Sabemos como Fernando Pessoa cresceu à sombra de Shakespeare, Milton, Yeats, Poe, Whitman, - e toda a pléiade de filósofos do hermetismo, com destaque para Waite.
Abrindo ao acaso o Guardador de Rebanhos: o rebanho que ele pastoreia são os seus pensamentos, um pouco à deriva na juventude de Alexander Search, em que o universo interrogado, quando interrogado assusta, omitindo respostas.
Caeiro será o Mestre que tenta consolar:
"Creio no mundo como um malmequer,
Porque o vejo.Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
( Pensar é estar doente dos olhos )
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia:tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar..."
( II)
Mas a inocência é mais uma das máscaras, que Pessoa arranca no primeiro momento: pois ao homem moderno o que é dado é a culpa, e a busca da redenção possível, e não a inocência, perdida desde a Queda.
A Queda foi o momento crucial da aquisição da consciência : de si e do outro, também ele mascarado de Deus e de Diabo.
O Sensacionismo é verdadeiro em Rimbaud, que explode nele, com a quilha do seu barco/corpo afundando-se no mar dos sentimentos e das emoções.
Mas é falso em Pessoa/Caeiro, que o esconde sob a capa de um panteísmo místico que não chega a ser, pois não há entrega, nem mansa nem explosiva, há uma permanente reflexão/ discussão/negação, que de poema em poema afirma o pensamento e nunca outra coisa.
A verdade estava dita logo no início: o rebanho era os seus pensamentos, em torno do que deveriam ser as suas sensações.
Pelos poemas passa a interrogação do universo, da natureza e de Deus, como a podemos encontrar nos antigos alquimistas.
Pessoa documentou-se sobre o Yoga, as tradições místicas Hindús, Kabalísticas, e outras, como as da Ordem da Golden Dawn de que o Mago Crowley fez parte. Que na sua mão poética, a mais mística, segundo alguns críticos, estas reflexões perpassem não será de admirar.
Provocou o dizer do pensamento, embora afirmando que procurava a emoção tranquila dos sentidos ( é em Álvaro de Campos que encontraremos a explosão do verdadeiro sensacionista).
Predomina em Caeiro o sentido da vista. Descreve o que diz "ver" e se não acredita em Deus é "porque nunca o vi".
Nunca o viu, mas busca no entanto a visão "interior", aquela que faz com que se parta (na aventura da vida) "munido de olhos": olhos que permitem a visão interior, a do arrebatamento que ele procurava "de todas as maneiras" sem o ter conseguido, ou julgando não o ter conseguido: porque a sua realização suprema estava na obra, não na vida, e a sua obra fala por ele, todo o tempo e a todos, como se vê pelas sucessivas traduções que vão finalmente surgindo.
Ajudará saber que Pessoa tinha na sua biblioteca o volume de Einstein sobre a teoria da relatividade, o primeiro Ulisses publicado por Joyce, e que não é casual a sua meditação sobre o tempo que se "espacializa" como no mítico Graal de Wagner.
Pessoa/Caeiro, ou o homem que vê, face ao cego que por ali passa caminhando e pára na sua caminhada. Ambos vivendo uma realidade diferente, ainda que verdadeira na sua "sincronicidade".
Onde há sincronicidade há um jogo de opostos:
o homem que vê / o homem que é cego
o homem sentado no alto / o cego ali (em baixo ) caminhando na estrada
o homem que mexe (desliga) as mãos /o cego que pára na estrada
o homem que fica quieto / o cego que continua o caminho...
Mudou a realidade com a mudança no espaço; e mudou o tempo, que se tornou "vertical", como o dos místicos.
"O cego continua o seu caminho e eu não faço mais gestos. Já não é a mesma hora, nem a mesma gente, nem nada igual."
Noutro poema, Caeiro parece dar resposta, discordando:
"Tu, Místico, vês uma significação em todas as cousas.
Para ti tudo tem um sentido velado.../ Para mim, graças a ter olhos só para ver,/ Eu vejo ausência de significação em todas as cousas;/
Ser uma cousa é não ser susceptível de interpretação".
Ah, mas não fosse Pessoa a contradição-em-si, não fosse ele, como carne de Deus ( roubando a Viktor Kalinke uma magnífica expressão do seu ensaio GOTTES FLEISCH ) ao mesmo tempo a mais aguda consciência, não teríamos outro poema, de 1930, em que diz da "alma" de todas as coisas: "Há em cada cousa aquilo que ela é que a anima"...
Esta "animação" é, por outras palavras, "energia"; e onde há energia há consciência, e onde há consciência há reflexão, há interpretação...há pelo menos uma pulsação própria de cada coisa, de cada ser, de cada pessoa (ainda que na Second Life da heteronimia).
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