27 de Fevereiro
Voltou o frio.
Ontem preguicei, mas hoje farei algo de mais útil.
Aqui, no blog de literatura, para escrever sobre os Ícaros das
traduções do João Rodrigues, na sua preciosa edição-bibelot, de A lebre que lê...
Começo pelo poema juvenil de Goethe, Ganymed, porque nele há uma diferença: a morte
é imersão na luz, não é queda, é ascensão, respondendo a um apelo do deus apaixonado. Mas essa é uma paixão que queima, que absorve e mata, como
acontece nos poemas, na alma dos poetas...
Ganymed é e não é o jovem Goethe, surgirá depois transformado no seu
Fausto II de velhice amadurecida, sob a forma de um outro mito mais elaborado, o de Ícaro por sua vez também ele elaborado sob a forma de Euphorion, filho de Helena, a majestosa rainha cuja beleza seduziu Fausto, que de novo por ela ( a Beleza suprema) cedeu a Mefistófeles, como já fizera antes na paixão infeliz por Margarida. Paixões que queimam e a que poetas e deuses sucumbem.
Temos de ler estas figuras míticas com o que o simbolismo das asas pode representar.
Asas que voam permitem, pelo menos, o sonho de uma acção, uma intervenção, ainda que mal sucedida.
Mas a mera aspiração a ter asas representa um desejo de entrega, uma sublimação que funde, anula, não individualiza, o ser de Ganymed é o da explosão panteísta que recorda um outro jovem, Rimbaud, a dissolver-se, com a sua quilha rebentada, nas ondas de um mar profundo.
Céu e mar: dois opostos que permitem, ou provocam, o grande desafio de Ser.
Lendo então, depois deste desvio, o ciclo de traduções dos Ícaros, no livro de João Rodrigues, J'Écris ton Nom... o célebre verso de Éuard, J'écris Ton Nom, Liberté, datado do tempo da guerra. Está na hora de recuperar e gritar bem alto, estes versos.
No livro de traduções, parei especialmente nos Ícaros, e no quadro de Bruegel que os inspira.
No poema de Auden, escrito depois de contemplar A queda de Ícaro, sobressai a indiferença perante o sofrimento alheio, seja de que natureza fôr, pois a vida rotineira segue o seu curso, calmamente:
....
No Ícaro de Bruegel, por exemplo: como tudo ignora
De forma repousada o desastre; o lavrador talvez
Tenha ouvido o barulho na água, o grito ao longe,
Mas para ele isso não era um acidente marcante; o sol
iluminava
Como devia as pernas brancas que desapareciam no verde
Da água, e a rica e delicada galé que deve ter visto
Qualquer coisa estranha, um rapaz caindo do céu,
Tinha um destino e continuou a navegar calmamente.
(p.58)
Da sabedoria dos "Velhos Mestres" retira Auden o que a experiência de vida a todos ensina: que a vida é maior do que todos eles, do que todos nós...
Do mesmo nos fala W. C. William, em Paisagem com a Queda de Ícaro, escrito também a partir de Bruegel:
Segundo Bruegel
quando Ícaro caiu
era Primavera
Um lavrador arava
o seu campo
e toda a paisagem
desse ano estava
desperta e entusiasmada
consigo própria
....
um ruído na água que ninguém notou
e era Ícaro que se afogava
(p.59)
A natureza primaveril, a alegria dos campos, sobrepõe-se ao que não passa de mais um acidente, um incidente, que não chega a quebrar o labor da rotina...
Onde fica a atenção ao mito, a compaixão que poderia suscitar se o entendessemos melhor? Figurando a condição humana... Mas em Bruegel o pragmatismo do génio que é o seu não se compadece com desvios do olhar: a cada Estação sua tarefa, a cada passada um outro caminhar.
Já Michael Hamburger, em Linhas sobre o Ícaro de Bruegel (p.61)
amplia de modo quase barroco o que o seu olhar descortina no quadro: cada um na sua tarefa, é certo, lavrador lavrando, pescador pescando, mas a seguir exploram-se os sonhos do marinheiro, sonhos perdidos, nota-se a lentidão do pastor que não entende o bater das asas, até que Ícaro, nomeado como Anjo, falha a sua intenção para sempre. Permanece connosco a imagem do Anjo Derrotado: um Anjo que poderia ser o de Wim Wenders?
Um Anjo feito homem - como poderia ambicionar ser quase-deus?
O cientifismo do Ícaro de Ronald Botrall leva também à mesma conclusão: a presunção de ser parte da "mortal energia", "capturando o segredo da luz e do calor" ainda não é para todos...e Ícaro "não deixará traço nas águas que passam" (p.64).
As águas que passam, as águas do rio Lethes, que tudo apagam, não apagaram contudo o impulso de voar, que mesmo Bruegel fixou, deixando na quase sombra desse rasto a interrogação que permanece, ao contemplar mais uma vez o quadro.
Bruegel fez-me pensar: em como o grande destaque é dado ao lavrar da terra, ao pastorear o rebanho, ao esperar pelo peixe que será a refeição...ao largo haverá uma queda, um afogamento inesperado, a ousadia desfeita de um Ousado...como quem diz, pouco importa ao mundo o que não é deste mundo.
Como nas gravuras de alguns alquimistas, em primeiro lugar está o labor (labora et invenies...).A humilde e rotineira devoção.
Terei,também eu, de rever este quadro, enigmático, na suspensão em que nos deixa.
Temos de ler estas figuras míticas com o que o simbolismo das asas pode representar.
Asas que voam permitem, pelo menos, o sonho de uma acção, uma intervenção, ainda que mal sucedida.
Mas a mera aspiração a ter asas representa um desejo de entrega, uma sublimação que funde, anula, não individualiza, o ser de Ganymed é o da explosão panteísta que recorda um outro jovem, Rimbaud, a dissolver-se, com a sua quilha rebentada, nas ondas de um mar profundo.
Céu e mar: dois opostos que permitem, ou provocam, o grande desafio de Ser.
Lendo então, depois deste desvio, o ciclo de traduções dos Ícaros, no livro de João Rodrigues, J'Écris ton Nom... o célebre verso de Éuard, J'écris Ton Nom, Liberté, datado do tempo da guerra. Está na hora de recuperar e gritar bem alto, estes versos.
No livro de traduções, parei especialmente nos Ícaros, e no quadro de Bruegel que os inspira.
No poema de Auden, escrito depois de contemplar A queda de Ícaro, sobressai a indiferença perante o sofrimento alheio, seja de que natureza fôr, pois a vida rotineira segue o seu curso, calmamente:
....
No Ícaro de Bruegel, por exemplo: como tudo ignora
De forma repousada o desastre; o lavrador talvez
Tenha ouvido o barulho na água, o grito ao longe,
Mas para ele isso não era um acidente marcante; o sol
iluminava
Como devia as pernas brancas que desapareciam no verde
Da água, e a rica e delicada galé que deve ter visto
Qualquer coisa estranha, um rapaz caindo do céu,
Tinha um destino e continuou a navegar calmamente.
(p.58)
Da sabedoria dos "Velhos Mestres" retira Auden o que a experiência de vida a todos ensina: que a vida é maior do que todos eles, do que todos nós...
Do mesmo nos fala W. C. William, em Paisagem com a Queda de Ícaro, escrito também a partir de Bruegel:
Segundo Bruegel
quando Ícaro caiu
era Primavera
Um lavrador arava
o seu campo
e toda a paisagem
desse ano estava
desperta e entusiasmada
consigo própria
....
um ruído na água que ninguém notou
e era Ícaro que se afogava
(p.59)
A natureza primaveril, a alegria dos campos, sobrepõe-se ao que não passa de mais um acidente, um incidente, que não chega a quebrar o labor da rotina...
Onde fica a atenção ao mito, a compaixão que poderia suscitar se o entendessemos melhor? Figurando a condição humana... Mas em Bruegel o pragmatismo do génio que é o seu não se compadece com desvios do olhar: a cada Estação sua tarefa, a cada passada um outro caminhar.
Já Michael Hamburger, em Linhas sobre o Ícaro de Bruegel (p.61)
amplia de modo quase barroco o que o seu olhar descortina no quadro: cada um na sua tarefa, é certo, lavrador lavrando, pescador pescando, mas a seguir exploram-se os sonhos do marinheiro, sonhos perdidos, nota-se a lentidão do pastor que não entende o bater das asas, até que Ícaro, nomeado como Anjo, falha a sua intenção para sempre. Permanece connosco a imagem do Anjo Derrotado: um Anjo que poderia ser o de Wim Wenders?
Um Anjo feito homem - como poderia ambicionar ser quase-deus?
O cientifismo do Ícaro de Ronald Botrall leva também à mesma conclusão: a presunção de ser parte da "mortal energia", "capturando o segredo da luz e do calor" ainda não é para todos...e Ícaro "não deixará traço nas águas que passam" (p.64).
As águas que passam, as águas do rio Lethes, que tudo apagam, não apagaram contudo o impulso de voar, que mesmo Bruegel fixou, deixando na quase sombra desse rasto a interrogação que permanece, ao contemplar mais uma vez o quadro.
Bruegel fez-me pensar: em como o grande destaque é dado ao lavrar da terra, ao pastorear o rebanho, ao esperar pelo peixe que será a refeição...ao largo haverá uma queda, um afogamento inesperado, a ousadia desfeita de um Ousado...como quem diz, pouco importa ao mundo o que não é deste mundo.
Como nas gravuras de alguns alquimistas, em primeiro lugar está o labor (labora et invenies...).A humilde e rotineira devoção.
Terei,também eu, de rever este quadro, enigmático, na suspensão em que nos deixa.
Olá Ivette.
ReplyDeletePenso que esse descanso deu bom resultado, pois agora neste teu belo texto, falas em Goethe, Rimbaud, o que já é uma boa provocação. Parabéns.
Abraços.
Pedro
Olá Ivete.
ReplyDeleteNão sei o que poderia ter acontecido com o comentário que fiz nesta posta; lembro que fiz menção a Goethe e a Rimbaud. De qualquer forma, parabéns pelo trabalho.
Abraços.
Pedro.
Caro Pedro,
ReplyDeleteHouve alteração no modelo gráfico e no arranjo do blog e eu só agora descobri que para ver se há comentários tenho de ir buscar informação a outro indicador, antes era mais simples, à frente do texto vinha logo a vermelho a indicação de que havia comment a aprovar!
Estas mudanças acabarão por fazer com que eu deixe de escrever por aqui, imagine, só agora percebi !!!! Deve ser tudo para a estatística....