primeiras páginas. Agora, por coincidência que acho quase milagrosa, estou com os murmúrios de Bobin na mão, e tanto do que ele vai dizendo parece ser dito para mim, que não conseguia escrever. 

Quem é Christian Bobin? Um poeta francês, nascido em 1951 e falecido em 2022, cedo demais para o tanto que nos deu entretanto nos seus curtos textos, fragmentos de reflexões que lhe ocorriam, subtis, lembrando às vezes Novalis, mas mais leves, como se pensar pesado fosse desnecessário, as ideias subtis chegariam a quem as entendesse.

Quando lhe perguntaram com que finalidade a escrita, a que se dedicava, no murmúrio tão discreto, servia, ele diz que o murmúrio amplificava o murmúrio.

- Com que finalidade? 

- Arrancar a linguagem ao inferno das opiniões.

Ah, como é certeira e actual  esta resposta!

Adiante dirá mais uma vez algo que eu sinto que poderia ter dito:

"Não me perguntem o que faço, mas antes a quem peço socorro."

E é um livro antigo que o ajuda, como a mim é sempre a um livro dos que li outrora que vou encontrando o que preciso. Preciso de pensamento, de sentido, algures no caminho perdi o que devia ser o sentido da vida e os dias passam, rápidos e sei que me levarão sem resposta para a interrogação que me consome.

Esqueço os males do mundo, que a ele consomem doente, no hospital (não há aqui algo de Rilke?) ouvindo como ele faz, os acordes do amado e sempre citado Sokolov:

"As mãos de Sokolov sobre o teclado têm mil vidas. Uma tem por missão procurar os baixos, o martelar dos trilhos da terrra, enquanto a outra se ocupa da colheita das notas mais jovens, das mais tenras violetas. Sabes que se pode morrer de desgosto quando surgem as violetas selvagens? "

Mas segue com a consolação que salva: " Mesmo ferida a alma das coisas oferece-se para nos salvar. Talvez as sonatas de Haydn. Sim, talvez essas notas que rolam como grãos de pó entre os dedos russos" (será Solokov de novo?) ressaltem sobre o chão, batam nas janelas, talvez a tentativa de fuga dessas notas me ensine alguma coisa sobre a côr amarela dessas raparigas das ruas que peocuram também elas um outro mundo, sem saber que são dele a prova tonitruante e discreta".

"Sokolov mergulha no líquido amniótico do eterno, sem nenhum desvio pela terra. Tocar piano é fundalmente amar, e amar não pretende ser um espectáculo".

Saímos deste modo, indirecto, da elegante corte de Haydn, vamos mais longe e mais fundo, entregues à sonoridade sublime de notas que deslizam e se afundam no mais íntimo do ser. Podemos, também nós, voltar a ser numa entrega total. Afirma ainda Bobin, deste seu amor incondicional pela música que é o " retorno do espírito". Alguém lhe dissre que o seu preferido, Kantorov, era velho. E Bobin escreve: "velho é o ponto mais alto de uma chama".

Será que ao ler esta reflexão também eu saberei o que significa? E que é esta uma depuração necessária, em que todo o supérfluo arda e se deixe consumir sem recriminações contra um mundo que será sempre cruel? 

Para falar de amor Bobin cumpre o ritual de Kierkegaard: onde falta as palavras, entra a música. Assim se defende e se rodeia, e a nós com ele, de música. Assim Sokolov e alguns outros vão surgindo na sua narrativa. Feita de bocados de pão da vida, pedaços que alimentam. Dispam-se das vossas quinquilharias ornamentais, para poder ouvir, absorver, o eterno alimento da música, quando vão a um concerto.

O livro, embora pareça pequeno, é grande nos temas que aborda, a infância (esse é o primeiro sofrimento) a vida e a morte, pelo meio uma doença que tortura, outras artes, fala de Camille Claudel que venera pela sua arte magnífica e sua vida tão torturada, revela-se um poeta de grande cultura e que responde sempre ao apelo da música,  que o completa. Página a página, ou parágrafo a parágrafo o leitor que o segue aprende sempre algo mais que não sabia. Logo para começar o pensamento, o que é pensar, e o sentimento, o que é sentir.

Viagens por um imaginário que algum surrealismo por vezes atravessa, e que lembra o Pessoa que exclama quero sentir tudo de todas as maneiras, ao modo de Rimbaud, pai espiritual desta inquieta geração de poetas que afinal apenas pretendia viver. 

Escreve Bobin, retomando Sokolov: 

"Vejo esse homem como uma muralha: uma muralha contra a morte...

O pensamento que dança nú, sem palavras, sem perseguir uma vã resposta para uma vã pergunta. Ao escutar este homem, esqueço-me de tudo e lembro-me de alguma coisa da vida que havíamos descurado...alguma coisa."

Eu fico por aqui, mas a obra de Bobin continua por temas que todos se relacionam connosco, quando num certo dia, eu hoje, preciso de caminhar acompanhada por outros, que amam a poesia, a música, na eternidade das esferas que percorrem. 

Um amigo de bom gosto, que está atento como eu, ao que se faz, foi Bobin, e apesar de ser Prof. na Sorbonne, decidiu ler a edição portuguesa, e salientou o que eu teria feito (temos gostos muito parecidos em matéria literária) se continuasse no blog. Deste modo leva-me a continuar, no que se pode ler como uma segunda parte da sua narrativa. Até agora entre as palavras e a música foi correndo um pensamento límpido, quase despido, que nos conduzia para que nos fossemos embrulhando na sua manta suave até adormecer. 

Alterando a páginas tantas o tom e o tema da sua narrativa, eis que recupera a sua infância, ou as várias que teve, e a presença, forte e dominadora da mãe, figuração de todas as mães de que todos nascemos, para viver ou morrer: " Abrir um livro é acordar a mãe que virá por fim tomar conta de nós". Teremos de ir ao facebook para encontrar o que Matteo Pupillo, o meu jovem colega da Sorbonne começa por salientar. E cito:

"A arcaica canção de embalar das mães tem dois tempos. Um primeiro tempo, o afastamento. A minha voz faz-se noite para te acompanhar na noite. A sua doçura não esconde os terrores do abismo. O abismo chega com ela. Um segundo tempo, o refrão. Porque eu estou aí, ainda, eu sou esta ervilha saltarica do refrão e o sorriso que ele te traz até ao coração sem coração da noite que te mata. Não tenho qualquer lembrança de ter sido embalado e essa falta assinala, para mim, a divindade das mães. Elas têm, juntamente com Deus, o privilégio de governar pela ausência". 

E entra a música, os vinte e quatro prelúdios de Chopin, que se aproximam dos lábios do bébé, do seu balbuciar. A música, onde ainda não estão formadas as palavras...Bobin dirá, a seguir, que os dois reinos que conhece são o da leitura e da escrita...forças do mundo, pois de ter sido embalado não tem lembrança... 

Há mais para ler, há a sua história de doente no hospital, as namoradas que às escondidas o visitam, o amor que uma delas lhe merece (ou terá sido uma visão, causada pelos opiácios que lhe davam?)  e a quem conta tudo o que calara antes, sonhos e pesadelos e o escuro da morte que se vai aproximando. Já tudo o que escreve é para ela, ela será o guardião sagrado a quem se confiam segredos, sonhos imprevisíveis, músicas e papéis. A sua figuração da Anima? Afinal, embora chegue a pedir desculpa por estar a tratá-la por tu, quem é essa Ela? Não a mãe que agora podia embalar, nem a Amada que chegava tarde, já tudo era tarde para ele, mesmo a música que ouvia e a poesia que não tinha força de escrever, um tudo imenso que fora a sua vida e só no taoísmo que refere teria cabimento: porque aí o tudo é nada, e o nada é tudo, num imenso universo que já nem Deus no seu grande Vazio entende.

 Para o Emanuel Cameira e o Matteo Pupillo

 Penso na Guerra.

Espera-se (deseja-se que chegue?)

Oiço Kissin no Mezzo.

Indiferença?

Pelo contrário, Esperança.

Que o branco luminoso das teclas do piano

tocado neste momento por Kissin

seja uma transfusão de amor e paz

como o poeta Bobin recebia, no hospital,

as suas transfusões de Chopin

que uma enfermeira compassiva

nunca se esquecia de lhe dar.

22 de Junho, 2025 



Saturday, June 07, 2025

O PLANETA

 




O PLANETA

 

Deram-lhes o planeta

aquela coisa inteira

ainda não dividida.

Não entenderam o dom.

Agora devolviam

uma coisa estragada

uma coisa sem vida

 

7 de Junho 2025

Monday, June 02, 2025

Murmúrios

 MURMÚRIOS

para Emanuel Cameira

 

Murmúrios

escondem-se no poema

nos intervalos das linhas

onde ficam escondidos

onde ninguém os ouve

são regatos a correr

são fios de água fininhos

entre os seixos que nos levam

aos tropeções por caminhos

mais murmúrios escondidos

julgamos ver o poema

na verdade nada vemos

o poema induz em erro

é essa a sua função

letras que escapam da mão

correm soltas das palavras

feitas murmúrios perdidos

nos seixos do tropeção

 

2 de Junho 2025

 

Friday, May 23, 2025

João Pedro George, Biografia de Herberto Helder, ed. Contraponto, 2025

 É com respeito e com algum temor que me atrevo a vir escrever aqui sobre este trabalho de João Pedro George, investigador com uma obra já grande, para não dizer imensa, não só pelas matérias que aborda, mas sobretudo pelo modo como o faz: lenta e minuciosa investigação (demora anos, o volume vai pesando sobre os joelhos) e o que nos traz tem a sua marca, de pesquiza que revela o não sabido ainda e quer se trate de matéria histórica e sociológica ou de abordagem biográfica de algum autor, como acontece neste caso, o que escreveu alarga o conhecimento existente e justifica o tempo que fomos dedicando, lendo o seu estudo como deve ser, lentamente, tal como ele o escreveu. Acrescento o prazer que dá a qualidade da sua prosa, directa, sem ser simplificadora, e de profundidade adequada às matérias em questão. Com subtil humor, de vez em quando, mas sobretudo com um olhar incisivo que não descura pormenores que ajudam ao entendimento do que está a dizer.

Aqui temos Herberto Helder, o poeta de imaginário inimitável, mas que agora, que morreu, tende a ser imitado, sem sucesso. João Pedro vai desvendar, da sua vida, o que não se sabia, a não ser entre os amigo mais íntimos, que conviviam com ele regularmente.

SE EU QUISESSE ENLOUQUECIA foi o título escolhido para o livro. Herberto Helder teria gostado, pois dá a entender o domínio que tinha, e era absoluto, sobre o seu comportamento e a sua obra.

Casou pela segunda vez (em 1973) e teve filhos, como toda a gente. Um deles, Daniel Oliveira, que não quis contribuir com informações para esta biografia, é o retrato vivo do pai. Vejo nele o Herberto com quem tomava café, aos vinte anos, no início dos anos 60. Mas tem direito à reserva, se assim o entende, como o pai faria se entendesse. O João Pedro George não deixa por isso de narrar, desde as origens madeirenses, pormenores tão interessantes como o da história do seu bisavô, artista escultor de uma lapinha (um presépio) que de tão belo se tornou peça de museu que é procurada ainda hoje, creio, por quem aprecia arte popular, madeira esculpida por mãos habilidosas.

À medida que vamos subindo pela árvore genealógica de Herberto Helder o  biógrafo amplia a descrição da ilha de modo a que nos sintamos integrados naquele espaço de grande beleza natural mas também de grande pobreza e miséria, de que a família de Herberto escapara graças à competência para o comércio, que lhes permitiu uma vida, não direi de luxo, mas de conforto remediado, num meio que o turismo iria desenvolver, muito pela mão dos ingleses, já em fins do século XIX. A Rainha Sissi estivera a descansar uns dias na Madeira.

Depois da guerra Churchill ali se recolhera, pintando em sossego as suas aguarelas, Surgiam os hotéis de luxo no meio de jardins e quintas de grande beleza. O primeiro onde estive foi o de Óscar Niemeyer, inaugurando a moderna arquitectura na ilha, mas havia o sumptuoso Reids Palace e outros foram naturalmente surgindo a modificar a paisagem.

Herberto cresce com um grupo de amigos, de famílias como a dele, onde se vivia sem problemas e de que se destacava a Lourdes de Castro, essa nascida "em berço de oiro", como podemos ler e cuja vida foi sempre a de uma pintora feliz na sua quinta, muito bem  filmada por Catarina Mourão ao longo de um ano em que habitou com ela e tranquilamente nos deu os seus momentos  e modos, sem interferir, tudo guardado num dvd que temos hoje à venda. 

O nascimento de Herberto, de uma mãe que queria absolutamente ter um filho homem e a quem os médicos tinham dito não podes ter mais filhos (mas eram só raparigas...) foi sofrido, mas valeu a pena. Tinha nos braços o filho que desejava, embora lhe roubasse um pouco da sua saúde frágil.

Quem lê a obra de Herberto repara que há nela muito sangue, há os pesadelos de que ele fala, onde com o seu choro se mistura o dos porcos, na altura das matanças, e que também eram sangrados, e se não se via podia imaginar-se e sofrer com os rios, ou os fios queescorriam longamente desses corpos imolados.

Fica a interrogação, será o nascimento também uma imolação? Um sacrifício que a natureza impunha para a sobrevivência da comunidade?

João Pedro George conta que Herberto não gostava de falar de si, da sua vida, e poucos à sua volta sabiam  pormenores mais íntimos que ele tivesse lembrado. Mas estes da infância foram sendo referidos com uma quase naturalidade, as infâncias são parte tão integrante do que somos, do que fomos, que não desaparecem e não há razão para esconder. A menos que nelas houvesse algum trauma profundo que só a um psiquiatra fossem revelados. Herberto tinha um psiquiatra, é certo. Mas penso que aqui a relação seria mais de amizade e inspiração para o médico do que necessidade absoluta para o poeta...o poeta acaba sempre por libertar-se num poema, e João Pedro, no seu percurso, que também fez pela obra, pois faz parte da vida, observa quando lê a APRESENTAÇÃO DO ROSTO. que eu na altura achei que era a continuação de  OS PASSOS EM VOLTA. Numa obra seguinte há sempre os vestígios da obra anterior que se acabou de publicar. Mas isto é a minha opinião.

"Nos poemas, fala-nos das forças do destino, de presenças espirituais, de poderes demoníacos ou autodestrutivos, de sonhos recorrentes, de seres intangíveis, de como vivemos cercados de mistérios, de potências que actuam de forma transformadora, daí a linguagem abundantemente metafórica - cuja acumulação parece obedecer a uma ordem secreta - que nos remete para uma ordem antiga do planeta e da natureza, 'o mar e a ilha dos mitos originais, animais voando de costas com uma pureza incrível, tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus, em ti principiam o mar e o mundo, etc." (J.P.George, p.58).

A mãe, pessoa considerada estranha, com algum grão de loucura, foi a sua grande influência, nas conversas de simples convívio, nas histórias que lia ou contava e onde a dimensão religiosa e mágica, bebida em trechos bíblicos, estava sempre presente. O embiente de casa do Herberto em pequeno era de grande fé e religiosidade, sem excluir as crenças populares. Podemos dizer que de tudo absorveu um pouco, e tudo transformou nas suas metáforas mais incisivas.

Podemos dizer, sem alterar a interpretação de João Pedro, que nesta infância pairam o mistério do mundo e da natureza, com predomínio do mar e da terra. Muitos do seus amigos, que aqui são fonte de informação, como o editor Hermínio Monteiro, conheci eu bem, quando ele me pedia que fosse ter com ele naquele antigo edifício da baixa, que me fazia subir as escadas que me tiravam o fôlego até chegar lá cima, para uma reunião que seria uma espécie de júri de apreciação de obras pr opostas para publicação. Eu era editada pela Ática  e pela Portugália, naquela altura, não havia conflitos de interesse. E o Manuel Rosa confiava no meu gosto, e no conhecimento que eu trazia de fora, actualizado. Tive muita pena quando faleceu, havia poucos editores com a sua sensibilidade e sem temor de arriscar.

A importância da mãe na sua vida, na infância, quando já frequenta o colégio (morre cedo, não o verá crescer para lá dos oito anos) o protege e deixa ficar em casa com ela, se ele não quisesse ir às aulas nesse dia,  é tão marcante que está na hora de, depois de ler esta biografia onde tudo se revela, fazer uma análise da sua obra à luz da relação que foi tão profunda - filho tão desejado - e de que ele ao café nunca falaria. Escapava nas entrelinhas deste ou daquele poema, num verso, numa imagem, num sangue vivo ou numa rosa que escorria. Temos um grande capítulo, o 5º, Uma Mulher Está Sentada à Janela, onde co a minúcia habitual João Pedro se ocupa dessa infância de mimo e de colo e da brutalidade da morte quando a mãe morre e dão ao miúdo a notícia. Havia um halo pesado naquele quarto onde ela ficava tantas vezes à janela, cansada, sentada numa cadeira. E quando dizia ao filho "quando eu morrer não deixes que me enterrem sem primeiro cortarem as veias dos pulsos, não quero ser enterrada viva". Algo de bem impróprio para se dizer a uma criança de oito anos e que se amava acima de tudo. A marca que este pedido deixou antecedeu a ferida que a notícia da morte, que lhe foi levada ao quarto por uma das irmãs, iria abrir e recupera João Pedro nos poemas, que transcreve, da APRESENTAÇÃO DO ROSTO e de A COLHER NA BOCA. A Mãe, imagem imperecível, mãe fundadora, como a Grande Mãe que ele aos oito anos não podia ainda re-conhecer, e sombra da vida para sempre em todos os momentos de inspiração ou sobressalto.

Juliet Perkins, que tive o privilégio de ir doutorar no King's College de Londres, a convite de Helder Macedo, amigo de Herberto, dos encontros no Café Gelo e à época docente no King's, foi a primeira pessoa, que me lembre, a escrever sobre o Herberto Helder uma tese pioneira em que a imagem do sangue feminino (a memória da mãe) prevalece. Não sei se em Portugal foi traduzida. O Helder Macedo, poeta também ele, convidou Juliet para colaborar com ele, por um tempo, e ela acabou por vir para Portugal onde se dedicou aos estudos portugueses. Herberto Helder já passeava pelo mundo, por via da sua obra. E Juliet, estudiosa de grande intuição, escolheu como fio condutor o Feminino, as mulheres, o sangue que lhes pertence como fonte de vida e morte.

Nunca se deu muito bem com o pai, cujo comportamento contrastava muito com a carinhosa atenção que a mãe lhe dava. Era um pai como eram os pais daquele tempo, educação atenta aos filhos, casa onde não faltava nada que fosse indispensável, mas onde as demonstrações de carinho eram contidas, quando existiam. Depois da morte da mãe o pai decidira mudar de casa, e ver desmanchar aquele paraíso da sua infância, pedaço a pedaço, quarto a quarto, fez sofrer muito o miúdo que ali fora tão feliz.

Certa vez tentei convidar o Herberto para um colóquio que ia organizar na Madeira, sobre a simbólica dos jardins e ele recusou dizendo-me odeio aquela ilha, saí de lá e não penso voltar nunca mais, um dia vai ter um tremor de terra e afunda-se para sempre. Agora, lendo a sua biografia, percebo melhor a sua embirração. O pai pesava numa saudade que não tinha, que perdera com a morte da mãe.

A vida continuou, para a criança, que entretanto crescia, internada num colégio, o melhor da Madeira, mas onde foi tão infeliz que o pai o retirou e lhe devolveu alguma liberdade, a pedido do Director que o via emagrecer dia a dia. A seguir há um casamento e Herberto não se dá com a madrasta, nem com o filho que ela tinha e poderia ser, noutras circunstâncias, um companheiro da mesma idade. Mas o adolescente tinha outros amigos, um desgosto só dele, e preferia a companhia das irmãs mais velhas, das primas - um mundo feminino próximo do seu antigamente. 

Por outro lado, vejo como a dor o fez crescer rapidamente. Leio, e quando reparo na idade a que os factos se referem, é na verdade uma criança ainda, depois um adolescente que se faz homem cedo, na vinda para Lisboa e antes disso na estadia em Coimbra, onde vive a boémia dos costumes, ao mesmo tempo que lê (muito), escreve (preparando o futuro) matriculando-se na Faculdade de letras, apreciando a obra do MIguel Torga e detestando o neo-realismo cujos autores, mas sobretudo doutrina, fechada à novidade, só podia aborrecer um criador cujo imaginário, já alimentado por muita leitura, mitos, lendas, ainda do tempo da mãe tinha uma abertura que não suportava limitação de espécie nenhuma.  

João Pedro George, além dos factos comprovados por muita documentação relativa às coisas da vida real, - aí entram os pormenores da relação com o pai, os quotidianos do trabalho, dos negócios, etc. - publica um inédito juvenil em que não se revelam ainda as qualidades futuras, mas como em Pessoa mostram que há uma mão que escreve, e uma pulsão que não se perde e irá desenvolver-se pela vida fora.

As informações, muitas que chegam ao biógrafo são, como é natural, pelaViúva, Olga, mas sobretudo e isso pertence de facto a uma época em que ainda se escreviam cartas, longas, com os detalhes do que se vivia, e onde o poeta se expõe de um modo simples e genuíno, confiante, ao seu melhor amigo de sempre, e que além das obras que analisa, muito em especial a Apresentação do Rosto, o biógrafo dá a conhecer o que no seu reservado quotidiano Herberto não daria. O convívio dos cafés era para discutir projectos, obras, política ou literatura, mas não a vida íntima. Essa é aqui nas cartas que Pedro George publica que a vamos encontrando. No que escreve ao amigo Carlos Cristóvão, ao longo dos anos, desde a saída da Madeira. É numa dessas cartas que lhe conta que tinha um verdadeiro namoro que em breve iria oficializar com uma rapariga linda, adorável, por quem se tinha apaixonado de verdade. Estava ultrapassada a fase do marialvismo da boémia machista dos rapazes da sua idade, pelo menos naquele momento.

No capítulo dedicado à sua estadia em Coimbra, a cidade dos Lentes, para onde o Herberto foi, supostamente iria formar-se em Direito, o que daria ao pai uma grande alegria, uma espécie de título de Nobreza, Herberto fez tudo o que a cidade pedia e oferecia, as pândegas, as bebedeiras, as mulheres - tudo menos matricular-se em Direito, algo que escondeu do pai e do amigo Carlos, preferindo ir matricular-se em Letras. Eu, que vivi em Coimbra, de 1953 ( ano em que Herberto saia de lá) a 1958 e estudei na Faculdade de Letras, ainda tive alguns dos professores que João Pedro George  indica como profs. do Herberto. Não me admira que também deles o poeta se tenha cansado, a severidade era grande, embora menor do que em Direito. Aqui, chumbando numa cadeira perdiam-se todas, era preciso repetir tudo de novo. Em Letras não, mas nem por isso os cursos, com raras excepções, abriam horizontes que despertassem paixão. Herberto voltaria para a Madeira, esperando do pai um apoio- sobretudo financeiro- que o devolvesse à liberdade e ao prazer da criação. Nasce uma zanga que nunca mais se desfez, o pai não estava disposto a sustentar um filho boémio, embora poeta de grande inspiração. 

João Pedro encontra poemas desse tempo que nos mostram ainda uma incipiência (aliás como se pode ver nos de Fernando Pessoa) que não permitem ainda adivinhar  o que acontecerá depois com A Colher na Boca ou a Apresentação do Rosto, onde já domina para lá do fenómeno que conduziu o fio da palavra, uma voz de maturidade original plena, genuína, de rápida devoração impiedosa , e dá à sua voz um ritmo que bate como pancadas que alertam para emoções e perigos, que ele não perdera da infância e continuavam vivos. 

Alguns dos poemas foram transcritos, são inéditos e daí o seu interesse. Assim se nasce e cresce, na poesia.

Há um deles, do tempo de Coimbra, da fuga às aulas para poder escrever, que me chamou em especial a tenção. Posso estar errada, no que vou dizer. Mas não resisto.

É o poema do poeta de monóculo. Temos de voltar a Coimbra, à sociedade que vivia em diferentes esferas, a da boémia desbragada, das Repúblicas, - Herberto ficou instalado na chamada da Loucura - e a outra, da burguesia normal, com preceitos e costumes respeitados e de que se destacavam, por vezes, uma ou outra personalidade, algum Prof, da Universidade,  distraído, ou outro que dava nas vistas por ser o único em quem se reparava, nas aulas e fora delas, como o vemos descrito no poema do monóculo.

O meu sogro, já falecido e certamente não se ofenderia, fora também no seu tempo um estudante que diferia dos outros por não se apresentar a exame, na Faculdade de Direito, senão de dois em dois anos: demorou dez anos, viveu o seu tempo de boémia feliz, obteve as melhores notas, foi Catedrático de direito Constitucional e usava - aqui entra o Herberto! monóculo, algo que o distinguiu, até ao fim da vida dos outros todos com que se cruzava.

Teria o Herberto visto alguma vez este senhor de monóculo que por dentro era poeta? E deu mote ao poema? Não tenho resposta, só agora li o  poema, só quando conheci o meu sogro o vi com o seu monóculo. Não estou a fazer uma crítica literária aqui, por isso não transcrevo o poema, menos ainda  uma biografia com o peso e a seriedade desta, por isso não levem muito a sério o que digo. Foi uma fantasia, que a a p.19 do livro me suscitou.

Em Coimbra Herberto fez-se de facto homem, quanto aos cursos ele já era tão lido e tão culto, sentiu que nenhuma coisa lhe acrescentariam para o que desejava na sua vida: viver em poesia a poesia. Isso acima de tudo.

Se na sociedade coimbrã viveu mais no colo das prostitutas do que no convívio de alguma colega da Faculdade a explicação já estava antecipada no início do estudo de João Pedro George e era o prolongamento da relação com a mãe, tão amada e tão perdida, aqui entraria Freud, com a sua psicanálise, mas que vamos deixar de parte.

O regresso à Madeira, a zanga com o pai, a vinda para Lisboa adquirindo novos amigos, novos e mais vivos espaços - os vários cafés citados - de convívio literário e político dão-lhe definitivamente o estatuto de poeta, marginal, e único no que escrevia: com o sangue, com as tripas, poemas nascidos da terra ( ainda resultado da Madeira?) em que os versos se tinham alimentado de lendas, de mitos, de símbolos, de todo um imaginário de raízes antigas, milenares, de culturas que nos seus anos 50 e ainda 60 destoavam das modas lisboetas. A sua poesia atraía, mas estranhava-se. Só isso explica que quando ele entrega na Ática o seu ms, de A COLHER NA BOCA, a directora literária, Helena Cidade Moura e o David Mourão Ferreira me tenham pedido ( a mim, mais nova, não conhecida, o Papa das Letras já era João Gaspar Simões) que lesse e dissesse se valia a pena publicar. Li, e foi um deslumbramento, disse-lhes que aquele era um texto que nos levava para muito mais longe do que os de Fernando Pessoa, ali estava a nova era da poesia portuguesa. Eu de comparável pela originalidade surpreendente só me lembrava de Comte-Lautréamont, os Chants de Maldoror.  

Podemos ler a biografia com especial atenção à qualidade inegável da investigação, não escapa um documento, um depoimento, e sobretudo uma análise da correspondência onde tanto é revelado do que não se imagina, pois a admiração pela obra do poeta não deixa adivinhar o turbilhão da sua vida, se fosse de outro século seria de poeta maldito, sendo deste tempo é de poeta que dentro "do meio" é apesar de tudo de poeta que prefere, no intervalo, ir ficando à margem, descomprometido das intrigas, mas conhecendo-as bem, das invejas, das cobardias onde o respirar da criação literária é tantas vezes abafado. 

Embora eu seja bastante mais nova,  e tenha vivido mais tempo fora do que dentro do país, até à Revolução, conheço praticamente, pelo nome ou pela obra, a maior parte dos autores com quem Herberto convivia. As tertúlias eram o grande momento em que o país era refeito...para depois cada um ir à sua vida e deixar tudo na mesma. Herberto escrevia muitas cartas, e estranhei o tom humilde com que se dirigia a este ou aquele, quando pedia um encontro para uma futura publicação do que estava a fazer. Em algumas apresenta-se com uma detalhada descrição da sua vida, dos seus méritos e do que esperava ainda realizar. Nas cartas aos amigos o tom é mais natural, e sincero no que o preocupa, seja de amores seja de dinheiros.  Sabemos, pela  segunda mulher , Olga,  fonte de muita da informação dada à luz agora por João Pedro, que Herberto lia e dava a maior atenção às referências que lhe faziam, organizava os recortes, como se já adivinhasse que um dia a biografia a que se refere que deviam ser os próprios a fazer de si mesmos seria feita por um outro a quem tudo da sua vida e obra interessaria.  E aqui está, para nos informarmos como deve ser, e por vezes com surpresa, a sua biografia. O livro começa com a sua morte, no cadeirão onde se sentava, e fecha com a mesma morte, no mesmo cadeirão, onde a mulher se desespera por não ter adivinhado que tudo estava já a acontecer sem ela dar por isso.

Há uma arca de Herberto Helder, que João Pedro não deixa de anotar, para quem deseje ver se ali haverá mais algum material de inspiração. Acabará por ser publicada um dia, mais alguma coisa, mas pouco se poderá acrescentar a este trabalho tão detalhado, tão completo, exemplar para um género que agora com tanto "digital" já não voltará a ser o que foi, no tempo das cartas à mão.





    




 


 



   







  


 

   

Monday, May 19, 2025

ELA E ELE

 



ELA E ELE


Ela e Ele

ela

uma flôr selvagem

pétalas por todo o lado

ele

o corpo em que ela repousa

depois do dia acabado

Tuesday, April 22, 2025

A Sala das Lágrimas

 A SALA DAS lÁGRIMAS

Depois de eleito o novo Papa

é conduzido à Sala das Lágrimas.

Ali será por ele chorado o mundo

ali o mundo chorará por ele.

Sairá, mas levando no coração

as lágrimas que são perpétuas 

num mundo ainda sem redenção.

Lembra talvez, ele que gostou sempre de música,

tal como o Papa Francisco, 

a ópera do Barba Azul,

a sexta porta que era proibido abrir.

Porta cheia de sangue, choro afogado em lágrimas

de criaturas mortas sem perdão.

Éssa é a porta a que é levado o Papa

para que nunca esqueça a sua condição.


 

Morre o Papa , os Rituais

 

 Os Rituais

Ei-lo ali, 

o corpo exposto ao mundo

na morte

como tinha sido em vida.

Cumpriu

deu a ultima benção

disse o último adeus.

Não está morto

aguarda ainda no seu silêncio

palavras não fazem falta

disse tantas e não sabemos ainda

 se farão sentido

se quem o Espírito Santo

escolherá a seu gosto

piedade e compaixão

no momento da escolha crucial

de um sucessor  à altura

do que o mundo precisa...

A Paz tão desejada

que ele encontrou em Fátima, 

sem precisar de rezar, mergulhando

apenas no silêncio da Virgem abençoada

que também no céu esperaria por ele

de feridas curadas como as de Jesus seu filho

agora Cristo da Redenção. Haverá paz no mundo

 com tanto apelo, desejo formulado, num coração

aberto?

22 de Abril, 2025







Monday, April 21, 2025

 


Morre o Papa Francisco

 

Levou a sua Cruz até ao fim.

 É recebido no céu pelos pastorinhos

que tinha santificado.

E agora, longe do sofrimento,

será ele santificado também?

 

 DIA DE GLÓRIA

DIA DE GLÓRIA

 

E como cantaremos

o Deus Enorme

o Espírito anterior à Criação?

Pairava ainda sobre as águas

as da terra e as do céu

que aguardavam na treva

a sua transformação.

Teriam todas as formas,

vegetais, animais e humanas

mas para estas um Jardim especial

com segredos que não poderiam nunca

revelar-se.

Violar um segredo seria pecado mortal

e todo o universo ficaria em suspenso,

inacabado.

O Deus grandioso teria de vir à terra

das criaturas imperfeitas, para terminar

a sua obra, de redenção já iniciada.

O seu espírito incarnado sofreria o horror

dos grandes abismos primordiais

morreria na Cruz, como um qualquer ladrão

crucificado.

Mas era Deus, era o JUSTO que tinha sido anunciado

às criaturas infames que não o reconheciam.

Voltou por elas a este mundo imperfeito pela mão

do Espírito anterior que as tinha abençoado.

No céu uma Rainha, a Mãe Eterna, aguardava.

Não ficaria incompleto, o mundo começado.

 

Domingo de Páscoa, 2025     

 

 

Saturday, April 19, 2025

TREVAS

 

TREVAS

A meio da tarde

cairão as trevas

sobre o mundo imperfeito.

Tudo o que foi sofrido

oferecido

não foi bastante

para um Pai tão zangado.

Porquê tão grande

esse abandono eterno

qual foi a culpa grave

e que não tem Perdão?

2025

Tuesday, April 15, 2025

Galáxias

 Galáxias

Perdido entre galáxias

milhões que Jeová

ainda não conhecia

não lhe ocorre

que um cosmos tão imenso

 e que ele percorre

mas não consegue

por completo entender

ora na sua luz

ora na escuridão completa

teria de ter um fim

naquele momento de espanto

em que foi concebido

o tempo era feito da treva

que o espaço não interrompia

tudo ali era inteiro

Jeová não entendia


Monday, April 14, 2025

Amar e ser Amado


AMAR E SER AMADO

Cheguei tarde bem sei

o espaço estava ocupado

não seria dividido

e o tempo que me era dado

era um tempo tão medido

num recanto tão escondido

que eu nunca descobriria

amar lentamente assim

perdia todo o sentido


Sunday, April 13, 2025

O poema 

De que nasce o poema

Não é fácil dizer.

De um fundo escuro

que nem sempre se abre

deixando entrar a luz

de uma palavra perdida

que aguarda o seu momento

para alguém a dizer


Saturday, March 22, 2025

Tempos

 TEMPOS

O que faria agora nesta idade

se voltasse a viajar apaixonada

como acontecia aos vinte anos?

Certamente não faria nada

pois já tanta coisa tinha feito

outrora e o tempo agora tinha de ser

outro e a vida vivida impõe

os seus limites e é isso que está certo...

pediria só talvez estar mais perto

um pouco mais chegada sentindo mais a pele

o seu calor e talvez a mão que se dá

 num último gesto ainda com amor 

à espera de ir ficando ali ao lado...





Thursday, March 20, 2025

 A OBEDIENTE

Era obediente.

Diziam são horas vamos deitar.

E ela levantava-se da cadeira

onde estava sentada e ia para a cama.

Quando a sua Cuidadora

na cama ao lado dormia a sono solto

 ela saía do quarto

e descalça começava os seus longos

passeios pela casa, antiga,

de muitos corredores

que davam seguimento

à casa, aos quartos, às varandas

e a deixavam a ela finalmente respirar

sem que ninguém fosse atrás.

Parava na cozinha, comia qualquer coisa

e hesitava em ficar mais um pouco

já sem fome ou voltar. Não adormecia

antes das seis da manhã

esse horário por qualquer razão

era agora a rotina. Seria por ela ter nascido

muito perto dessa hora? Não sabia dizer

e depressa esquecia o que estava a pensar.

Dava mais umas voltas, procurava a chave de casa

 com que a tinham fechado, não fosse para a rua

 perder-se, cair ou magoar-se, voltava para a cama,

a Cuidadora dormindo sem acordar.

Ainda pensava: julgam que não encontro a chave

mas encontro, um dia abrirei esta porta fechada

irei pela rua fora, irei pela rua fora até onde o caminho

me levar.

19 de Março, 2025

 

 

Thursday, March 13, 2025

A NOSSA LíNGUA

 A Nossa Língua

 Já foi directa

de narrativa simples e cuidada

com o velho Fernão Lopes,

já foi acutilante com Vieira

já foi a nossa Pátria com Pessoa

hoje é uma língua empobrecida

vocabulário muito reduzido

que não transporta por completo

a possível ideia, se é que existe,

língua envergonhada, e de tal modo

hesitante e deformada que melhor ficara

escondida no seu canto, alquebrada,

 de tanto mau-trato sofrido

faltam-lhe muitas palavras,

e as que sobram disseram,

mas já não dizem nada.

 

13 de Março, 2025

Wednesday, March 12, 2025

 Para o Rui Zink

(pequena canção de embalar)

São muitos e têm fome.

Vão à caça para comer.

Trazem muitos corações

já cortados ao meio

prontos a cozinhar

na fogueira que os espera

mulheres sentadas à roda

entoam cantos alegres

corações são para todos

por isso já estão partidos

ninguém ali terá fome

nem medo para lutar

por uma metade maior

as metades são iguais

na cerimónia descrita,

 já de há muito ultrapassado

o tempo dos canibais...

Uma velhinha ainda embala

ao colo um dos seus netinhos

"papã papão vai-te embora

não comas o meu menino "

Yvette Centeno

12 de Março, 2025

 

 

 

Sunday, March 09, 2025

Bob WILSON e Fernando PESSOA SINCE I'VE BEEN ME

 Vejo logo na folha do programa o nome de Maria de Medeiros. Alegro-me, para logo depois, quando o espectáculo começa e à medida que avança, lamentar que Wilson não tenha procurado mais a sua inteligência, cultura pessoana e sensibilidade artística, para o ajudar na construção desta peça que fica ente a definição do vaudeville francês, do cabaret alemão, ainda da Berlin expressionista, e o que não chega a acontecer  mas podia, os quadros soltos da revista à portuguesa. Cada momento definido por uma grande explosão ( alusão à guerra que corre, ou que ocorreu,  no tempo do Modernismo?) Não interessa responder.

Wilson está nesta obra para lá das definições. Quando muito podíamos dizer é uma apresentação post-post modernista, servida pelo nome de um dos nossos maiores poetas, a seguir a Camões.

Então Pessoa: para nos localizar, mas como não terá continuação no pensamento nem na reflexão que implica, uma citação em inglês atribuída ao poeta na hora da morte, ou perto disso: uma frase de leit-motiv:

I know not what tomorrow will bring, que se encontra num dos papelinhos soltos da Arca.

Pois o amanhã de Pessoa foi sempre - terá sido sempre - uma surpresa, trazida pela boca do heterónimo Mestre Alberto Caeiro (o mais Pessoa de todos, talvez) Ricardo Reis, Álvaro de Campos, com a célebre frase recuperada aqui de que todas as cartas de amor são ridículas, depois de uma rápida alusão à Ophelinha por meio de uma carta erguida ao alto no rosto de um actor e finalmente  Bernardo Soares, o genial autor  do LIVRO do DESASSOSSEGO, conceito-chave que muito pedia desenvolvimento (no pensamento e na obra de cariz hermético e filosófico) e de que existe uma excelente tradução inglesa, que podia ter sido mais usada, em vez do que ali vai acontecendo,  a escolha aleatória de frases soltas do google que ilustram não o Autor, mas a experiência  estética e sempre colorida do Encenador, na sua mão livre de segundo criador naquele contexto.

Sim, sabemos que é isso o post - modernismo. Não há uma escolha necessária nem uma apresentação de continuidade e coerência obrigatórias, que imponham outra forma de leitura. As formas serão livres, como aqui se vê com Bob Wilson, e desligadas se tal apetecer, do conteúdo previsto, ou mesmo quase imposto pelo primeiro criador, neste caso Pessoa.

O título da peça já nos dá um sinal - "since I've been me " - desde que fui eu.

Melhor seria adiantar logo (mas sou eu, mais racionalista e menos post-moderna) desde que deixei de ser. 

Porque é isso que acontece: com o passar do tempo, e a evolução dos modelos de criação e análise (o século de Pessoa é feito de um resto ainda do século 19 e de um assumido modernista século 20 ), divergem muito do actual século 21 em que estamos e já a caminho do 22, com a IA.

Quanto mais se lê e relê a obra de Pessoa mais se descobre e mais apetece falar sobre ela, que é toda pensamento e não literatura para compêndios escolares. Pensamento agilizado por leituras de clássicos, os gregos até aos renascentistas - veja-se o que nos diz sobre um Shakespeare Rosacruz, por filósofos herméticos, como um Thomas Vaughan alquimista, irmão do outro Vaughan, poeta - e sobre as origens da Maçonaria até ao seu sonho de definir um sistema que ergueria um novo Templo de sabedoria. A relação com Vieira e a História do Futuro, tudo leituras para a sua formação e pensamento e para o nosso, é claro, ajudando a compreender melhor o que ele foi e será, nunca deixando de ser, afinal o que é. Um criador absoluto? Um iniciador pouco reconhecido, a não ser pelo Mago Crowley, que o visitou em Lisboa, deixando outro conceito fundador, o da AURORA CONSURGENS, com origem num antigo tratado atribuído a São Tomás de Aquino no seu leito de morte. A Golden Dawn constituiu-se como Ordem alquímico-mágica secreta, a que os filiados nela viriam a obter, pelo conhecimento das várias obras de Crowley, um estatuto mental superior. Enfim.

A peça não deixa de merecer ser vista e apreciada, quando se gosta, como eu, de Bob Wilson e seu imaginário libérrimo (como ele diz numa entrevista sobre Einstein on the Beach com que começa a carreira num teatro de Brooklyn, reparem não está lá nenhum Einstein...), um título é só uma frase, não obriga a nada, e Bob Wilson não se sente de facto obrigado a nada a não ser à sua imaginação criadora que algum outro de repente libertou. 


  


 


 

Wednesday, March 05, 2025

 ENTRE AMIGOS

à Isabel Almasqué, à Cristina Gonçalves,

à Minnie Freudenthal e ao Manuel do Rosário

e last, but not least, ao Tozé Barros Veloso

 Se eu fosse chocolate derretia

com o calor carinhoso de tanto amigo

à minha volta na sala de janelas luminosas:

Um piano de cauda e pintura nas paredes

libertando a emoção...

escorria pela mesa abaixo

se um amigo não corresse

trazendo um prato, uma chávena

e ainda uma colher

para me recolher
antes de chegar ao chão.

Assim me punham na mesa,

ficando na chávena à espera

da minha forma primeira.

É isso que amigos fazem:

protegem a forma uns dos outros

com os gestos mais naturais

por vezes nunca esperados

um coração derretido de amizade

verdadeira.


5 de Março, 2025

 


Friday, February 28, 2025

 AS PALAVRAS

Antigamente eram muitas

e eu podia brincar com elas

como as crianças brincam:

frio, frio, morno, quente!

Estão aqui.

E agarrava a palavra escondida

e ou gritava para os outros saberem

ou escrevia.

 Parecia tão fácil a brincadeira.

Agora nem escondo, nem procuro,

aprendi com o tempo

que não é da palavra que se trata

mas desse estranho sentimento

que não larga enquanto o sentido

não se encontra.

O sentido, escondido na palavra

que se embrulha na boca

e que o tempo desgasta

até que se torna impossível

de dizer.

Brincadeiras antigas já passadas

não ajudam ao sentido que permanece

oculto, inacessível, dentro das bocas

fechadas.

É o tempo que as fecha

é o tempo impiedoso

que devagar obriga a um total silêncio,

já se acabou há muito a hora de brincar

 

Wednesday, February 26, 2025


Fevereiro, 2025

Alinharam-se os planetas

para mostrar que é possível

celebrar a harmonia

escondida no universo

um coração que palpita

na música das esferas

não é de nenhum ser humano

de quem é não se adivinha

o brilho não deixa ver

mas estão ali os planetas

 dão testemunho da vida

morta e sempre a renascer

Sunday, February 23, 2025

 UM OVO COZIDO

(para o Sérgio Nazar David)

 Será assunto banal

indigno de ser poema

mas poema é comestível

se lhe dermos atenção.

Conselho de bons doutores

e amigos experientes

cuja elegância é exemplo:

a meio da noite tem fome?

Não coma pão nem um bolo

que todo o acúcar engorda

e é difícil perder peso

se não fôr sempre constante.

 Sim, constante não é contente

mas não quer manter a linha?

Coza um ovo na cozinha

sente-se

não fique em pé

aguarde uns pouco minutos

sem olhar para o relógio

e depois coma o seu ovo

volte a deitar-se em sossego

e não afugente o Anjo

viaja sempre consigo

é seu amigo paciente.

 

22 de Fevereiro, 2025

 

 

Saturday, February 22, 2025

EM ANO de JUBILEU

 


EM ANO de JUBILEU

Morre o Homem Escolhido

e que se veste de Branco

quando o planeta estremece.

Vai sozinho no caminho

não pára

nem desvia o seu olhar

ninguém pode acompanhar

o que ele fez

e o que não fez

e ainda falta acabar,

outro se ocupará

do muito que falta ainda.

Que dores leva consigo

no coração apertado

tanto queria ajudar

rezava de madrugada

na hora da solidão

mas os ecos eram fracos

quem ouvia aquela voz

o seu apelo sentido

a um Pai já tão distante

de um planeta tão ferido

ele já não tinha respostas

para o que tinha pedido

agora só caminhava

no seu caminho escolhido

feito de dores sentidas

não salvara a humanidade

mas morria esperançado

entregue no sofrimento

à compaixão anunciada

todas as promessas feitas 

pelo Deus crucificado.


22 de Fevereiro, 2025


AS RELIGIÔES DO LIVRO

 

AS RELIGIÕES DO LIVRO

Em que momento terrível

foi cravada a espada de fogo

no peito de cada um daqueles

que veio a separar-se

de cada um dos outros

abrindo a ferida de ódio

que perdura até hoje

sem que Deus lhes explique

porquê.

Se afinal foi a serpente

que comandou o tempo

em que isso aconteceu

então que isso lhes seja dito

percam a falsa esperança

não vivam em negação

e que Deus peça perdão.

 

22 de Fevereiro, 2025

Sunday, February 16, 2025

De Vez Em Quando...

 

Espero

que de vez em quando

numa hora vazia

penses em mim

sintas a minha falta

como eu sinto a falta

do nosso breve tempo

de falar disto e daquilo

que não tinha sentido,

não era o sentido

que nos aproximava

amar e ser amado

era saber

que eu tinha chegado tarde

e me bastava um abraço,

que me desses a mão

carinhosa e suave

na hora da despedida

para ti as horas que sobravam

e  no tempo ainda sobrariam

para mim apenas uma hora

ao acaso num dia. 

16 de Fevereiro, 2025