Friday, May 23, 2025

João Pedro George, Biografia de Herberto Helder, ed. Contraponto, 2025

 É com respeito e com algum temor que me atrevo a vir escrever aqui sobre este trabalho de João Pedro George, investigador com uma obra já grande, para não dizer imensa, não só pelas matérias que aborda, mas sobretudo pelo modo como o faz: lenta e minuciosa investigação (demora anos, o volume vai pesando sobre os joelhos) e o que nos traz tem a sua marca, de pesquiza que revela o não sabido ainda e quer se trate de matéria histórica e sociológica ou de abordagem biográfica de algum autor, como acontece neste caso, o que escreveu alarga o conhecimento existente e justifica o tempo que fomos dedicando, lendo o seu estudo como deve ser, lentamente, tal como ele o escreveu. Acrescento o prazer que dá a qualidade da sua prosa, directa, sem ser simplificadora, e de profundidade adequada às matérias em questão. Com subtil humor, de vez em quando, mas sobretudo com um olhar incisivo que não descura pormenores que ajudam ao entendimento do que está a dizer.

Aqui temos Herberto Helder, o poeta de imaginário inimitável, mas que agora, que morreu, tende a ser imitado, sem sucesso. João Pedro vai desvendar, da sua vida, o que não se sabia, a não ser entre os amigo mais íntimos, que conviviam com ele regularmente.

SE EU QUISESSE ENLOUQUECIA foi o título escolhido para o livro. Herberto Helder teria gostado, pois dá a entender o domínio que tinha, e era absoluto, sobre o seu comportamento e a sua obra.

Casou pela segunda vez (em 1973) e teve filhos, como toda a gente. Um deles, Daniel Oliveira, que não quis contribuir com informações para esta biografia, é o retrato vivo do pai. Vejo nele o Herberto com quem tomava café, aos vinte anos, no início dos anos 60. Mas tem direito à reserva, se assim o entende, como o pai faria se entendesse. O João Pedro George não deixa por isso de narrar, desde as origens madeirenses, pormenores tão interessantes como o da história do seu bisavô, artista escultor de uma lapinha (um presépio) que de tão belo se tornou peça de museu que é procurada ainda hoje, creio, por quem aprecia arte popular, madeira esculpida por mãos habilidosas.

À medida que vamos subindo pela árvore genealógica de Herberto Helder o  biógrafo amplia a descrição da ilha de modo a que nos sintamos integrados naquele espaço de grande beleza natural mas também de grande pobreza e miséria, de que a família de Herberto escapara graças à competência para o comércio, que lhes permitiu uma vida, não direi de luxo, mas de conforto remediado, num meio que o turismo iria desenvolver, muito pela mão dos ingleses, já em fins do século XIX. A Rainha Sissi estivera a descansar uns dias na Madeira.

Depois da guerra Churchill ali se recolhera, pintando em sossego as suas aguarelas, Surgiam os hotéis de luxo no meio de jardins e quintas de grande beleza. O primeiro onde estive foi o de Óscar Niemeyer, inaugurando a moderna arquitectura na ilha, mas havia o sumptuoso Reids Palace e outros foram naturalmente surgindo a modificar a paisagem.

Herberto cresce com um grupo de amigos, de famílias como a dele, onde se vivia sem problemas e de que se destacava a Lourdes de Castro, essa nascida "em berço de oiro", como podemos ler e cuja vida foi sempre a de uma pintora feliz na sua quinta, muito bem  filmada por Catarina Mourão ao longo de um ano em que habitou com ela e tranquilamente nos deu os seus momentos  e modos, sem interferir, tudo guardado num dvd que temos hoje à venda. 

O nascimento de Herberto, de uma mãe que queria absolutamente ter um filho homem e a quem os médicos tinham dito não podes ter mais filhos (mas eram só raparigas...) foi sofrido, mas valeu a pena. Tinha nos braços o filho que desejava, embora lhe roubasse um pouco da sua saúde frágil.

Quem lê a obra de Herberto repara que há nela muito sangue, há os pesadelos de que ele fala, onde com o seu choro se mistura o dos porcos, na altura das matanças, e que também eram sangrados, e se não se via podia imaginar-se e sofrer com os rios, ou os fios queescorriam longamente desses corpos imolados.

Fica a interrogação, será o nascimento também uma imolação? Um sacrifício que a natureza impunha para a sobrevivência da comunidade?

João Pedro George conta que Herberto não gostava de falar de si, da sua vida, e poucos à sua volta sabiam  pormenores mais íntimos que ele tivesse lembrado. Mas estes da infância foram sendo referidos com uma quase naturalidade, as infâncias são parte tão integrante do que somos, do que fomos, que não desaparecem e não há razão para esconder. A menos que nelas houvesse algum trauma profundo que só a um psiquiatra fossem revelados. Herberto tinha um psiquiatra, é certo. Mas penso que aqui a relação seria mais de amizade e inspiração para o médico do que necessidade absoluta para o poeta...o poeta acaba sempre por libertar-se num poema, e João Pedro, no seu percurso, que também fez pela obra, pois faz parte da vida, observa quando lê a APRESENTAÇÃO DO ROSTO. que eu na altura achei que era a continuação de  OS PASSOS EM VOLTA. Numa obra seguinte há sempre os vestígios da obra anterior que se acabou de publicar. Mas isto é a minha opinião.

"Nos poemas, fala-nos das forças do destino, de presenças espirituais, de poderes demoníacos ou autodestrutivos, de sonhos recorrentes, de seres intangíveis, de como vivemos cercados de mistérios, de potências que actuam de forma transformadora, daí a linguagem abundantemente metafórica - cuja acumulação parece obedecer a uma ordem secreta - que nos remete para uma ordem antiga do planeta e da natureza, 'o mar e a ilha dos mitos originais, animais voando de costas com uma pureza incrível, tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus, em ti principiam o mar e o mundo, etc." (J.P.George, p.58).

A mãe, pessoa considerada estranha, com algum grão de loucura, foi a sua grande influência, nas conversas de simples convívio, nas histórias que lia ou contava e onde a dimensão religiosa e mágica, bebida em trechos bíblicos, estava sempre presente. O embiente de casa do Herberto em pequeno era de grande fé e religiosidade, sem excluir as crenças populares. Podemos dizer que de tudo absorveu um pouco, e tudo transformou nas suas metáforas mais incisivas.

Podemos dizer, sem alterar a interpretação de João Pedro, que nesta infância pairam o mistério do mundo e da natureza, com predomínio do mar e da terra. Muitos do seus amigos, que aqui são fonte de informação, como o editor Hermínio Monteiro, conheci eu bem, quando ele me pedia que fosse ter com ele naquele antigo edifício da baixa, que me fazia subir as escadas que me tiravam o fôlego até chegar lá cima, para uma reunião que seria uma espécie de júri de apreciação de obras pr opostas para publicação. Eu era editada pela Ática  e pela Portugália, naquela altura, não havia conflitos de interesse. E o Manuel Rosa confiava no meu gosto, e no conhecimento que eu trazia de fora, actualizado. Tive muita pena quando faleceu, havia poucos editores com a sua sensibilidade e sem temor de arriscar.

A importância da mãe na sua vida, na infância, quando já frequenta o colégio (morre cedo, não o verá crescer para lá dos oito anos) o protege e deixa ficar em casa com ela, se ele não quisesse ir às aulas nesse dia,  é tão marcante que está na hora de, depois de ler esta biografia onde tudo se revela, fazer uma análise da sua obra à luz da relação que foi tão profunda - filho tão desejado - e de que ele ao café nunca falaria. Escapava nas entrelinhas deste ou daquele poema, num verso, numa imagem, num sangue vivo ou numa rosa que escorria. Temos um grande capítulo, o 5º, Uma Mulher Está Sentada à Janela, onde co a minúcia habitual João Pedro se ocupa dessa infância de mimo e de colo e da brutalidade da morte quando a mãe morre e dão ao miúdo a notícia. Havia um halo pesado naquele quarto onde ela ficava tantas vezes à janela, cansada, sentada numa cadeira. E quando dizia ao filho "quando eu morrer não deixes que me enterrem sem primeiro cortarem as veias dos pulsos, não quero ser enterrada viva". Algo de bem impróprio para se dizer a uma criança de oito anos e que se amava acima de tudo. A marca que este pedido deixou antecedeu a ferida que a notícia da morte, que lhe foi levada ao quarto por uma das irmãs, iria abrir e recupera João Pedro nos poemas, que transcreve, da APRESENTAÇÃO DO ROSTO e de A COLHER NA BOCA. A Mãe, imagem imperecível, mãe fundadora, como a Grande Mãe que ele aos oito anos não podia ainda re-conhecer, e sombra da vida para sempre em todos os momentos de inspiração ou sobressalto.

Juliet Perkins, que tive o privilégio de ir doutorar no King's College de Londres, a convite de Helder Macedo, amigo de Herberto, dos encontros no Café Gelo e à época docente no King's, foi a primeira pessoa, que me lembre, a escrever sobre o Herberto Helder uma tese pioneira em que a imagem do sangue feminino (a memória da mãe) prevalece. Não sei se em Portugal foi traduzida. O Helder Macedo, poeta também ele, convidou Juliet para colaborar com ele, por um tempo, e ela acabou por vir para Portugal onde se dedicou aos estudos portugueses. Herberto Helder já passeava pelo mundo, por via da sua obra. E Juliet, estudiosa de grande intuição, escolheu como fio condutor o Feminino, as mulheres, o sangue que lhes pertence como fonte de vida e morte.

Nunca se deu muito bem com o pai, cujo comportamento contrastava muito com a carinhosa atenção que a mãe lhe dava. Era um pai como eram os pais daquele tempo, educação atenta aos filhos, casa onde não faltava nada que fosse indispensável, mas onde as demonstrações de carinho eram contidas, quando existiam. Depois da morte da mãe o pai decidira mudar de casa, e ver desmanchar aquele paraíso da sua infância, pedaço a pedaço, quarto a quarto, fez sofrer muito o miúdo que ali fora tão feliz.

Certa vez tentei convidar o Herberto para um colóquio que ia organizar na Madeira, sobre a simbólica dos jardins e ele recusou dizendo-me odeio aquela ilha, saí de lá e não penso voltar nunca mais, um dia vai ter um tremor de terra e afunda-se para sempre. Agora, lendo a sua biografia, percebo melhor a sua embirração. O pai pesava numa saudade que não tinha, que perdera com a morte da mãe.

A vida continuou, para a criança, que entretanto crescia, internada num colégio, o melhor da Madeira, mas onde foi tão infeliz que o pai o retirou e lhe devolveu alguma liberdade, a pedido do Director que o via emagrecer dia a dia. A seguir há um casamento e Herberto não se dá com a madrasta, nem com o filho que ela tinha e poderia ser, noutras circunstâncias, um companheiro da mesma idade. Mas o adolescente tinha outros amigos, um desgosto só dele, e preferia a companhia das irmãs mais velhas, das primas - um mundo feminino próximo do seu antigamente. 

Por outro lado, vejo como a dor o fez crescer rapidamente. Leio, e quando reparo na idade a que os factos se referem, é na verdade uma criança ainda, depois um adolescente que se faz homem cedo, na vinda para Lisboa e antes disso na estadia em Coimbra, onde vive a boémia dos costumes, ao mesmo tempo que lê (muito), escreve (preparando o futuro) matriculando-se na Faculdade de letras, apreciando a obra do MIguel Torga e detestando o neo-realismo cujos autores, mas sobretudo doutrina, fechada à novidade, só podia aborrecer um criador cujo imaginário, já alimentado por muita leitura, mitos, lendas, ainda do tempo da mãe tinha uma abertura que não suportava limitação de espécie nenhuma.  

João Pedro George, além dos factos comprovados por muita documentação relativa às coisas da vida real, - aí entram os pormenores da relação com o pai, os quotidianos do trabalho, dos negócios, etc. - publica um inédito juvenil em que não se revelam ainda as qualidades futuras, mas como em Pessoa mostram que há uma mão que escreve, e uma pulsão que não se perde e irá desenvolver-se pela vida fora.

As informações, muitas que chegam ao biógrafo são, como é natural, pelaViúva, Olga, mas sobretudo e isso pertence de facto a uma época em que ainda se escreviam cartas, longas, com os detalhes do que se vivia, e onde o poeta se expõe de um modo simples e genuíno, confiante, ao seu melhor amigo de sempre, e que além das obras que analisa, muito em especial a Apresentação do Rosto, o biógrafo dá a conhecer o que no seu reservado quotidiano Herberto não daria. O convívio dos cafés era para discutir projectos, obras, política ou literatura, mas não a vida íntima. Essa é aqui nas cartas que Pedro George publica que a vamos encontrando. No que escreve ao amigo Carlos Cristóvão, ao longo dos anos, desde a saída da Madeira. É numa dessas cartas que lhe conta que tinha um verdadeiro namoro que em breve iria oficializar com uma rapariga linda, adorável, por quem se tinha apaixonado de verdade. Estava ultrapassada a fase do marialvismo da boémia machista dos rapazes da sua idade, pelo menos naquele momento.

No capítulo dedicado à sua estadia em Coimbra, a cidade dos Lentes, para onde o Herberto foi, supostamente iria formar-se em Direito, o que daria ao pai uma grande alegria, uma espécie de título de Nobreza, Herberto fez tudo o que a cidade pedia e oferecia, as pândegas, as bebedeiras, as mulheres - tudo menos matricular-se em Direito, algo que escondeu do pai e do amigo Carlos, preferindo ir matricular-se em Letras. Eu, que vivi em Coimbra, de 1953 ( ano em que Herberto saia de lá) a 1958 e estudei na Faculdade de Letras, ainda tive alguns dos professores que João Pedro George  indica como profs. do Herberto. Não me admira que também deles o poeta se tenha cansado, a severidade era grande, embora menor do que em Direito. Aqui, chumbando numa cadeira perdiam-se todas, era preciso repetir tudo de novo. Em Letras não, mas nem por isso os cursos, com raras excepções, abriam horizontes que despertassem paixão. Herberto voltaria para a Madeira, esperando do pai um apoio- sobretudo financeiro- que o devolvesse à liberdade e ao prazer da criação. Nasce uma zanga que nunca mais se desfez, o pai não estava disposto a sustentar um filho boémio, embora poeta de grande inspiração. 

João Pedro encontra poemas desse tempo que nos mostram ainda uma incipiência (aliás como se pode ver nos de Fernando Pessoa) que não permitem ainda adivinhar  o que acontecerá depois com A Colher na Boca ou a Apresentação do Rosto, onde já domina para lá do fenómeno que conduziu o fio da palavra, uma voz de maturidade original plena, genuína, de rápida devoração impiedosa , e dá à sua voz um ritmo que bate como pancadas que alertam para emoções e perigos, que ele não perdera da infância e continuavam vivos. 

Alguns dos poemas foram transcritos, são inéditos e daí o seu interesse. Assim se nasce e cresce, na poesia.

Há um deles, do tempo de Coimbra, da fuga às aulas para poder escrever, que me chamou em especial a tenção. Posso estar errada, no que vou dizer. Mas não resisto.

É o poema do poeta de monóculo. Temos de voltar a Coimbra, à sociedade que vivia em diferentes esferas, a da boémia desbragada, das Repúblicas, - Herberto ficou instalado na chamada da Loucura - e a outra, da burguesia normal, com preceitos e costumes respeitados e de que se destacavam, por vezes, uma ou outra personalidade, algum Prof, da Universidade,  distraído, ou outro que dava nas vistas por ser o único em quem se reparava, nas aulas e fora delas, como o vemos descrito no poema do monóculo.

O meu sogro, já falecido e certamente não se ofenderia, fora também no seu tempo um estudante que diferia dos outros por não se apresentar a exame, na Faculdade de Direito, senão de dois em dois anos: demorou dez anos, viveu o seu tempo de boémia feliz, obteve as melhores notas, foi Catedrático de direito Constitucional e usava - aqui entra o Herberto! monóculo, algo que o distinguiu, até ao fim da vida dos outros todos com que se cruzava.

Teria o Herberto visto alguma vez este senhor de monóculo que por dentro era poeta? E deu mote ao poema? Não tenho resposta, só agora li o  poema, só quando conheci o meu sogro o vi com o seu monóculo. Não estou a fazer uma crítica literária aqui, por isso não transcrevo o poema, menos ainda  uma biografia com o peso e a seriedade desta, por isso não levem muito a sério o que digo. Foi uma fantasia, que a a p.19 do livro me suscitou.

Em Coimbra Herberto fez-se de facto homem, quanto aos cursos ele já era tão lido e tão culto, sentiu que nenhuma coisa lhe acrescentariam para o que desejava na sua vida: viver em poesia a poesia. Isso acima de tudo.

Se na sociedade coimbrã viveu mais no colo das prostitutas do que no convívio de alguma colega da Faculdade a explicação já estava antecipada no início do estudo de João Pedro George e era o prolongamento da relação com a mãe, tão amada e tão perdida, aqui entraria Freud, com a sua psicanálise, mas que vamos deixar de parte.

O regresso à Madeira, a zanga com o pai, a vinda para Lisboa adquirindo novos amigos, novos e mais vivos espaços - os vários cafés citados - de convívio literário e político dão-lhe definitivamente o estatuto de poeta, marginal, e único no que escrevia: com o sangue, com as tripas, poemas nascidos da terra ( ainda resultado da Madeira?) em que os versos se tinham alimentado de lendas, de mitos, de símbolos, de todo um imaginário de raízes antigas, milenares, de culturas que nos seus anos 50 e ainda 60 destoavam das modas lisboetas. A sua poesia atraía, mas estranhava-se. Só isso explica que quando ele entrega na Ática o seu ms, de A COLHER NA BOCA, a directora literária, Helena Cidade Moura e o David Mourão Ferreira me tenham pedido ( a mim, mais nova, não conhecida, o Papa das Letras já era João Gaspar Simões) que lesse e dissesse se valia a pena publicar. Li, e foi um deslumbramento, disse-lhes que aquele era um texto que nos levava para muito mais longe do que os de Fernando Pessoa, ali estava a nova era da poesia portuguesa. Eu de comparável pela originalidade surpreendente só me lembrava de Comte-Lautréamont, os Chants de Maldoror.  

Podemos ler a biografia com especial atenção à qualidade inegável da investigação, não escapa um documento, um depoimento, e sobretudo uma análise da correspondência onde tanto é revelado do que não se imagina, pois a admiração pela obra do poeta não deixa adivinhar o turbilhão da sua vida, se fosse de outro século seria de poeta maldito, sendo deste tempo é de poeta que dentro "do meio" é apesar de tudo de poeta que prefere, no intervalo, ir ficando à margem, descomprometido das intrigas, mas conhecendo-as bem, das invejas, das cobardias onde o respirar da criação literária é tantas vezes abafado. 

Embora eu seja bastante mais nova,  e tenha vivido mais tempo fora do que dentro do país, até à Revolução, conheço praticamente, pelo nome ou pela obra, a maior parte dos autores com quem Herberto convivia. As tertúlias eram o grande momento em que o país era refeito...para depois cada um ir à sua vida e deixar tudo na mesma. Herberto escrevia muitas cartas, e estranhei o tom humilde com que se dirigia a este ou aquele, quando pedia um encontro para uma futura publicação do que estava a fazer. Em algumas apresenta-se com uma detalhada descrição da sua vida, dos seus méritos e do que esperava ainda realizar. Nas cartas aos amigos o tom é mais natural, e sincero no que o preocupa, seja de amores seja de dinheiros.  Sabemos, pela  segunda mulher , Olga,  fonte de muita da informação dada à luz agora por João Pedro, que Herberto lia e dava a maior atenção às referências que lhe faziam, organizava os recortes, como se já adivinhasse que um dia a biografia a que se refere que deviam ser os próprios a fazer de si mesmos seria feita por um outro a quem tudo da sua vida e obra interessaria.  E aqui está, para nos informarmos como deve ser, e por vezes com surpresa, a sua biografia. O livro começa com a sua morte, no cadeirão onde se sentava, e fecha com a mesma morte, no mesmo cadeirão, onde a mulher se desespera por não ter adivinhado que tudo estava já a acontecer sem ela dar por isso.

Há uma arca de Herberto Helder, que João Pedro não deixa de anotar, para quem deseje ver se ali haverá mais algum material de inspiração. Acabará por ser publicada um dia, mais alguma coisa, mas pouco se poderá acrescentar a este trabalho tão detalhado, tão completo, exemplar para um género que agora com tanto "digital" já não voltará a ser o que foi, no tempo das cartas à mão.





    




 


 



   







  


 

   

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